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Onde eu moro1

Daniel Nasser

Quando eu digo onde moro, digo sempre: em Santa Mônica, o que procede. Mas todo mundo repete: então, em Hollywood! São, na verdade, cidades diferentes, a cinco milhas uma da outra, porém de alguma maneira pertencemos a Hollywood. Então me apresso em dizer: não escolhemos o lugar, o navio de Vladivostok aportou-nos aqui, nós não tínhamos dinheiro, aqui estavam alguns outros refugiados, cá ficamos. De fato, temos aqui uma casa, mas só porque o montante de pagamento é mais barato do que seria o aluguel noutro lugar. A casa tem, nomeadamente, apenas um banheiro e meio, e é quadrada, uma casa de rancho de cinquenta anos, ampliada. Ao redor, os casarões estão construídos em estilo mexicano ou inglês, ou têm torrezinhas e curvas que nunca se viu. Nossa casa tem sete cômodos, embaixo dois grandes, não é má, e o jardim é mesmo agradável, bastante antigo, com figueiras, limões, laranjas, pessegueiros, aroeiras e grama, tem até mesmo recantos entre abrigos de madeira, que parecem há muito habitados.

O mundo passa fome e jaz em escombros; como se pode reclamar de estar sentado aqui? Eu não via nenhuma possibilidade até que me veio a ideia de que estes lindos casarões aqui são feitos da mesma matéria que as ruínas acolá; como se um e o mesmo vento mau, que lá rompeu os edifícios, aqui, de um monte de poeira e sujeira, tivesse levantado casarões. Pois é um fato: vivemos numa cidade sem dignidade.

É difícil descrever, eu comecei e desisti uma e outra vez. Claro que isso deve vir das pessoas.

Para começar com os vizinhos, gente pequena. São amigáveis e não bisbilhotam. Eles veem uma mulher manter a casa e o jardim em ordem, um homem à máquina de escrever, então dizem à polícia, que se informa sobre nós, que seríamos “hard working people”, deveriam deixar-nos em paz. Eles ganham figos do nosso jardim, trazem bolos. E não têm o jeito neurótico contido dos pequeno-burgueses alemães, nem a submissão e soberba. Eles se movimentam mais livremente, com mais graça, e não berram. Porém, há neles algo de vazio e sem sentido como nas personagens de romancistas superficiais e agradáveis. Nas escolas não se avalia somente o quão aplicada e lida e inteligente é uma criança, mas também o quão popular ela é. Contra isso é difícil dizer algo: talvez eu só tenha algo contra porque eu mesmo não era popular, nem queria ser. Se as crianças devem aprender a adaptar-se à sociedade, isso também depende mesmo de: a qual sociedade. Os jornais, por outro lado, estão cheios de conflitos violentos entre as camadas baixas: homens atiram em suas mulheres infiéis, adolescentes dão machadadas em pais bêbados que espancam as mães e assim por diante. É diferente do que nos melhores círculos, em que tais conflitos psíquicos se agravam em conflitos financeiros e é uma questão de pensão alimentícia. Porém, trata-se em cima e embaixo de problemas que, por assim dizer, representam equações com um só fator desconhecido; a reportagem de jornal de sete linhas parece já exaustiva. As casas em nosso entorno, quase todas, desde que moramos aqui, mudaram muitas vezes de proprietários. As pessoas trocam sem parar e aparentemente sem muito refletir seus postos de trabalho e até mesmo sua profissão, e então mudam para zonas ou cidades de mais fácil acesso; algumas mudam, e muitas vezes, através de todo o continente. Então quase não conhecem suas moradas, não têm casa paterna nem terra natal. Amizades não crescem nem inimizades. Quanto às opiniões, dominam quase sem limites as ideias dos dominadores. Não concordar é considerado de modo geral mero desconhecimento do universalmente aprovado, como uma perigosa incapacidade de adaptar-se. A adaptação é uma disciplina própria, o mais inteligente leva isso adiante, o relutante é um problema dos médicos e psicólogos. Para manter o “job” — ele é sempre inseguro, não há “postos vitalícios” com direitos e aposentadorias, nem mesmo nas repartições do governo —, além da qualificação — da qual não vem muito, tudo é estabelecido para a substituibilidade, ou seja, para o mínimo — deve-se ser um “regular guy”, quer dizer, normal. Isso deixa poucas possibilidades para peculiaridade. “As possibilidades ilimitadas” começam a soar como uma lenda, mas “as crises inevitáveis”, isso soa como uma frase científica. E as crises privam a população de tudo. Conta bancária, casa, geladeira e automóvel devem ser convertidos em comida, os estudos das crianças são interrompidos, os casais, separados. Além das grandes crises generalizadas, ameaçam as pequenas, pessoais. A doença de um único membro pode privar a família de todas as suas economias e da maior parte dos seus planos de futuro. Sob essas circunstâncias, eles nunca verteram, sequer alguma vez ventilaram, um significado mais sombrio aos fétidos preconceitos de amplas camadas contra os negros, os judeus e os mexicanos. A influência da população mal informada — os jornais e o rádio estão nas mãos de alguns poucos milionários — sobre a história do país é fraca. As máquinas políticas dominam as eleições e elas são controladas pelos grandes interesses investidos. A corrupção é imensa. Jornais com dúzias de milhões de leitores insinuam que o mais alto funcionário da nação teria sido “feito” por um grupo de gângsters. Muitos têm a impressão de que a democracia é de um tipo que pode desaparecer de uma hora para outra. Poucos se atrevem a imaginar o que a descomunal brutalidade que a luta econômica desenvolveu neste continente viria a fazer dele depois.

A grande insegurança e dependência perverte os intelectuais e os torna superficiais, medrosos e cínicos. Faz parte dos seus contratos de trabalho, por assim dizer, que eles pareçam descontraídos (easy going), confiantes (cheerful) e confiáveis (mentally balanced), o que eles conseguem com fumar cachimbo, esconder-a-mão-no-bolso-da-calça e assim por diante. No velho mundo há ainda a grande ficção, para os intelectuais, de que eles trabalham por mais do que a remuneração. Os funcionários públicos mantêm a ordem, os médicos curam, os professores disseminam conhecimento, os artistas alegram, os técnicos produzem; são “naturalmente” remunerados, mas isso é só porque eles precisam viver. Seu trabalho tem uma importância para além disso. Enormes instituições estatais dão ao menos a impressão de manter-se sob nenhum controle além do comum: as universidades, escolas, clínicas, administrações. Aqui, no entanto, as universidades são abertamente controladas por gente de dinheiro, também as semiestatais; as clínicas do mesmo modo, os funcionários públicos da administração recebem cheques semanais e são dependentes das máquinas políticas. Assim, a juventude é uma geração de jovens deuses que, à noite, transformam-se em escravos. Mulheres de classe média acima dos trinta, sem conta bancária, são failures. Esta palavra failure é quase intraduzível numa linguagem cultural. Ela significa “fracassado” e pode ser o pai ou a mãe ou o professor ou o vizinho ou eu. A condição dos “failures” é da mesma forma dificilmente traduzível. A palavra para isso chama “frustração”, e ela significa malogro, decepção, contrariedade, derrota. Esta virgindade velha existe em ambos os gêneros, e ela é social, com indícios clínicos.

Não admira que algo de ignóbil, infame, indigno se apegue a todo contato de pessoa a pessoa e daí passe a todos os objetos, habitações, ferramentas, até mesmo à própria paisagem. Um homem lendo ao alvorecer no jardim um volume de Lucrécio seria uma visão insípida, uma mulher alimentando seu filho, algo insosso. As torres de apartamentos de Manhattan no crepúsculo são de tirar o fôlego, mas elas não podem insuflar um seio. Os abatedouros de Chicago, as centrais elétricas nos cânions, os campos de petróleo na Califórnia, todos possuem este reprimido, frustrado; todos surtem efeito de failures. Por toda parte está este odor da crueza sem esperança, da violência sem satisfação. Em cinco anos vi uma vez algo parecido com arte: ao longo da costa de Santa Mônica, diante dos milhares de banhistas, suspensa em finos cabos de arame, como uma pipa, puxada por um barco a motor, uma estreita, deliciosa composição em cores suaves, o desenho publicitário de uma empresa de óleo para pele.