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O corpo belo na era do #metoo

Introdução

Quando olho o Instagram de Kylie Jenner, a caçula da família Kardashian, e “uma mulher de superlativos”,1 parece que o #metoo — ou qualquer movimento feminista do século passado contra a objetificação sexual e o consumo do corpo feminino — nunca existiu. Com nomes como “lovestruck lip trio” ou “you’re so money baby”, a linha de cosméticos de Kylie Jenner foi vendida à gigante Coty por US$ 1,2 bilhões, sendo que o real valor de seu patrimônio líquido gerou uma acalorada discussão.2 Mas o que se perde no burburinho em torno do valor em dólares da empresa de um ícone de beleza é como esse valor, de qualquer forma alto, é resultado — e, portanto, depende — de uma receita implícita de como deve ser um rosto feminino e de como ele deveria ser melhorado conforme os padrões culturais vigentes. Mais do que os próprios cosméticos, que em termos químicos não se distinguem muito de outros produtos, o que está em jogo aqui é todo um universo da mídia social inscrito na marca Kylie Jenner, ela mesma camuflada como uma “experiência vivida”, e algo a “seguir”, “curtir”, ou coisa do gênero.

Naturalmente, como já pode estar claro até mesmo para as “Kylie virgins” (um dos nomes da marca), grande parte dessa experiência vivida é explicitamente encenada como corpos que deveriam ser desejados, e desejados especificamente por homens cis-hétero. O que nos leva ao cerne do problema do corpo belo na era do #metoo: o ethos atual de que os corpos das mulheres são das mulheres e que qualquer coisa que as mulheres façam com eles é apenas da conta delas, não coincide sem rusgas com um olhar feminista crítico que compreende que as mulheres em certo grau aprendem a querer mostrar seus corpos a partir de padrões masculinos de desejo e, portanto, já se tornam objetificados. Logo, o ativismo do #metoo contrasta com as visões mais intransigentes da estudiosa do direito e ativista antipornô Katherine MacKinnon, para quem a própria exibição do corpo das mulheres para consumo masculino representa uma espécie de estupro. Contra essa crítica contundente, a “feminista capitalista” diria, ingenuamente, que se uma Kardashian quer explorar seu corpo na internet por dinheiro, prazer, ou que quer que seja, o fato de que as imagens resultantes são nocivas a partir da perspectiva de outra feminista simplesmente não é da conta dessa feminista, e que tal linha de raciocínio se aproxima perigosamente de culpar a vítima, pois tende a relacionar as escolhas das mulheres com seus efeitos sobre os desejos dos homens — como se ao se vestir dessa forma ela estivesse “pedindo por isso”.

A seguir, desenvolvo um argumento que, de certa forma, nega e vai além de cada uma dessas posições. Defendo que os próprios padrões de autoexpressão que o #metoo supostamente apoia, e para os quais abre espaço, estão em certo sentido já sujeitos a uma espécie de “assédio interno”. Infelizmente, a lógica do #metoo mantém, às vezes, fortes semelhanças com a própria natureza do abuso, na medida em que o assédio sexual e o estupro de mulheres podem deixar as vítimas ainda mais vulneráveis. Como em situação de terapia, elas têm que se defender e se expor, sofrendo novamente o trauma do abuso no contexto do movimento #metoo. Eventualmente, elas também têm de se pensar como objetos de seus agressores para poder se defender e revelar a verdade sobre o que aconteceu. Em outras palavras, longe de argumentar que o #metoo não é “realista” sobre o efeito nos desejos dos homens, minha crítica é que em alguns casos o #metoo já incorpora implicitamente os desejos dos homens na própria forma como as mulheres são “liberadas” para se vestir e se expressar. É claro que as Jenners e as Kardashians podem revelar o que quiserem, e claro que as mulheres podem fazer o mesmo e mais, sem terem de ouvir que são “culpadas” por incitar ou convidar ao assédio! O problema é que essa crítica óbvia não vai suficientemente longe — porque as limitações implícitas do ideal de beleza que muitas mulheres adotam com gosto já é parte da fantasia hétero-cis-masculina. Logo, não se trata de propor menos liberdade para as mulheres expressarem como se sentem bonitas, nem simplesmente versões cada vez mais intensas e explícitas de padrões de beleza já objetificados, mas, sim, e urgentemente, mais espaço para formas de expressão que problematizem, comentem e finalmente excedam esse padrão.

Selfies ou belfies

O estilo de Kylie Jenner, por exemplo, em sua conta pessoal no Instagram — universo em que se fundem várias contas de kyliejennercosmetics — foi replicado por ícones de beleza e influenciadoras ao redor do mundo, que se esforçam para apresentar um visual e uma narrativa similares ligados a seu próprio senso de identidade. Tais ícones/influenciadoras de beleza, como a austríaca Lisa Weinberger ou a greco-alemã Jenny Frankhauser, aparecem com os cabelos escuros e lisos, num “cenário natural”, ou com sua bunda em primeiro plano, no que se tornou conhecido como “belfies”. Como se respondessem a um “chamado” de alguém que estivesse atrás delas, e oferecendo suas “belfies” num relance, elas se viram para a câmera-olho, respondendo ao chamado de um interlocutor invisível que, em uma leitura althusseriana, poderíamos chamar de “interpelador da beleza”.3

Nessa interpretação, o “aparelho ideológico do Instagram” faz com que os olhos do espectador instituam um ato de submissão e, assim, o momento da beleza se torna o momento da objetificação, da mesma forma como no ensaio original de Althusser o momento da subjetivação é aquele em que se responde ao chamado da autoridade, sujeitando-se, portanto, a ela. De fato, nessas imagens, o sujeito feminino do Instagram parece estar dizendo: “Me pegue!”; o olhar sonhador de Kylie Jenner parece estar dizendo: “Eu quero você”; a pose de Lisa Weinberger diz: “Você me pegou desprevenida”; e Jenny Frankenberger parece estar dizendo: “Vem, eu te desafio!”. O que é notável aqui não é só como os corpos e poses das três influenciadoras se parecem, mas que todas convidam o interlocutor a “consumir” seus corpos e a comprar a beleza que elas usam. Elas pedem, em outras palavras, ação.

Embora o modelo althusseriano seja sugestivo aqui, o modo como Judith Butler o complica talvez seja mais adequado. Sim, se nessas imagens as mulheres se voltam para olhar o espectador, e nesse momento são interpeladas como sujeitos, sua autoafirmação se torna a asserção de uma identidade objetificada. Mas, como observa Butler, referindo-se à noção foucaultiana de subjetivação (assujetissement), o próprio ato de se tornar um sujeito sempre envolve “ligações apaixonadas” a modelos objetivados, de modo que o ideal (no final das contas masculino) de um sujeito perfeitamente autônomo nada mais é do que a fantasia patriarcal ahistórica por excelência.4 Somos sempre construídos de múltiplas camadas de práticas de gênero materializadas, todas elas uma performance de algo para alguém. Assim, em vez de projetar a autonomia total, seria necessário fazer conhecer essas práticas, na esperança de liberar uma variedade cada vez maior de modos corporais alternativos.

Como assinala Tania Modleski, “nossos modos de pensar e sentir sobre a cultura de massa estão intrinsecamente ligados a noções do feminino”.5 Um dos resultados dessa imbricação entre cultura de massa e noções implícitas e expectativas de feminilidade é que mesmo os discursos e formas de expressão que aparentemente desafiam o domínio masculino podem ao mesmo tempo reproduzir os tropos que o constituem. Portanto, ela observa que, enquanto os discursos que sugerem uma percepção do poder feminino dentro da cultura de massa possam ser “sedutores”, eles também podem estar meramente “mascarados como teorias de libertação”.6

Auto-expressão da auto-exploração

Isso me leva ao ponto crucial do argumento: essas influenciadoras estariam usando sua beleza para vender seus corpos, para vender produtos, para se vender a si mesmas, ou é simplesmente “um trabalho”? E se é “apenas um trabalho”, que mal tem? Para responder a essa delicada questão da “auto-exploração”, recorro ao excelente documentário The Disappearance of my Mother (2019), do diretor italiano Beniamino Barrese, que conta a história de vida de sua mãe, Benedetta, uma icônica modelo na Milão dos anos 1960. Ao mesmo tempo em que era uma modelo cobiçada, Benedetta era também uma feminista radical. No documentário, ela conta repetidamente ao espectador como se rebelou contra a ideia de que as pessoas estavam consumindo sua imagem e seu corpo. Em resposta, ela se separou de sua imagem corporal, fazendo todo o esforço para comunicar que o que as pessoas estavam olhando não era ela. O filme examina a relação contraditória que a modelo Benedetta tem com seu próprio corpo, um corpo que ela afirma ser apenas a concha de um “interior” ou uma “pessoa” que nunca será revelada em nenhuma fotografia. Ao mesmo tempo em que ela rejeita o culto à beleza e se recusa a ser interpelada pela beleza, ela vive o negócio e se expõe sucessivamente. É quase como se submetesse a uma espécie de auto-assédio. Também fica claro através da história de vida de Benedetta que os cultos à beleza são uma forma de adição ou, pelo menos, reforçam um comportamento já aditivo. Em seus últimos anos, Benedetta retorna na passarela para mostrar seu rosto, mas não a si mesma, uma vez mais. Aqui estão algumas das citações contraditórias, mas sempre tão reveladoras, que acompanham sua última dança com a cultura da beleza:

La bellezza non è un merito. Ma per niente.
[A beleza não é um mérito. De forma alguma]

Ho sempre avuto l’impressione che nessuno m’abbia mai fotografata. Perché la mia faccia non è in vendita.
[Sempre senti que ninguém nunca tirou uma foto minha. Porque meu rosto não está à venda.]

La mia persona non è fotografabile.
[A minha pessoa não é fotografável.]

O drama da beleza de Benedetta, tal como seu filho o apresenta, traz uma pergunta simples: quem “possui” sua imagem? Enquanto Benedetta vende sua beleza, ela reivindica sua individualidade e diz: “Não estou à venda”.

Essa reivindicação radical de propriedade de si pode, paradoxalmente, vir na forma de performances que imitam ou se aproximam de formas mais tradicionais de exploração. Tomemos a performer austríaca Valie Export, cujas ações nos anos 1960 muitas vezes consistiam em expor seu corpo ao olhar masculino e até mesmo ao toque, como no caso de sua famosa obra Touch Cinema. Nessa, Export perambulava em meio ao público, permitindo que os participantes introduzissem as mãos na caixa que ela usava ao redor de seu tronco e sentissem seus seios nus. Como escreve Liesbeth Den Besten, em contraste com seus colegas performers masculinos, Export “confrontou os transeuntes de forma mais íntima — mas não menos intimidadora —, enquadrando o corpo feminino como objeto de violência, assédio sexual e desejo”.7

Trazer Valie Export para essa discussão nos permite fazer uma ponte entre o uso “íntimo, mas não menos intimidante” do corpo e um domínio mais público. Enquanto para Benedetta a única saída para não ser consumida é se distanciar de sua imagem, Export se apropria dessa imagem (ou sentimento), ativando-a, confrontando-a, e até tornando-a intimidante. Assim, Export revela quanto o envolvimento com seus “seios públicos” é uma fantasia hetero-cis-masculina.

Quando vemos Kylie e suas seguidoras usando os tropos de sedução e auto-exploração com grande lucro, é difícil não levantar a questão mais fundamental e cotidiana do flerte em uma época em que os papéis e expectativas interpessoais e entre gêneros foram complicados pelos comportamentos expostos pelo #metoo. Como argumentam Bartlet et al., a relação entre feminismo e flerte sempre foi problemática, caracterizada por uma zona de conflito instável que vai de posições protecionistas ou “sex-negative” até posturas mais libertárias e “sex-positive”.8 Citam, sob esta luz, a observação de Carol Vance:

A sexualidade é simultaneamente um domínio de restrição, repressão e perigo, assim como um domínio de exploração, prazer e agência. Concentrar-se apenas no prazer e na gratificação ignora a estrutura patriarcal em que as mulheres agem, mas falar apenas de violência e opressão sexual ignora a agência sexual e a escolha das mulheres, além de aumentar involuntariamente o terror sexual e o desespero em que as mulheres vivem.9

De fato, na famosa resposta ao que muitos cidadãos franceses consideravam o novo puritanismo do #metoo, uma carta aberta publicada no Le Monde, assinada por Catherine Deneuve, declarava:

Acreditamos que a liberdade de dizer ‘não’ a uma proposta sexual não pode existir sem a liberdade de incomodar (a que se dá o nome de assédio, ou outras propostas sexuais explícitas). E consideramos que as pessoas devem saber como responder a essa liberdade de incomodar sem se limitar ao papel de presa.10

Mais uma vez, vemos o debate capturado pelo mesmo paradoxo: a auto-expressão feminina, a sexualidade e o desejo parecem inevitavelmente entrar em conflito com a necessidade de proteger as mulheres contra abuso, assédio e violência. Essa é a zona de conflito abordada no trabalho de Catherine MacKinnon a partir da estrutura legalista dos direitos à livre expressão. Para isso, ela levanta uma questão espinhosa: quando a fala deixa de ser “apenas palavras” para se tornar assédio sexual, e a partir de onde colocar limites? Como ela assinalou em 1993, “Há quinze anos os tribunais demonstraram uma compreensão real de que o que poderia ser chamado de fala, se forçado no molde abstrato da Primeira Emenda, são de fato atos de desigualdade, podendo, portanto, ser julgados como discriminação”.11

Para MacKinnon, a diferença entre a auto-expressão protegida por lei e o assédio ilegal está na questão do número de vítimas: “um dano cometido a uma pessoa é litigável, mas o mesmo dano feito a milhares de pessoas é discurso protegido”.12 Aqui deveria ser óbvio que, especialmente em termos legais, os direitos de qualquer mulher de se engajar em tropos de auto-exploração são tão ou mais invioláveis do que os dos homens de usar uma linguagem sexista contra as mulheres em geral. Em ambos os casos, no entanto, o ponto filosófico permanece: a fala nunca é “apenas palavras”, mas sempre também ação. E as ações, como argumentei com Althusser e Butler, são os elementos constitutivos das próprias identidades que procuramos expressar e/ou proteger do mal. Sob esta ótica, precisamos não de um discurso de proibição, mas de uma crítica que reconheça e revele, sem humilhação, onde e quando atos de auto-exploração reforçam a supremacia masculina. Também e talvez até mais importante, precisamos convidar e expandir aquelas instâncias de exploração e expressão feminina e de outros gêneros que explodem, ampliam e descortinam novos modelos de beleza.

Outras belezas

Um dos benefícios de multiplicar as possibilidades de autoexpressão é que, além de nos livrar da dicotomia entre feminismo sex-positive e feminismo sex-negative, também é útil na desconstrução do tipo de posições essencialistas que levaram a feministas proeminentes a se distanciar de pessoas transgêneros. Se olharmos para a questão não como uma divisão entre estratégias nefastas e libertadoras de exposição, mas como um espectro fluido de autodeterminações de beleza, a escolha de uma mulher trans de exibir seu corpo ou a autoexpressão de uma pessoa de gênero não conformista devem ser vistas e acolhidas como contribuições positivas para uma esfera de modelos de beleza em constante ampliação.

Como colocou a escritora feminista Laurie Penny, comentando sobre suas próprias visões feministas em desenvolvimento,

Hoje, sou uma feminista e uma escritora, mas não valorizo mais a Germaine Greer tão cegamente. Por um lado, Greer é uma entre tantas feministas, algumas delas muito respeitadas, que acreditam que as pessoas transgênero são perigosas para o movimento. O argumento delas é bem simples. Resume-se à ideia de que as pessoas trans reforçam o pensamento binário sobre o gênero quando escolhem se juntar à outra equipe em vez de desafiar o que significa ser um homem ou uma mulher. Greer chamou as mulheres trans de “paródia horripilante” da feminilidade. Os comentários de Greer sobre as mulheres trans exemplificam a luta geracional entre as feministas da segunda onda que buscaram expandir a definição de “mulher” e as feministas mais jovens que estão procurando categorias de gênero totalmente novas. Esta tensão tem sido cruel para as mulheres trans, caracterizadas como homens tentando infiltrar-se nos espaços das mulheres. Mas é alienante para todos os lados da comunidade LGBT.13

Devemos ver no gesto de Pennie algo análogo à nossa recusa em condenar ou julgar qualquer forma de expressão feminina, mesmo reconhecendo criticamente as fontes dos tropos, atos de fala e comportamentos que materializam as identidades que expressamos e sentimos a necessidade de proteger. Como quer o célebre dito de RuPaul, ecoando em termos populares os insights filosóficos de Judith Butler: nascemos nus e o resto é drag. Isso não significa minimizar o impacto fundamental desse “drag” para nosso próprio ser, nossa própria alma. Só porque os papéis de gênero são, todos eles, uma performance, isso não significa que não estejam escritos em nossa carne e ossos.

E só porque o gênero é performado, como Butler também enfatizou, isso não significa que esteja sujeito aos caprichos de um ego voluntarista. Nossas várias identidades estão escritas em nossa carne e ossos da mesma forma que nossas culturas, nossa classe, a pobreza e os privilégios. A beleza, então, se torna um ato de reconhecimento e valorização. “Isto é bonito porque me vejo nisso, e porque o reivindico como tal”. Por essa mesma razão, algumas das afirmações de beleza mais cativantes e radicais que conheço vêm de artistas de cor como Deana Lawson, a fotógrafa cujo trabalho conta histórias íntimas sobre ser negra nos Estados Unidos. Lawson, que frequentemente mostra as representações sensuais mais imersivas de corpos nus em conversa um com o outro, enquanto registra sua presença como fotógrafa, é conhecida por “canalizar as histórias pessoais e sociais do corpo” por meio de sua arte. Na fotografia “Mulher com criança” (2017), por exemplo, Lawson consegue contar a história de uma jovem (talvez) mãe solteira, que a olha diretamente nos olhos. Embora ela possa passar por apuros, não temos a impressão de que sua vida seja puro desespero.

Para mim, como espectadora e crítica, a honestidade das imagens de Lawson parecem de uma dignidade e uma beleza de tirar o fôlego. Ao mesmo tempo, é essencial notar que tal beleza funciona justamente porque transcende categorias fixas que nos enquadram e que perpetuam nossa objetivação. Como disse a artista Kandis Williams: “Estou impressionada com a facilidade com que as pessoas me objetivam com base em três palavras sobre a minha aparência: alta, negra, mulher. Eu literalmente nem sei o que as pessoas estão olhando quando olham para mim. Acho que devem ser tipo aparições que vão de Beyoncé ao King Kong”.14

No contexto latinoamericano, a rapper peruana Renata Flores lançou um single chamado “Tijeras”, ou “Tesouras”, que se tornou um grito de guerra do #metoo. “Meu grito”, ela diz num rap, “quem sabe se eu cantar bem, as pessoas vão ouvir”.15 A chave para entender tanto seu apelo quanto sua força política é o fato de que Flores não canta nem em inglês, nem em espanhol. Ela faz rap em língua indígena, a de sua avó: o quéchua.

A música e o videoclipe de Flores são ambientados nos Andes e contam tanto a história de sua avó quanto a das meninas do Peru rural atual, que precisam caminhar por horas para chegar à escola, às vezes sujeitas a abusos ao longo do caminho. Flores transformou essa experiência em arte. Seus versos não contam apenas sua história e sua dor, mas também refletem sobre a própria incapacidade de falar e de ser ouvida que faz sempre parte da violação. Como ela canta em quéchua (e um pouco de espanhol) com seu grupo de rap ft. Kayfex (2018),

Manan pipas qawanchu manan imatapas
Atinichu ruwayta, rimayta munani
Qhaparispanmi, tukuy runa
Manan uyarikunchu rimasqayta
Qinaspa nini: qhaparisaqmi
Icha qapariyta sumaqta takisaq
Chaynatan uyarinqaku runakuna
Llakisqa qawani aswan nanayta
Llulla runakuna
Manan allinta ruaspa
Ñuqanchiq quykunchik atiy ruasqayninta
Waytata rantispa?
Uyariy nisqayki
Uyariy nisqayki
Manchakuychu rimayta
Manchakuychu rimayta
Mírame, ahora soy más fuerte
Mírame, ya no tengo miedo
Ahora sí, tengo esperanza
Warmikuna quñusqa kasun

Ninguém vê nada
Não posso falar, eu quero falar
Com muito barulho, pessoas
Ninguém escuta o que eu falo
Então eu digo: Eu vou gritar
Talvez eu cante meu grito lindamente
E dessa forma as pessoas vão escutar
Eu olho com tristeza, com tanta dor
Pessoas mentirosas
Não se dão bem
Demos poder a eles
comprar flores?
Escute e contarei para você
Escute e contarei para você
Não tenha medo de falar
Não tenha medo de falar
Olhe para mim, agora sou mais forte
Olhe para mim, agora não tenho medo
agora, sim, tenho esperança
mulheres, vamos nos unir

Tão diferente de uma sedução, de um convite ao consumo, o ato de beleza de Flores é um ato de empoderamento. Ele afirma, exige ser visto, e ser visto no poder, não no medo, não na posse, mas como um ato daquelas que estão “unidas pela justiça”, como diz a faixa que as mulheres estão segurando. Não surpreende que não haja nenhum homem no vídeo desse rap pela liberdade quéchua.

Como a romancista Carmen María Machado comentou em um texto que saiu pouco antes de suas memórias, In the Dream House (2019), o corpo das mulheres e como elas são tratadas é um tema contínuo em seu trabalho. Os temas, porém, não são truques simbólicos que as autoras intencionalmente inserem em seus trabalhos, escondendo-os lá para serem encontrados, diz ela. Como ela diz, “estou interessada no corpo da mulher porque sou mulher e tenho um corpo, e vivo em um mundo onde o corpo da mulher é desvalorizado e tratado muito mal, por isso é algo que está na minha mente”. Em outras palavras, um tema como o abuso sexual ou a objetivação do corpo da mulher não é meramente algo colocado em um contexto maior; é “uma ideia ou uma questão que corre como uma veia através de qualquer coisa que seja. Ela convida ao questionamento, ela convida a este engajamento”.16

É precisamente na questão do tema que podemos situar o debate sobre o corpo belo na era do #metoo. Não é acidental. Não é uma causa ou uma explicação. Não é algo a ser censurado ou perseguido, justificado ou defendido. A beleza é um tema. Ela percorre o movimento como uma veia. Ela convida ao questionamento e ao engajamento. A beleza é atraente, é claro, porque é uma “promessa de felicidade e sucesso”.17 Mas é também, fundamentalmente, expressão de si, da diferença, de múltiplas e quiçá infinitas sedimentações de dor e experiência que criam as identidades que então expressamos e protegemos.

Como Laurie Pennie coloca, concluindo seu poderoso ensaio,

Eu sou uma mulher, politicamente, porque é assim que as pessoas me veem e é assim que o estado me trata. E às vezes eu também sou um menino. Gênero é algo que eu performo, quando coloco meu “binder”18 ou pinto minhas unhas. Quando ando pela rua. Quando falo com meu chefe. Quando beijo meu parceiro com suas maquiagens e saltos altos. Eu não quero ver um mundo sem gênero. Quero ver um mundo onde o gênero não seja opressivo ou imposto, onde existam tantas maneiras de expressar e atuar e se relacionar com sua própria identidade quanto há pessoas na Terra. Eu quero um mundo onde o gênero não seja doloroso, mas alegre. Mas até lá, nós temos este. E enquanto tivermos que navegar por um binário de gênero que está fundamentalmente quebrado e um sistema de classes sexuais que busca nos quebrar, fico feliz em trair o meu gênero. Sou uma mulher queer — e uma feminista. Os pronomes que prefiro [quando se referem a mim] são “she” ou “they”. Acredito que estamos a caminho de um mundo melhor. E você pode me chamar de Laurie.19

É difícil pensar em uma melhor declaração de princípios em torno da noção do corpo belo na era do #metoo. Pois se a beleza atravessa a dor do movimento, ela é igualmente central para seu objetivo. A libertação do medo, de servir aos desejos de alguém cujo desejo eu não quero ter nada a ver. A libertação da necessidade de mudar a si mesmo, de se tornar algo diferente do que somos.

Enquanto estava envolvida com a cultura da beleza influencer no Instagram durante essa pandemia global e me perguntava por que todas as mulheres têm cabelos lisos ou trançados e por que raramente vemos um cabelo “revolto” ou mesmo “afro”, recebi um e-mail com a newsletter mensal das fundadoras do movimento #metoo.

Prezada amiga,


Abril é o mês da Conscientização contra o abuso sexual e estamos tomando providências para entender o que este momento significa para as sobreviventes. […] Criamos um toolkit para ajudar as sobreviventes a articular algumas coisas que você possa estar sentindo, te dar um chão, e também as ferramentas necessárias para ajudar a cuidar de si mesma enquanto você navega pelos efeitos desta pandemia. Você pode ver o toolkit aqui.

Vamos superar isto juntas.


Atenciosamente, Tarana, Dani, Denise, Khadijah, Luann, Rebecca e toda a equipe do #metoo”.

Quando clico no toolkit, vejo dicas de sobrevivência, encorajamento e, sim, o tema da beleza: “Todas nós temos capacidade de crescimento pessoal, cura e mudança. Escolher fazer esse trabalho de forma proativa em parceria com outra pessoa é corajoso, ousado e bonito”. O movimento é persistente. Ele fala comigo, quer eu queira ou não ouvi-lo. Atinge-me no isolamento que a pandemia nos impôs, uma prisão que abate tantas mulheres com ainda mais ameaças de abuso do que antes de estarem confinadas, talvez horrivelmente, com seus agressores. Mesmo ali, naquele espaço de cura, o belo corpo feminino, tal como é imaginado e fantasiado na ordem mundial hétero-cis-masculina, é um tema sempre muito presente. Mas a beleza não é definida pelo olhar masculino, eis a questão. Precisamos encontrar e libertar novos modelos de beleza, não aqueles que acionam e retraem, mas que nos alcançam em nosso isolamento, uma espécie de escada para fora da escuridão, nos guiando ao eu que sempre soubemos ser.

Quero concluir com algumas imagens revigorantes e coloridas de TT a artista, que traz questões de empoderamento feminino negro e positividade negra para uma prática artística que inclui a pintura, a moda, a música e o cinema. Sua série de arte pop negra Divas do Hip Hop, por exemplo, pode ser lida como uma forma de contra-interpelação que tenta descolonizar o corpo feminino negro, libertando-o da supremacia branca com seu olhar que consome e explora. TT a artista conta que criou estas Divas do Hip Hop porque queria honrar sua própria música e os ícones da moda de sua infância, mas também queria dar a elas uma agência que elas nunca tiveram: “quando a arte pop estava se desenvolvendo na América, os negros não foram representados em sua verdade como belos” (Entrevista com a autora, 2019).

O humor é essencial para essa intervenção. Na pintura abaixo, ela apresenta o ícone de beleza Kim Kardashian com uma “belfie” reveladora. Como Kylie Jenner e suas seguidoras-influencers nas redes sociais, Kim é retratada com um sorriso convidativo na cara, mas ao expor de fato suas nádegas ela não deixa qualquer dúvida sobre o que a belfie realmente implica: sexo. Ao escancarar essa verdade, a ofensa parece menos palpável. Na verdade, nas mãos de TT, ela é reconfortante.