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A guerra que mudará o mundo: apontamentos sobre a Guerra da Ucrânia enquanto evento histórico

I

Bernardo Glogowski

Uma das tarefas mais difíceis para um historiador é analisar eventos durante o seu próprio desenrolar. Normalmente se pressupõe a necessidade de certo distanciamento temporal para que historiadores possam construir análises minimamente objetivas (Delgado e Ferreira, 2014). De fato, esse é um elemento importante, mas não somente pelas razões comumente enunciadas. O ponto está menos no fato de historiadores, enquanto agentes políticos e sociais, terem conexões com fatos em curso, o que pode enfraquecer sua capacidade de análise crítica, e mais na própria natureza de fatos e processos históricos em si, que demandam mínimo lapso temporal entre o momento em que eles ocorrem e o período de apreciação de seus significados.

Antonio Gramsci, no segundo volume dos seus Cadernos do cárcere, explicitou essa limitação de maneira límpida, ao afirmar que fenômenos históricos “podem ser concretamente estudados e analisados apenas depois que completam todo o seu processo de desenvolvimento, e não durante o processo em si” (apud Morera, 1990, 78). Em outros termos, a natureza e significância de fenômenos históricos só podem ser apreendidas quando os efeitos produzidos por esses fenômenos — ou seja, novos fatos, processos e eventuais mudanças de estrutura deles decorrentes — se esgotam ao longo do tempo. Evidentemente, fatos que produzem múltiplos e contínuos efeitos, em especial aqueles capazes de estimular transformações estruturais, demandam um distanciamento temporal maior do que os fenômenos cujos efeitos são superficiais e que se exaurem no curto prazo.

Dentro de uma perspectiva historicista gramsciana, portanto, apesar de toda história do tempo presente ser necessariamente hipotética, podendo incidir no erro de incutir relevância a eventos insignificantes e concluir como desimportantes eventos que mais tarde se mostrariam de enorme significância histórica, nada em Gramsci nos leva a concluir que esse tipo de exercício não seja fundamental, especialmente em se tratando de informar e instruir, mesmo que de modo provisório e talvez precário, a ação política de agentes no presente. É dentro dessas premissas teóricas que as observações abaixo sobre a Guerra da Ucrânia devem ser entendidas.

II

Eventos constituem uma classe rara de fato histórico. William Sewell Jr. conceitua eventos como um conjunto de ocorrências que funcionam como uma espécie de estopim para transformações estruturais latentes (Sewell, 2006, p. 228). Períodos de significativa mudança histórica tendem a ser caracterizados pela incidência de eventos em série, cujos efeitos e abrangência se sobrepõem e, muitas vezes, se determinam mutuamente. Ao que parece, a invasão russa à Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022 — em que pese a guerra entre ucranianos e grupos de minoria russa na região do Donbass desde 2014, com apoio não reconhecido de Moscou (Marples, 2022) — constituirá um desses eventos históricos na acepção de Sewell Jr., aliando-se a outros fenômenos de natureza semelhante da década de 2020, notadamente a pandemia de covid-19, no sentido de acelerar transformações estruturais no sistema internacional.

A natureza da guerra da Ucrânia enquanto evento histórico justifica-se sobretudo a partir de três prismas: o prisma da segurança, da economia e o da geopolítica. Evidentemente, emprega-se aqui a terminologia da divisão por prismas apenas por propósitos de clareza analítica, já que transformações nas estruturas de segurança internacional tendem a se sobrepor às transformações nos planos econômico e geopolítico, muitas vezes determinando-se dialeticamente. Discriminá-las, porém, ajuda-nos a esmiuçar melhor os efeitos e potenciais estopins que vêm sendo desencadeados pela guerra da Ucrânia no sistema internacional.

Começando pelos efeitos da guerra sob o prisma da segurança. A decisão de Moscou de violar a soberania e a integridade territorial ucranianas, indo em flagrante desrespeito à Carta das Nações Unidas, não é novidade para as relações internacionais pós-Guerra Fria, vide a invasão norte-americana ao Iraque em 2003, ou a própria operação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contra o regime Gaddafi na Líbia, em 2011 — ambas, mesmo que por razões diferentes, em desacordo com resoluções do Conselho de Segurança da ONU.1 Nesse sentido, o revisionismo de grandes potências contra normas de segurança internacional estabelecidas no pós-Segunda Guerra não começou com a Rússia em 2022, por mais que a própria Rússia também tenha colaborado com esse movimento por meio da invasão da Geórgia em 2008 e da Ucrânia em 2014 — esta última tendo resultado na ocupação da Península da Crimeia por Moscou (Stoner, 2021, pp. 40-9).

Apesar dessas ressalvas, ao menos três elementos sugerem que os efeitos sobre o sistema de segurança internacional da guerra russa à Ucrânia em 2022 são mais significativos do que aqueles produzidos por revisionismos anteriores. Primeiro, a forma pela qual a ação russa se deu: não apenas o governo Putin vinha negando qualquer intenção de usar força contra Kiev — a despeito da concentração de forças sem precedentes que Moscou angariara em vários pontos da fronteira ucraniana desde o final de 2021 —, como, além disso, o Kremlin iniciou o conflito exatamente no momento em que o Conselho de Segurança da ONU se reunia, sob a presidência da própria Rússia, para discutir uma solução pacífica para a crise. É difícil imaginar uma ação que pudesse ter sido mais simbólica no sentido de sinalizar o desprezo russo diante da própria organização que ela ajudou a fundar, em 1945, e cujo principal intuito é o de manter a paz.

Em segundo lugar, diferentemente de outros conflitos no Sul Global, como no caso das guerras no Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e Iêmen, a guerra da Ucrânia ocorre no coração da Europa, colocando em xeque o sentimento de segurança dos europeus de uma forma que não se via talvez desde os anos 1960, com a crise de Berlin de 1961, ou com a invasão soviética à Tchecoslováquia em 1968. O espaço onde o conflito se desenrola é de extrema relevância não somente devido ao potencial militar e ao poder econômico e tecnológico que os europeus possuem, mas, sobretudo, por causa do caráter estratégico que a Europa representa para a perspectiva de segurança dos Estados Unidos, além da perigosa proximidade da área de conflito com os territórios da Otan — a aliança militar norte-americana no continente.

Um terceiro e último elemento que aponta para a significância da guerra para a segurança internacional — altamente relacionado com o aspecto anterior, inclusive — está na reação das grandes potências ocidentais, notadamente dos Estados Unidos, frente a essa invasão, e o perigo que tais reações ensejam do ponto de vista do transbordamento do conflito para além do território ucraniano. Não só os Estados Unidos e países da União Europeia vêm implementando sanções econômicas e financeiras contra a Rússia sem precedentes, sinalizando verdadeira guerra financeira, como a ajuda militar ocidental à Ucrânia tem ganhado proporções cada vez mais significativas, e isso tanto em termos de quantidade — chegando à casa da dezena de bilhões de dólares —, quanto também em termos qualitativos, envolvendo armas extremamente sofisticadas, de maior alcance destrutivo, e de caráter ofensivo, indo de tanques a helicópteros, de partes de aviação a artilharia de longo alcance.2

A combinação desses três elementos está produzindo impactos de grande relevo no âmbito da segurança internacional, notadamente no palco europeu. Entre os vários exemplos que apontam para esse sentido, destacam-se a decisão da Otan de ampliar tropas e equipamentos em países da Europa Oriental, próximos à fronteira com a Rússia, fortalecendo a segurança da região frente a Moscou; o anúncio alemão, no fim de fevereiro, de investimentos militares bilionários, representando uma reviravolta na política de segurança e defesa do país; a decisão da União Europeia, inédita na história da organização, de prover ajudar militar direta a membros de fora do bloco em situação de conflito; o crescente interesse demonstrado por duas nações caracterizadas por longa história de neutralidade (Finlândia e Suécia) de ingressar na Otan; a apresentação de requerimentos formais de entrada na União Europeia submetidos não apenas pela Ucrânia, mas também por outras duas ex-repúblicas soviéticas (Moldávia e Geórgia); a propensão da Belarus de permitir a instalação de armas nucleares russas em seu território, tornada explícita após recente mudança constitucional no país; e as ameaças veladas de Moscou sobre o uso de bombas nucleares, seja contra Kiev (armas táticas), seja até contra a União Europeia ou Estados Unidos (armas estratégicas). Em todos esses exemplos, vê-se uma perigosa espiral que aponta para a deslegitimação de organizações globais com objetivo de manutenção da paz (ONU); fortalecimento de alianças militares regionais (Otan); estímulo a corridas armamentistas; e tendência a um congelamento geopolítico do palco europeu, lastreado em poder nuclear — semelhante àquele ocorrido entre Europas Ocidental e Oriental (Otan e Pacto de Varsóvia) durante a Guerra Fria.

Saindo-se da lente de segurança e vislumbrando o conflito sob o prisma econômico, a guerra da Ucrânia também vem produzindo efeitos que apontam para potenciais transformações estruturais na economia internacional. Um desses efeitos está na própria natureza das sanções econômicas e financeiras impostas pelas potências ocidentais contra Moscou. Duas em particular são de grande relevância: a retirada de bancos russos do sistema de telecomunicação interbancário global (o chamado Swift); e, sobretudo, o bloqueio das reservas do Banco Central russo em bancos norte-americanos e europeus. Nunca sanções tão drásticas tinham sido usadas pelos Estados Unidos e aliados contra uma economia tão grande como a da Rússia.3 Por mais que crises e tensões graves pudessem ocorrer entre grandes potências, parecia assumir-se como premissa a ideia de que Washington não apertaria o botão atômico financeiro, impedindo o uso de reservas em dólar por parte de um banco central estrangeiro, por exemplo. A securitização de itens que aparentemente antes estavam fora do rol possível de sanções tende a fazer com que membros da comunidade internacional, e sobretudo grandes potências, por motivos de segurança, busquem desenvolver e utilizar sistemas alternativos de comunicação interbancária (como China e Rússia já vêm fazendo, por sinal), além de diversificar suas reservas monetárias, evitando concentração excessiva no dólar. Evidentemente, ambas tendências apontam para maior fragmentação do sistema de comunicação interbancária e do sistema financeiro internacional, apontando tendência de diminuição do poder do dólar como reserva de valor e meio de pagamento global.

Ainda no plano das sanções contra a Rússia, é altamente significativa a decisão europeia de romper o cordão umbilical energético com Moscou no médio prazo. O governo Putin colocou de cabeça para baixo o princípio da interdependência econômica: enquanto liberais na área de Relações Internacionais argumentam há tempos que um dos caminhos mais sólidos para a paz estaria na construção de vínculos econômicos sólidos entre países (Nye e Welch, 2014, cap. 8) — tal como a Alemanha apostara nas décadas pós-Guerra Fria com a Rússia —, Putin decidiu securitizar o comércio com os europeus da mesma maneira que Washington e Bruxelas o vêm fazendo agora no plano financeiro. Moscou provavelmente imaginava que a dependência energética europeia, especialmente nos setores de gás e petróleo, de alguma forma manteria os europeus reféns da Rússia, limitando, moderando ou até impedindo ações uníssonas do bloco contra Moscou. Em que pese o fato de a União Europeia ter se mantido reticente até agora sobre um possível rompimento drástico desse cordão umbilical — em especial no setor de gás, cuja oferta não é possível substituir no curto prazo —, o Plano de Soberania Energética, anunciado pela Comissão Europeia no início de março de 2022, duas semanas após o início da guerra, aponta para objetivos altamente audaciosos e significativos, que, se concretizados, resultarão na quebra completa do principal elo econômico da Rússia com o continente europeu até o final da década de 2020.

A guerra da Ucrânia também está explicitando o perigo de se ter a produção de bens e serviços essenciais concentrados em poucos países, de forma semelhante ao que a pandemia já havia apontado para o caso de equipamentos e insumos da área da saúde, com oferta fortemente centralizada na China. Rússia e Ucrânia são responsáveis por uma parcela significativa da produção global de grãos (trigo, milho, cevada e óleos vegetais, principalmente), além de, no caso da Rússia, Moscou ser líder no comércio global de fertilizantes (OCDE, 2022). Os efeitos do conflito sobre áreas de produção agrícola e de infraestrutura logística na Ucrânia (armazenamento, transportes e instalações portuárias), aliada às sanções contra bancos russos, que vêm impondo obstáculos às exportações do país, estão criando sérias dificuldades para o comércio de grãos e fertilizantes, com impacto significativo no preço desses produtos (FAO, 2022). A continuidade do conflito poderá comprometer a safra agrícola ucraniana de 2022–23, com implicações dramáticas para a segurança alimentar global em futuro próximo. Não à toa, apesar de clamores da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, em sua sigla em inglês) no sentido de membros da comunidade internacional absterem-se de implementar travas no comércio de alimentos, vários países dependentes da importação de grãos já estão proibindo exportações, o que poderá gerar um efeito cascata nos preços de commodities e no comércio internacional.

Vê-se, portanto, que os efeitos econômicos da guerra da Ucrânia apontam para o fortalecimento de um processo de desglobalização produtivo-financeira, sobretudo em razão do alargamento do entendimento sobre o que constitui cadeia produtiva estratégica — leia-se, cadeias suscetíveis de impactarem na segurança nacional em caso de disrupção. Esse alargamento conceitual aponta para tendências de renacionalização de bens identificados como estratégicos, ou, ao menos, para o deslocamento de cadeias produtivas para regiões e países aliados, vistos como seguros. Outros processos em curso no sistema internacional já vinham apontando para o mesmo sentido — da reação das forças democráticas à ascensão da extrema direita em países ricos, sobretudo por meio do incentivo à realocação de cadeias produtivas visando estimular a criação de empregos domésticos de qualidade (vide o programa Build Back Better da administração Biden nos Estados Unidos), às próprias implicações da pandemia de covid-19, que fortaleceram, como já apontamos, a sensação de vulnerabilidade especialmente em governos de países ricos ocidentais diante da excessiva concentração produtiva de insumos e de bens estratégicos na Ásia, em particular na China.

Por fim, sob o prisma geopolítico, a guerra da Ucrânia também tem demonstrado grande potencial para estimular efeitos de médio e longo prazo no sistema internacional. A intensidade de uma possível tendência desglobalizante antes mencionada dependerá, inclusive, da forma pela qual o cenário geopolítico global será influenciado pelo desenvolvimento do conflito. A grande questão suscitada pela invasão russa à Ucrânia nesse sentido está sobretudo nos efeitos que a guerra ensejará para a arquitetura geopolítica do sistema internacional. Em outros termos, até que ponto a deterioração das relações entre Rússia e potências ocidentais desaguará para algo maior, envolvendo também a China, por exemplo? Vale salientar que as relações entre Rússia e Estados Unidos/União Europeia parecem ter atingido um patamar de difícil retorno no médio prazo, sobretudo diante das acusações de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade do Ocidente contra a Rússia. Essas acusações, lastreadas em crescentes evidências, tenderão a manter as atuais sanções econômicas ocidentais contra Moscou por muito tempo, e isso mesmo no caso de concretização do melhor (mas altamente improvável) cenário para o fim do conflito, que é o da negociação de uma paz em futuro próximo com desocupação de territórios ucranianos conquistados pela Rússia pós-24 de fevereiro de 2022.

Bernardo Glogowski

Nesse sentido, a guerra da Ucrânia acrescentou uma camada de extrema complexidade à geopolítica global, especialmente no tema das relações entre China e potências ocidentais. A rivalidade geopolítica entre Washington e Pequim, em alta durante a década de 2010, vinha sendo contrabalançada até então por uma postura menos confrontacional por parte da Europa. Bruxelas matinha uma atitude de relativo equilíbrio entre os lados, em que pese o fato de rusgas entre China e União Europeia terem crescido nos últimos anos, tendo sido motivadas por vários temas, de direitos humanos a espionagem industrial. Vale lembrar, porém, que as relações Bruxelas-Washington também foram marcadas por sérias divergências no período, indo desde disputas comerciais a desavenças sobre a participação europeia em gastos de defesa no âmbito da Otan, que atingiram seu clímax durante a administração Trump (2017–2021). Se com a entrada de Biden na Casa Branca em janeiro de 2021 já se percebia uma certa melhora nessas relações bilaterais — que retrocederam novamente após o desastre da saída das tropas norte-americanas no Afeganistão em agosto de 2021, feita sem coordenação com os aliados europeus —, após a eclosão da guerra na Ucrânia, no entanto, a situação mudou radicalmente de figura. E isso sobretudo em razão da postura de Pequim frente ao conflito, que vem sendo, na prática, a de defender uma neutralidade pró-Rússia, com fortes críticas às sanções ocidentais e à expansão da Otan pós-Guerra Fria.

Em suma, o posicionamento de Pequim na guerra da Ucrânia está empurrando as tensões entre China e União Europeia para outro patamar. Até que ponto esse nível de maior tensão resistirá ao fim do conflito é difícil saber. De um lado, parece inimaginável pensar em um processo de dissociação econômica radical entre China e Europa (e, sobretudo, entre Pequim e Washington), motivado por questões de segurança, que possa ser semelhante ao nível de desintegração que existira entre Ocidente e União Soviética durante a Guerra Fria, sobretudo devido à dimensão e à natureza da interdependência econômica construída por potências ocidentais com a Ásia desde os anos 1990, muito mais profunda do que aquela dos europeus com a Rússia no mesmo período. Por outro lado, parece claro que as sanções ocidentais tenderão a empurrar Moscou cada vez mais para a órbita econômica e geopolítica chinesa, tornando a Rússia fornecedora estratégica de energia e alimentos a Pequim no médio prazo. A consolidação dos laços entre Rússia e China, especialmente em um contexto no qual Moscou é entendida como ameaça existencial para a segurança europeia, tem potencial para contribuir para uma maior polarização geopolítica do sistema internacional. Mesmo que essa polarização seja menos intensa do que aquela construída durante alguns dos períodos da Guerra Fria, um movimento de tendência polarizante já representaria, por si só, uma transformação profunda das placas tectônicas da geopolítica global, com seríssimas implicações para as relações internacionais do século XXI.