Não violência enquanto prática contra o Estado
Resenha de A força da não violência: um vínculo ético-político, de Judith Butler
O livro A força da não violência: um vínculo ético-político foi publicado originalmente no começo de 2020 pela Verso Books e sua primeira edição brasileira, com tradução de Heci Regina Candiani e prefácio de Carla Rodrigues, foi lançada em 2021, pela Boitempo.
De antemão, Butler esclarece que a não violência não é sinônimo passividade e contesta a codificação da violência como aquilo que está fora do Estado. Ressalta, a partir de Fanon, os esquemas histórico-raciais que enquadram a violência estatal como justiça, produção sancionada pelo Estado contra quem é nomeado, lido e visto como “ameaça”, Outro racializado contra quem se justifica a segurança da sociedade. Tal presença fantasmática de Outrem é produzida em um campo discursivo e encarnada como ameaça a laços e a ordens sociais, “inimigo” convertido em alvo da violência justificada como autodefesa.
As considerações de Butler sobre violência sistêmica e vida psíquica do poder remetem a seu texto,1 de 1992, a respeito do vídeo no qual Rodney King é brutalmente agredido por policiais, violência lida pelo júri como legítima defesa, uma vez que King encarna a “ameaça” ao corpo identificado como “nós” pela paranoia branca. Ao evocar a zona de não ser2 postulada por Fanon em Pele negra, máscaras brancas,3 Butler insiste que certas vidas são percebidas como mais enlutáveis que outras, sendo consideradas vidas que importam aquelas que “têm forma física na esfera da aparência” (p. 26). Corpos e vidas que não importam seriam aqueles codificados como fora do conjunto lidos como “eus” defensáveis, conjunto esse que define os termos da autodefesa legítima a partir de uma relação de identificação e comunidade, na qual o “‘eu’ pode funcionar como uma espécie de regime, incluindo como parte do seu eu estendido todas aquelas pessoas que compartilham com ele semelhanças de cor, classe e privilégios, excluindo do regime, portanto, aquelas que são marcadas pela diferença no interior dessa economia” (p. 26).
Se, por um lado, a definição do “nós” defensável4 se sobrepõe ao que está enquadrado como interior à ordem estatal, por outro o “eu” também é circunscrito de maneira relacional a partir de laços sociais. Um dos principais movimentos do livro é instaurar novos quadros de referência para uma leitura da violência — que é sempre interpretada. Ao propor a não violência como uma prática agressiva, Butler se lança em um movimento espiralado cujo alvo é o esquema de fantasmagoria justificador da violência de Estado ou da autodefesa legítima para determinados grupos por meio da destruição violenta de outros. A presença fantasmática de uma ameaça à ordem ou aos laços sociais é interpretada frequentemente como uma agressão já realizada que justificaria a violência defensiva, autorizando a exceção à proibição de matar que materializa uma economia do poder de morte orientada por uma cena fantasmática, cena essa que formula o ato de eliminar uma ameaça como externo a quem o inflige de fato.
Operações como a ambivalência e denegação são, apreendemos do texto, estruturantes das realidades psíquicas tanto do “eu” autônomo, como das relações sociais. O ponto em que a política é inseparável do pensamento psicanalítico é a dimensão fantasmática existente na paranoia persecutória. Segundo Butler, “a ideia de que outras pessoas poderiam fazer o que me proponho a fazer com elas” é reformulada como agressão que poderia ser dirigida contra mim e justifica minha paranoia. “Posso usar esse fantasma persecutório como justificativa para meus próprios atos de perseguição” (p. 74). A materialização da destrutividade como agressão desejada ou temida é operada por meio da denegação.
Tal qual a constituição do “eu” da legítima defesa, a vulnerabilidade é relacional e a interdependência pode tanto possibilitar a vida como “ser uma condição para a exploração e a violência” (p. 49). Uma ética da não violência é postulada como luta contra a violência sancionada pelo Estado ou atuada no exterior da máquina estatal por “nós” contra “outrem”, contra a parte à parte que, seja nomeada “ameaça” ou “vulnerável”, não é tida como contendo vida cuja perda se chora e, portanto, pode ser aniquilada ou deixada para morrer. Da psicanálise também provém o questionamento de autore a respeito do individualismo liberal e da valoração da distribuição diferencial da vulnerabilidade e do direito ao luto, de forma que a interdependência vai lado a lado com suas reivindicações de igualdade.
O poder de morte se materializa tanto pela inserção no regime de “eus” de outres reconhecides como parte da parte, cuja condição de reconhecimento implica uma vida tutelada/policiada, como pela ereção de fronteiras para além das quais outrem deve ser rechaçado e cuja travessia é tida como “atentado”. Vale destacar que a investigação de Butler transita por formações psíquicas codificadoras de termos cuja interpretação sua escrita desloca ao (re)nomear. Se um primeiro momento consiste em perguntar (por) quem se mata em nome da defesa de direito, o texto dá voltas para recolocar a pergunta: o que faz “eu” querer “preservar a vida de outrem” [cap. 2]? Trata-se, pois, de fazer ver as operações do esquema racial tanto na esfera legal como subjetiva. Para além da proposta de “igualdade radical” que poderia ser garantida a partir de um conjunto de obrigações globais, parece mais interessante reter do livro os enunciados que buscam instaurar discursivamente quadros referenciais que deslocam as definições da não violência. Os movimentos dos textos são operações de nomeação pelas quais a distribuição diferencial da precariedade e da subjugação da vida ao poder da morte são trazidas à vista, tornando-se possível que se leia a violência enquanto conjunto de práticas sistêmicas que podem assumir moldes mais ou menos paternalistas, indiferentes ou assassinas.
As perguntas que surgem dos novos quadros propostos pele autore tornam mister que sejam nomeadas quais populações não se codifica como enlutáveis nos enquadramentos racistas do visível. A leitura pede de quem lê uma “consideração biopolítica” em torno do valor que se atribui a algumas vidas e não a outras, ao conjunto pressuposto de seres defensáveis e a outrem que “eu” salvaguarda ou abandona (deixa morrer/não considera enlutável).
Um éthos de não violência deve, então, enfrentar “a distribuição diferencial do direito ao luto” (p. 58). Butler retém de Foucault que o direito à vida não existe a priori e sustenta que a própria constituição da vida enquanto direito já se dá no “esquema histórico-racial” fanoniano [cap. 3]. Para além da lógica de guerra baseada na destruição do adversário político, na qual, para não morrer, se deve matar, interessam ae autore as tecnologias de fazer viver ou deixar à morte determinadas populações. O texto recorre ao curso Em defesa da sociedade, no qual Foucault apresenta o racismo moderno como “condição para que se exerça o poder de matar”, de forma que o funcionamento do Estado está ligado ao racismo na economia do biopoder, ainda que o poder de matar não seja exclusivo do Estado. Tanto Butler como Foucault deixam claro que o poder de matar não é necessariamente atuado no “assassínio direto, mas também [em] tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc.”.5 Ecoando Ruth W. Gilmore,6 que define “racismo” como a produção, sancionada pelo Estado ou exterior à sua burocracia, da exposição de certos grupos a maior suscetibilidade à morte prematura, Butler sugere que a distribuição diferenciada do direito ao luto é o que assinala populações contra as quais incide a produção da morte. Enquanto, diz elu, a vida de um sujeito lhe é atribuída e assinalada como passível de ser protegida pela sua constituição de direito, a vida de determinadas populações está condicionada a sua assinalação como potencialmente enlutáveis. Um complemento a Foucault por meio de Fanon é a tese sustentada pele autore ao afirmar que a distribuição da morte e do direito ao luto pelo campo social opera pela racialização, ou seja, pela materialização “dos esquemas raciais nas figurações raciais do que é vivo, dos fantasmas sociais que moldam as avaliações demográficas de quem é enlutável e quem não é, a quem pertence a vida que deve ser preservada e de quem é a vida que pode ser eliminada ou abandonada à morte” (p. 97). Assim, entrelaça o poder que alveja e o que deixa morrer, indicando que o esquema racial se materializa na leitura do que conta como vivo. Nesse entrelaçamento, e autore retoma a noção de racismo de Estado para abordar a métrica do direito ao luto e a “convergência da lógica biopolítica do esquema histórico-racial com as inversões fantasmagóricas” (p. 101), empregando o termo fantasmagórico para “refletir sobre a inter-relação entre fantasias conscientes ou inconscientes, socialmente compartilhadas ou comunicáveis, que assumem a forma de uma cena” (p. 43). Tal fantasmagoria pode ser formulada como “eles virão nos destruir, destruir nossa cultura…”, e sustentam convicções que autorizam a “destruição violenta — ou lenta morte em campos de detenção — contra a população que é interpretada […] como o centro de destruição” (p. 61).
Butler recorre a Benjamin no que diz respeito à nomeação da violência e não violência, enfatizando a necessidade de ponderar quais pressupostos enquadram o campo visual e renomeiam o caráter violento da violência legal como “coerção justificável ou força legítima, tornando menos chocante a violência em jogo” (p. 109). Ao nomear violento aquilo que se opõe à sua legitimidade, o Estado dissimula e promove sua própria violência de direito. É a fantasmagoria racial que possibilita a reprodução da violência de Estado ou de uma comunidade cuja destrutividade é renomeada — justificada — como autodefesa, “então essa violência é transferida, encoberta e autorizada por essa moralidade racista que atua, sem distinção, em defesa da raça e do racismo” (p. 118). Esquemas justificatórios emergem na interpretação de cenas fantasmáticas e operam na legitimação da destruição de populações que corporificam e prenunciam a destruição.
Ao lançar mão do exemplo europeu, no qual impedir a entrada de imigrantes se apresenta como fantasia e desejo de preservar a branquitude de uma Europa que nunca foi exclusivamente branca, Butler evoca o que Mbembe nomeou necropolítica. Uma prática reiterada de violência se consolida a partir do esquema racial no qual vidas de pessoas migrantes nunca foram consideradas enlutáveis, nunca foram assinaladas como vidas. “Elas são tratadas como além da perda, já perdidas, nunca vivas” (p. 101). Formas tácitas e até inconscientes de racismo estruturam o discurso estatal e público sobre violência e não violência e formulam a fantasia persecutória que interpreta a violência como proveniente de populações que não seriam enlutáveis posto que mantidas invivíveis. Assim, consolidam-se cenas por meio das quais a exteriorização modula a negação social e a distribuição do luto e da morte.
Tal operação de exteriorização da violência — ou da destrutividade — é facilmente compreendida na pergunta: “Será que o policial que estrangula uma pessoa até a morte imagina que alguém a ponto de morrer está realmente pronto para atacar, ou que sua própria vida está em perigo? Ou será simplesmente que a vida dessa pessoa é uma daquelas que pode ser tirada, pois não é considerada vida, nunca foi vida, não se encaixa na norma de vida que faz parte do esquema racial e, portanto, não é assinalada como enlutável, merecedora de preservação?” (p. 98). Racialização e generificação se apresentam como procedimentos de assinalação de alvos que são eliminados em ações quase sempre justificadas como autodefesa (defesa legítima de si, de sua comunidade, sociedade ou nação). A violência do policial é codificada como justa em um processo reflexivo que inverte movimentos e figuras, permitindo ler e ver como ameaça quem é historicamente alvo de destruição — Rodney King, Walter Scott (e George Floyd e Amarildo e “26 suspeitos mortos em ação policial”7…). Butler segue: “a violência que o policial está prestes a cometer, a violência que ele acaba cometendo, já avançou em sua direção como uma figura, um fantasma racializado, condensando e invertendo a própria agressão, brandindo a agressão contra ele mesmo, agindo por antecipação aos próprios planos de agir, legitimando e elaborando, como em um sonho, seu argumento final de autodefesa” (p. 99).
Nas perguntas em torno da materialização da fantasmagoria racial e da destrutividade, nos é oferecido um quadro referencial que entende os laços sociais como “baseados em formas corporificadas de interdependência” (p. 119). Daí que a aposta na não violência de Butler pressuponha a consideração da interdependência, na qual “o indivíduo não é substituído pelo coletivo, mas formado e carregado de laços sociais que se definem por sua necessidade e sua ambivalência” (p. 119). Com isso, preservar a si seria igualmente percebido como a necessidade de preservar a vida de outrem.
No último capítulo do livro, um ethos da não violência é encontrado em conversa de autore com Einstein e Freud, pensativos e preventivos entreguerras e frente à crueldade e à destrutividade de cada ume e de Nações. Butler encontra na inconstância de Freud sobre amor e pulsão de morte “um problema que perdura enquanto ele tenta refletir não apena sobre as relações íntimas do amor, mas sobre a psicologia das massas e seu potencial destrutivo” (p. 131). Indo mais além, é na mania que elu busca “pistas de um tipo diferente de resistência contra a destruição” (p. 132), abrindo caminhos não para uma defesa da mania, mas de um tipo de prática crítica “maníaca” que pode se voltar contra “objetivos suicidas ou assassinos do superego”, afirmando-se como “solidariedade insurrecional” (p. 133).
Por fim, no pós-escrito do livro, Butler retoma a forma como em discursos sobre “grupos vulneráveis” se “reproduz o poder paternalista e dá autoridade a agências reguladoras com limitações e interesses próprios” (p. 143). Daí que e autore se mostre interessade na relacionalidade da vulnerabilidade, bem como na possibilidade de identificar atos de resistência no interior de relações em que algumes estejam em posição vulnerável em determinado momento. Quando evoca es refugiades de Würzburg que, em 2012, costuraram a própria boca em protesto contra o silêncio das autoridades alemãs no que dizia respeito à reivindicação pelo fim da política de Residenzpflicht, Butler se distancia daquilo que Agamben formula como “vida nua”, focalizando nas formas de sociabilidade e possibilidades de manifestação na esfera de aparência da presença viva de pessoas menos valiosas na métrica do poder de morte. Daí que a proposta ética de Butler se configure em termos de instaurar um “imaginário igualitário que capta a interdependência das vidas”, ou seja, de como seria possível desestabilizar os quadros referenciais existentes para “criar uma nova realidade que não dependa da lógica instrumental e da fantasmagoria racial que reproduz a violência de Estado” (p. 155).
Ao longo do texto, a não violência igualitária e democrática que Butler imagina poder ser reivindicada/formalizada por meio de um “conjunto de obrigações globais” reguladas já é, ainda e de novo, violência. No entanto, para ume leitore atente, as espirais de autore em torno das possibilidades de uma prática agressiva da não violência provocam um deslocamento no olhar de quem lê. O idealismo igualitário de Butler pode ser “irrealista e inútil” enquanto proposta de mundo (im)possível, mas abre caminhos e olhares para fora da recitação da violência de direito. A partir daí, a insistência em repensar e renomear o não violento passa por uma necessária contestação dos sistemas de legitimação do uso da força, impossibilitando que se entenda como violentas as táticas usadas por pessoas que estão na linha de frente de manifestações, enfrentam a violência policial, estilhaçam vidraças ou cruzam fronteiras ilegalmente. Pode-se inferir disso que a não violência deva ser formulada enquanto nomeação e combate à violência de Estado e ao esquema racial que a enquadra. O que é o mesmo que dizer, ainda que Butler não chegue a essa conclusão, que a violência é sempre do Estado, ainda que nem sempre seja atuada por seus agentes oficiais, e que é o próprio Estado que deve ser combatido. E aqui se trata tanto do aparelho estatal como da forma-Estado do pensamento.