5

A dor da clandestinidade

Resenha de O acontecimento, de Annie Ernaux

The Illegal Operation, Edward Kienholz, 1962

Uma das características marcantes da obra da escritora francesa Annie Ernaux é a invenção de uma forma narrativa própria. Nem romance, nem ensaio, nem autobiografia, nem registro histórico, mas um pouco disso tudo em estilo e voz próprias. Por excelente iniciativa da editora Fósforo, três de seus títulos chegaram ao Brasil em curto intervalo de tempo: O lugar (maio de 2021), Os anos (junho de 2021), ambos com tradução de Marília Garcia, e O acontecimento (maio de 2022), traduzido por Isadora de Araújo Pontes. Autora de uma obra extensa, homenageada com o Prêmio Marguerite Yourcenar em 2017, Ernaux escreve produzindo uma amálgama entre a sua história e a francesa, marcando a ligação entre o pessoal e o político. É esse o aspecto mais impressionante dos três livros já editados no Brasil, entre os quais destaco aqui O acontecimento.

Lançado na França em 2000, o acontecimento ali narrado em primeira pessoa é um aborto clandestino realizado por uma jovem estudante que, em 1963 — portanto 12 anos antes da descriminalização do aborto, promulgada em 1975 com a Lei Simone Veil1 — se vê grávida e desamparada diante de duas certezas. A primeira, de não querer levar a gestação adiante; a segunda, a da violência de não poder interromper a gravidez, vai se delineando aos poucos, conforme ela se depara com todas as dificuldades e vai sentindo no corpo o peso da clandestinidade. Esta é a principal qualidade do livro: deslocar o lugar da dor do ato em si para a clandestinidade do ato. “Estava totalmente decidida a abortar. Isso me parecia, senão fácil, totalmente realizável, e não exigia nenhuma coragem em especial” (p. 21).

Desse momento da narrativa até a sua realização, a coragem se fará necessária. Não para sustentar o ato em si, mas para passar pela provação da clandestinidade. Ao mesmo tempo, a beleza da narrativa está no fato de que, com a sua escrita, o peso da clandestinidade se desfaz. Por isso, a passagem em que a autora anuncia o desejo de relatar esse acontecimento me parece definidor do livro: “Ceder ao desejo me parecia assustador. Mas me dizia também que poderia morrer sem ter feito nada desse acontecimento. Se havia uma culpa, era essa” (p. 16), escreve ela, justificando o longo período que separa o acontecimento de O acontecimento.

Desde o começo das suas poucas e densas páginas, o texto apresenta a busca por um aborto impossível, que a jovem vê como única possibilidade para sua vida. Neste impasse, o livro acontece, com a habilidade de, numa pequena introdução, situar a história da sexualidade do século XX entre o teste de gravidez e o exame de HIV/Aids, ao qual a narradora se submete e funciona como disparador de todas as lembranças do acontecimento. Tudo isso condensado num relato de três páginas acerca de uma sala de espera, trecho que é um exemplo dessa invenção de forma narrativa a que me referi no início. Ao mesmo tempo que a jovem professora no interior da França constata a gravidez, o presidente Kennedy morre assassinado: “Mas isso já não despertava nenhum interesse” (p. 15). Essa espécie de alienação da realidade vai se aprofundando com o passar do tempo, na busca por uma saída. “O tempo tornou-se uma coisa sem forma que avançava dentro de mim e era preciso destruir a todo custo”, escreve ela, ao indicar que, dali em diante, a narrativa teria essa mesma forma: o texto avança em direção à busca de um modo de fazer o aborto, e cada vez mais tudo no livro vai girando em torno dessa busca que constitui o “acontecimento inesquecível”.

Ernaux fornece as pistas para o problema da clandestinidade aos poucos. “Embora muitos romances se referissem a um aborto, eles não forneciam detalhes a respeito do modo como ele se dava exatamente. Entre o momento em que a moça descobria estar grávida e aquele em que não estava mais, havia uma elipse” (p. 25), constata ela, indicando que a sua narrativa será justamente sobre esse tempo não contado, essa omissão proposital que a narrativa literária comporta, mas a vida não. A procura por um médico, a passagem por consultórios, a pesquisa de alguém que conhecesse alguém que tivesse o contato de uma “fazedora de anjos” — o eufemismo para o termo pejorativo “mulheres aborteiras” — e o confronto cotidiano com a proibição da lei, tão bem descrito aqui: “(…) era impossível determinar se o aborto era proibido porque ruim, ou se era ruim porque proibido. Julgava-se de acordo com a lei; não se julgava a lei”.

Julgar, questionar, reivindicar a mudança da lei que criminaliza o aborto tem sido, historicamente, uma luta feminista, neste momento enfrentando inúmeros retrocessos em terrenos onde já havia se estabelecido, mas também avanços fundamentais, como a recente descriminalização do aborto na vizinha Argentina. Com a aprovação da Lei de Interrupção Voluntária de Gravidez (LVG), em dezembro de 2020, uma lufada de esperança invadiu o continente latino-americano, cuja luta pela descriminalização enfrenta décadas de resistência de forças católicas, hoje somadas à emergência das forças evangélicas e da extrema direita.2 Hoje, nos EUA, o principal elemento da campanha de Donald Trump para a volta ao poder é a derrubada, na Suprema Corte, da lei que descriminaliza o aborto, direito em vigor desde 1973.

A chegada do livro de Ernaux ao Brasil reforça a importância do debate sobre a descriminalização, tema árduo em ano eleitoral, pauta evitada em governos de diferentes matizes ideológicos, peso sobre o corpo e a vida das mulheres, sujeitas ao duplo julgamento trazido pela interrupção da gravidez: a suposta culpa por ter engravidado e a suposta indigência moral de não pretender levar a gestação a termo. Ao jogar o foco na proibição imposta pela lei, suas consequências físicas e psíquicas — os riscos de morte, o medo, a dor, as sondas, os remédios, os instrumentos cirúrgicos aquecidos numa panela na cozinha, o julgamento dos médicos —, Ernaux faz do seu “acontecimento inesquecível” um mote para liberar as mulheres do jugo de todas essas culpas, reiterado por ela ao final do livro: “Eliminei a única culpa que senti a respeito desse acontecimento — que ele tenha acontecido comigo e eu não tenha feito nada dele. Como um dom recebido e desperdiçado” (p. 71). O dom, a dádiva, são deslocados do dogma da geração de uma vida para a liberdade única de ser uma mulher que escreve. Talvez aqui seja necessário acrescentar um plural ao livro de Ernaux: acontecimentos inesquecíveis.