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O golpe de 7 de setembro. Que golpe?

Betume 4, Eduardo Climachauska

Responder se as manifestações de 7 de setembro foram um grande fracasso para Bolsonaro não é tão simples quanto, num primeiro momento, pode parecer. Quem se apressou a festejar um fiasco possivelmente esperava um golpe de estado, com medida provisória preventiva e instauração de Estado de Sítio ou instrumento semelhante, no dia posterior. Nada disso aconteceu. No dia seguinte, o presidente chamou o escrevinhador da República para redigir uma carta em seu nome do tipo “desculpa, deu ruim”.

Ao mudarmos o foco do olhar em relação a esses acontecimentos, o cenário se complica. Imaginando que Bolsonaro não pretendia dar um golpe a partir dos pronunciamentos milimetricamente ensaiados, é preciso considerar outras questões. O golpe na democracia brasileira não chega a ser um projeto claramente estruturado, mas vem sendo executado ao longo dos anos, pelo menos desde a deposição de Dilma Rousseff, com a conivência de importantes parcelas do mundo político, empresarial e parte do Poder Judiciário e do Ministério Púbico Federal. A eleição de Bolsonaro não foi a grande ameaça, mas efeito de um processo de desqualificação que a democracia brasileira vem experimentando desde meados da década passada. Em outras palavras, o país sofre uma espécie de golpe a longo prazo, que dá espaço para forças políticas e econômicas poderosas jogarem com cenários mais ou menos democráticos para 2022, ao sabor de seus interesses e das necessidades do atual momento do capitalismo que, em crise, necessita radicalizar sua versão neoliberal, pouco afeita a experiências democráticas, principalmente nas regiões do chamado sul global.

A questão não parece ser “considerar o risco de golpe”, mas observar que sustentação tem o golpe em curso, ou se é possível a concretização de um governo autoritário que rompa com as frágeis instituições e procedimentos democráticos deste país chamado Brasil. É uma pergunta difícil de responder sem cair em um inútil exercício de futurologia, na medida em que há muitas condições nacionais e internacionais a serem conjugadas para que um golpe tenha sucesso.

Diferentemente do século passado, os golpes que se anunciam no século XXI têm características distintas. São golpes impetrados a partir de políticos vencedores. No Brasil, Bolsonaro chegou ao poder com mais de 56 milhões de votos. E no seu caso há muitas particularidades. Talvez a mais importante delas seja a ação política deliberada de setores do poder judiciário de destruírem a própria ideia de política, de falirem grandes empresas e de colocarem políticos na cadeia. Se, por um lado, isso resultou na prisão do grande líder do partido de centro-esquerda, por outro, houve uma leitura completamente errática do seu tradicional adversário, que até meados de 2018 se pensava novamente desfrutando o poder no Planalto, mas acabou com menos de 5% dos votos nas eleições presidenciais.

Somou-se aos fatores internos a interferência internacional: a atuação de grupos que já haviam trabalhado na vitória de Trump nos Estados Unidos com mecanismos engendrados nas redes sociais, que inundaram o país de fakenews; e não menos importante, os interesses da banca internacional, apoiada pela nacional, que estava ansiosa por realizar as reformas privatistas, que induziriam o fim das políticas sociais e instalariam o desejado estado mínimo. Bolsonaro parecia uma boa aposta para esses últimos.

Nesse cenário, os 56 milhões de votos dados a Bolsonaro — um político saído das profundezas do baixo clero — revelaram também uma grande frustração de parte expressiva das camadas populares com o Partido dos Trabalhadores, pela destruição de uma imagem de honestidade construída ao longo de décadas e pela crise econômica, que começava a ser sentida principalmente pelos recém-chegados à então chamada classe C. Somaram-se a eles vastas frações das classes médias, que se sentiram ameaçadas em seus privilégios por políticas sociais que franqueavam vagas nas universidades a pobres e a negros, incluíam empregados domésticos (quase 100% mulheres) como detentores plenos de direitos trabalhistas e levavam adiante políticas como Luz para Todos, Mais Médicos, Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida.

Mas o desastroso governo de Bolsonaro já lhe retirou um enorme contingente de apoiadores, fazendo com que suas possibilidades de se reeleger se apequenem dia a dia. Uma alternativa de reversão desse panorama seria ele construir, pelo menos em sua fantasia, uma aventura golpista. Para isso avançar, é preciso manter um grupo, um povo para chamar de seu, mesmo que seja minoritário em relação ao conjunto dos eleitores: os 25% mais fanáticos, mais fiéis, os que constroem equivalências, que colocam no mesmo balaio o fundamentalismo religioso, o racismo, o armamentismo, a homofobia, a misoginia, a ideologia de gênero, o desprezo à educação, ao meio ambiente e ao sempre presente anticomunismo.

Para manter seu povo, o presidente necessita convencê-lo de duas coisas: primeiro, de que ele não está governando porque outros não deixam, porque lhe tiraram o poder, e daí ser o Supremo Tribunal Federal o inimigo da vez. Em segundo lugar, de que é necessário adotar um artifício para se negar a sair da presidência: a retórica invertida do golpe. Ele não dará o golpe, mas se defenderá de um golpe tramado no interior do Tribunal Superior Eleitoral para fraudar as eleições e sua suposta vitória. Bolsonaro sempre soube que a PEC do voto impresso não passaria, Arthur Lira também, mas foi muito importante manter o tema na mídia e nas redes sociais pelo maior tempo possível. Criar a desconfiança em relação às instituições entre seu povo é fundamental, o que ele já vem fazendo ao colocar em dúvida a eficácia das vacinas contra a covid-19.

Os dois pronunciamentos do dia 7 de setembro pretendiam atingir seus novos inimigos. Bolsonaro e seus apoiadores sabem que, se elegerem o PT e o Lula como inimigos, ou até um candidato de uma terceira via, com potencialidade de lhe tirar do segundo turno, as chances de reconstruir o povo que lhe garantiu a vitória são pequenas. Em vista disso, não aposta em ganhar as eleições, mas em deslegitimá-las. E para isso seu povo fiel, radical e pouco racional é fundamental. Bolsonaro falou para eles dia 7 de setembro. Esta parece ser a novidade de um suposto coup d’État versão século XXI, mais complexo e com muito menor probabilidade de dar certo.

Por que Bolsonaro recuou chamando o escrevinhador? É necessário qualificar esse recuo. Se acreditarmos que Bolsonaro realmente pretendia dar um golpe a partir daquela micareta fora de época e que o aparato militar nos quartéis estava pronto para aderir a um avatar de Luís Bonaparte, aí, sim, Bolsonaro recuou. Essa versão dos acontecimentos, no entanto, é pouco crível.

Ao longo de dois anos e meio de governo, Bolsonaro quase semanalmente tratou todas as autoridades, as instituições da República, as representações diplomáticas com cinismo, deboche, escárnio, preconceito. Quando precisou enfrentar a pandemia de covid, comportou-se como um marginal, riu dos mortos, disse que não era coveiro, chamou o povo de maricas, afirmou que não compraria vacinas, fez propaganda, usando as emas dos jardins do Alvorada, de um remédio inócuo contra o coronavírus e nada, absolutamente nada lhe aconteceu.

O baixo nível da reunião ministerial de 22 de abril de 2020, bem como da maioria das lives às quintas-feiras, não seria aceitável mesmo em um boteco de beira de estrada em fim de noite, certamente o dono do estabelecimento colocaria os frequentadores para a rua em nome do decoro. Com Bolsonaro e seu entorno, nada acontecia. Não havia, pois, razão para o presidente e sua trupe pensarem que, no dia 7 de setembro, em manifestações amplamente convocadas ao longo de dois meses, seria diferente. Mas desta vez foi. Em meio a uma série de assustadoras crises — econômica, de desemprego, da saúde, fiscal, cambial, hídrica, energética —, com uma CPI da covid revelando um esquema de corrupção na compra de vacinas cada vez mais próximo do presidente e de sua família estendida, houve reações. Elas foram fortes quando partiram das altas cortes do Judiciário, seus inimigos da vez. Foram tímidas no Congresso, dominado pelo Centrão, mas também de lá foram ouvidas vozes, mesmo que muito moderadas, de quem se esperava mudez. Houve manifestações de todos os matizes da sociedade civil. E, de seu aparato militar, ninguém saiu a defendê-lo, a não ser com palavras protocolares.

Bolsonaro deve ter se surpreendido com a reação provocada por suas manifestações tão vastamente anunciadas. Supunha ter feito, como sempre, um discurso para o seu povo, pra manter acesa a ideia do pretenso golpe de que seria vítima por ação do STF e do TSE, mas desta vez não deu certo. Se chamou Temer ou se Temer se ofereceu para acalmar os ânimos, tanto faz. Bolsonaro se acovardou, sentiu sobre os ombros o peso dos porões do baixo clero. Mas voltará com o mesmo discurso, talvez até mais violento, já que essa atitude parece ser sua única alternativa de chegar com alguma vida a 2022.

Com essas idas e vindas, com o relatório da CPI da covid, Bolsonaro corre risco de impeachment? Seria bom à fragilizada democracia brasileira a abertura de um processo de impeachment neste momento? Pensando teoricamente na saúde do regime democrático, sim, Bolsonaro deveria ser levado a julgamento pelo impeachment. Pensando nas dramáticas condições do Brasil, em suas frágeis e muitas vezes venais instituições, não, por pelo menos duas razões: Bolsonaro tem fortes chances de ganhar na votação da Câmara de Deputados, não sofrer o impeachment e sair muito fortalecido para 2022. Se perder, o que é bastante improvável, pode se tornar um mártir e — não nos esqueçamos — tem um filho senador que poderia tomar seu lugar como candidato à presidência da República. Em suma, parece haver mais riscos de termos mais quatro anos de Bolsonaro com a abertura de um processo de impeachment do que ao deixá-lo acabar o mandato.

O que fazer? Esta é uma velha e sempre atual pergunta frente a um perigo tão eminente de derretimento da democracia, caso Bolsonaro chegue a um segundo turno em 2022. Quais são as possibilidades de impedir que isso aconteça?

Evitar tal cenário parece estar nas mãos dos partidos de centro-direita no Brasil. Salvo uma virada muito grande — e viradas acontecem — Lula estará no segundo turno. Portanto, cabe à centro-direita impedir Bolsonaro de também estar lá. Um acordão entre esquerda e direita para tirar Bolsonaro me lembra uma velha fábula do sapo que ofereceu ajuda a um escorpião para atravessar um rio, já que este não sabia nadar. No meio da travessia, o escorpião mordeu as costas do sapo. Antes de morrer, ele perguntou ao escorpião: “por que me mordeste, se vais morrer também?”, o escorpião respondeu: “não consigo fugir à minha natureza!”. Na versão brasileira, talvez o sapo não saiba que, no fundo do rio, há um minissubmarino para resgatar o escorpião.