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O Brasil nos tempos de destruição destrutiva

Ainda há risco de golpe?

Betume 1, Eduardo Climachauska

Bolsonaro — existe um acordo geral dos analistas a respeito — convocou suas falanges à praça pública no dia 7 de setembro imbuído da satisfação de um desejo golpista, adquirido por formação e peregrinação. No futuro, os biógrafos deverão descrever um fascinante personagem do poder político, raso e desprovido de glória e de labirinto. Embora não despreze a importância de estudos psicológicos na compreensão e explicação da personalidade autoritária, no plano da política, invocando o fascismo histórico, o objetivo número 1 do indigitado personagem no dia 7 visava realizar uma recriação imaginária e tropical de uma Marcha sobre Roma 99 anos depois. Acossado que está pela CPI do Coronavírus e os processos no STF, a tática é sempre dobrar as apostas, especialmente nos momentos de dificuldades.

Significante vazio, o “mito” detém o comando de um movimento de massas de base popular, reacionária. A retórica cativou apoio fiel de segmentos da classe média tradicional e ressentida. Mantém a fidelização das frações burguesas do pequeno e médio comércio varejista. Esse comerciante pequeno-burguês, arruinado pela pandemia, acossado pela concorrência e reconcentrações na esfera do grande varejo, tipo Amazon e Magalu, tem motivos objetivos para se voltar contra a política econômica de Bolsonaro. Mas a subjetividade, a ideologia, fala mais alto. Compõem a base de apoio os setores emergentes de base regional, policlínicas e planos de saúde, madraças do comércio de armas, novos empresários da construção civil e do agronegócio da fronteira agrícola e extrativista. Essa turma topa tudo e sempre gostou de gastar dinheiro em financiamento político. São milhões de pessoas — segundo o Datafolha (16/9/2021), o bolsonarismo raiz representa 11% da população, majoritariamente de homens maduros, radicalizados politicamente e idade e renda acima da média da população. Enfim, uma base passível de ser maioria ou minoria eleitoral (e não ainda hegemonia política), a depender das peculiaridades da conjuntura. Não se sabe até quando — pois há uma fadiga de material e desgaste do poder de entrega do governo —, ainda assim, constitui um exército suscetível ao chamado do líder. O bolsonarismo, por sua vez, é um movimento de bases sociais e interesses articulados de classe suficientemente denso para sobreviver a uma saída de cena do líder.

Já não é novidade entre os analistas considerar o bolsonarismo um tipo de movimento work in progress. Eclético, maleável, pragmático, antintelectualista e voluntarista, suficientemente lasso para abrigar múltiplas tendências, uma fauna de anarcocapitalistas a anticapitalistas românticos, de neonazistas a sionistas etc. A pauta da extrema direita raiz de guerra permanente é elástica, mas tem limites. A pauta ideológica — eis o grande impasse do governo — é muito distante dos problemas econômicos e sociais da presente crise (a percepção de 69% da população é de piora da economia, segundo o Datafolha de 20/9). Mas, não se deve desconsiderar, relativo à capacidade de mobilização de rua, o fato de o bolsonarismo ser governo, moer uma máquina chapa branca de cargos comissionados, mandatos parlamentares, alianças e convênios com ONGs, pastores e igrejas.

Por que Bolsonaro recuou?

A principal debilidade estrutural do bolsonarismo reside no fato de faltar a esse movimento agregar suas vertentes em um partido político. O partido do bolsonarismo são as redes sociais, uma inovação dos neofascismos do século XXI, mas também a prova de uma debilidade orgânica. Seria “clássico” dizer que o partido é sempre uma necessidade, à direita e à esquerda, mais que para disputar eleições, nas quais estão à disposição as legendas do centrão, na montagem e estabilização de um Estado Maior político. Um contrapeso importantíssimo à ausência de partido vem a ser a forte presença do bolsonarismo (ideologia e prática) — competição hoje inalcançável na esquerda brasileira — nos aparelhos de Estado, especialmente nas forças armadas e nas polícias militares, mas também na esfera judiciária. Trata-se, nesse aspecto, de um neofascismo mais condizente com as experiências latino-americanas, mas também mais limitado no aprofundamento da experiência. O bolsonarismo já fez e continua a fazer nestes espaços, dia e noite adentro, aquela “longa jornada por dentro do aparelho de Estado”.

O ato de 7 de setembro expôs à luz do dia os recursos e as fragilidades contraditórias do chamado a um coup d’État. Ele não contou com a adesão dos comandos e tropas das forças armadas e das polícias militares estaduais. Os partidos da ordem, como o PSDB, o DEM e o PSD declararam no Congresso afastamento da aventura e a criminalização o golpe, possibilitando a deflagração de um impeachment. Bolsonaro recuou e foi pedir arrego a… Michel Temer. Observe-se que o arrego desanuviou o clima pesado das forças políticas tradicionais e do STF contra Bolsonaro. Contudo, vejo no mínimo exageradas as interpretações que veem no arrego a reedição de um consistente “acordo por cima das elites”. Nem como tragédia nem como farsa.

Ao confundir sua pantomina com a história universal, Bolsonaro não ostentou a virtù (e lá se vai o tempo perdido de quase três anos de governo) de reencarnar o espírito de Luís Bonaparte em 1851 (18 de Brumário e Segundo Império) ou de Getúlio Vargas em 1937 (Estado Novo) — nem que seja convocando a espada da ditadura —, capaz de resolver crises em benefício da grande burguesia brasileira e internacional. O presidente é sempre a crise, pura destruição destrutiva. Revelou-se um presidente incapaz de liderar uma coesão burguesa, de constituir um bloco histórico de algum futuro. Antevejo uma mudança importante no comportamento de classe da burguesia, pois havia alguma ilusão nas eleições de 2018 e nos primeiros dias de governo que Bolsonaro conseguiria reencarnar um Bonaparte exitoso e não apenas um extravagante Napoleão de hospício. A fórmula de Paulo Guedes/Posto Ipiranga/Animador de Mercados rendeu lá seus favos de mel ao capital (reforma da previdência, venda de ativos da Petrobrás etc.) e apenas sobrevive. As movimentações críticas às vésperas do autogolpe, da parte de entidades como a Febraban, a maioria da Fiesp, másters do agronegócio etc. demonstram cabalmente.

Como é possível mobilizar pelo impeachment?

Todas as pesquisas recentes de opinião confirmam, há mais de três meses, que a sociedade se decidiu sem retorno à vista, em prol do impeachment de Bolsonaro. Consolidou-se a imagem do um presidente majoritariamente inconfiável — o mais grave dos defeitos atribuídos a um chefe de Estado. Bolsonaro caiu, mas ainda não está na lona. São índices expressivos das dificuldades do governo. Números de pesquisa ajudam, mas ainda são insuficientes para depor o presidente. A conjuntura é sinuosa: se os números, por si só, não derrubam, por outro lado, demonstram a possibilidade de engrenar um poderoso movimento de massas.

O balanço dos atos da campanha do impeachment comprova que foram organizados atos interessantes, mas a campanha não chegou a decolar. Criou-se uma situação de perigoso equilíbrio. Tanto a pauta de extrema direita do bolsonarismo raiz não interage com as aflições de reprodução de vida do Brasil popular, em crise, mas tampouco a campanha do impeachment, até o momento, avançou até o ponto de constituir um irrefreável movimento de massas. Existe o fator positivo de a esquerda brasileira conseguir aparar diferenças (a pergunta que dividia era se devia ou não sair às ruas em tempos pandêmicos) e se unificado numa campanha de rua reivindicando o impeachment de Bolsonaro pelo menos desde os atos de 29 de maio.

Os atos cresceram nas ruas e angariaram indisfarçadas e surpreendentes simpatias, até na imprensa tradicional, nos meses de junho e julho. Beleza. O ápice dos atos aconteceu nos dias 19 e 26 de junho. Em seguida, no dia 30 daquele mês, partidos políticos, parlamentares e entidades da sociedade civil protocolaram na Câmara dos Deputados o chamado “superpedido” de impeachment do presidente da República. Era o momento efetuar a transição do momento para o chamo de fase “de colunas” da bolha de partidos e movimentos de esquerda para a fase de constituição de um “palanque” institucional representativo de todo o espectro do “superpedido”. A oportunidade se perdeu. Depois disso não aconteceu mais nada digno de grandes manchetes. Bolsonaro, um sujeito de todos os defeitos e muita sagacidade, aproveitou o hiato e convocou os atos de 7 de setembro.

Já virou moda citar em todos salões o movimento das Diretas Já. Era outra conjuntura, sem dúvida. Mas relembre-se que as diretas combinaram um amplíssimo palanque de lideranças políticas com um poderoso movimento de massas. Até hoje não se viu um governador ou um prefeito de esquerda num palanque clamando o impeachment de Bolsonaro. Acomodam-se às redes sociais. Raríssima a publicidade circulando a palavra de ordem nas cidades. Para se comparar a distância abissal dos investimentos políticos, basta dizer que os comícios na reta final da campanha das diretas na Candelária e no Anhangabaú, nos estertores da ditadura, contou com a colaboração dos governadores Franco Montoro e Leonel Brizola em medidas de decretação de ponto facultativo e na liberação das catracas do metrô de São Paulo.

Frente Ampla, sim ou não?

Acho que a pergunta sobre a frente ampla formulada em termos peremptórios de “sim” ou “não” embute algumas ciladas. Evidentemente, uma campanha pelo impeachment de Bolsonaro precisa evoluir, em algum momento, na direção de um movimento assemelhado a uma Frente Ampla que espelho um movimento de massas e não um programa de governo, coisas diferentes que não devem confundidas. Assim, a concertação de um movimento unificado de impeachment urge, pode ser articulado, mas é distinto do objetivo de as forças de identidade progressista evoluírem para uma unidade das forças populares. É necessário envidar esforços políticos no rumo de estabelecer um acordo permanente das forças progressistas. A adesão a uma Frente Ampla democrática e antibolsonarista deve ser concertada a partir da unidade sem diluição orgânica das forças populares. Na atual conjuntura, acho inevitável que o acordo das forças progressistas se dê no âmbito da campanha de “Lula presidente”. Os termos de um programa de unidade das forças populares envolveriam a crítica às transformações recentes do país. Afora medidas de emergência e transição de estancar a crise, um bom começo de um novo governo de tangenciar seria priorizar o pensamento de três temas:

  1. Reestruturar a dialética de desconstitucionalização em curso no mundo do trabalho. Generalizou-se uma perda de dinamismo nos processos de ascensão social no país, especialmente nas classes trabalhadoras e nas camadas médias. Joe Biden, nos Estados Unidos, alertou recentemente da necessidade de criar empregos sindicalizados, ou seja, em outras palavras, empregos formais.

  2. Reformar o bloco no poder e as alianças no âmbito do Estado, de modo a conter o domínio absoluto do sistema financeiro financista-rentístico, da burguesia agrária e da burguesia comercial.

  3. Interpelar a espinhosa questão do excedente de poder de duas corporações do Estado, a militar e a judiciária.