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Não violência: diferença, emancipação e capitalismo

Resenha de A força da não violência: um vínculo ético-político, de Judith Butler

Nos rastros deixados por Adorno, haveria hoje uma dupla exigência para refletir a respeito da filosofia moral. Primeira, evidenciar que as condições sociais objetivas realizam uma situação de completa fungibilidade do ser humano, realçando o fato de que qualquer vida se torna uma abstração supérflua por ser inteiramente substituível no interior do processo social. Segunda, refletir acerca da possibilidade de se levar uma vida correta no interior de formas de sociabilidade que, ao produzir sofrimento ostensivo, parecem implicar todo indivíduo e ação no horror generalizado. Para respeitar essas exigências, qualquer discurso ético que pretenda caminhar pelas ruínas da metafísica ocidental e mobilizar seus destroços precisa erigir a violência como um tema premente de reflexão.1

Pode-se pensar esse como um ponto de partida para o recém-traduzido livro de Judith Butler: A força da não violência: um vínculo ético-político.2 Na obra, retornam muitos autores, assuntos e conceitos já trabalhados por Butler, mas agora reordenados a partir da discussão a respeito do binômio violência/não violência. Sujeito, vulnerabilidade, ética, Outro, diferença, opacidade, enlutabilidade — todos esses referenciais voltam, agora articulados para efetuar uma economia da violência contemporânea, suas formas de produção e circulação, e a defesa enfática de uma ética-política de não violência como uma forma de construir e habitar um novo mundo, e não apenas como escolha tática residual. Essa ética estaria comprometida com uma ruptura em relação ao ciclo infinito de violência no qual chafurdam as sociedades contemporâneas. A saída seria construir e promover um ideal normativo que entrelaça diversos elementos: o imaginário de uma igualdade radical, a conexão necessária entre todas as formas de existência (humanas e não humanas), o direito universal ao luto, a proteção estrutural da vida contra a destruição, a redução da vulnerabilidade causada por desequilíbrios sociais e ecológicos.

É uma aposta alta em um momento no qual o imaginário dominante caminha para o outro lado. A ideia de que apenas a violência poderia pôr fim à violência parece ser hegemônica, da direita à esquerda. Contra essa disposição, Butler começa desfazendo uma série de mistificações que foram criadas em torno do tema, seja pela doxa liberal dominante, seja por algumas alternativas pretensamente emancipatórias. Ao longo do livro, ela explica como a violência se tornou uma prática social reiterada, não sendo ato isolado; como essa violência reiterada é o desdobramento de estruturas sistêmicas de agressão à vida; como a autodefesa é uma argumentação equivocada para justificar o recurso à contraviolência; como essencializar os conceitos de violência e não violência não resolve o problema; como a disputa semântica por esses conceitos é fundamental; como o relativismo total sobre o assunto é perigoso; como a violência revolucionária é apenas uma pseudosolução; como as profundas raízes psíquicas da agressividade impedem uma eliminação total do ódio. Apenas nessa listagem, já haveria um repertório imenso de discussão, e de saudável polêmica, que Butler decide enfrentar em um livro altamente condensado.

Ainda que possam existir outros, um fio que permite ordenar todas essas questões a partir de um referencial filosófico é o de um tema constante na obra de Butler: o problema antropológico. Desde o início, ver, por exemplo, seu primeiro livro, Subjects of Desire,3 fruto de sua tese de doutorado, o pensamento de Butler acerca da antropologia filosófica se desenvolve na esteira do pós-estruturalismo, ainda que ela interprete essa teoria sob o pano de fundo hegeliano do desejo de reconhecimento, em uma instigante convergência que tensiona parte da herança do idealismo alemão através de estratégias discursivas caras à filosofia francesa contemporânea. Porém, em sua inflexão para tópicos clássicos da filosofia política e moral, especialmente a partir do início do século, Butler estabelece pontes também com autores que destoam de suas influências iniciais. Sem deixar de lado sua matriz originária, além de todo o debate com a psicanálise, é principalmente a partir de Adorno e Lévinas que ela trabalha de forma renovada a temática antropológica, aprofundando sua teoria da subjetividade.

Mas continuamente o humano persiste como interrogação produtiva, não como um conceito fechado. É o questionamento sobre a formação do sujeito que aparece em uma tentativa de estabelecer um discurso especulativo sobre sua pré-história. De Foucault, retém-se a ideia de uma subjetividade formada por um feixe de relações de poder; de Laplanche, o reconhecimento da opacidade própria ao sujeito, sua incapacidade de apreender por completo tanto a diferença do si-mesmo quanto do Outro; de Lévinas, uma dimensão ética, na qual o Eu, já imbricado em uma relação pré-ontológica, é instado a respeitar a diferença infinita do Outro; de Adorno, um entendimento de uma dialética, interna ao sujeito, entre o humano e o inumano.4 Nesse viés, que articula pós-estruturalismo, psicanálise, temáticas caras à tradição fenomenológica e alguns elementos críticos, Butler apresenta o Eu como constituído pela interpelação do Outro. Isso significa que esse Outro não é um não eu, mas uma parte integrante de minha própria subjetividade — há uma inerência do Outro no eu. Eu não existo independentemente do Outro, mas em uma dependência radical com ele, o que gera uma responsabilidade e um dever de cuidado, já que “o destino de cada um de nós está, por assim dizer, nas mãos dos outros”.5 Essa dependência evidencia a precariedade da vida, incapaz de se sustentar por si só. Mobilizando esse conjunto de referências e teorizações, Butler convence ao argumentar que o pressuposto ontológico liberal de um indivíduo autossuficiente, uma espécie de mônada solipsista, é uma fantasia perigosa para fundamentar a compreensão de nossa sociabilidade. No lugar desse sonho de individuação total da vida, ela evidencia nossa dependência com o Outro, na qual o próprio corpo aparece como evidência de vulnerabilidade concreta: “A tese que oponho à hipótese do estado de natureza é que nenhum corpo pode sustentar-se por si mesmo”.6

Da afirmação que o problema antropológico está além de uma consideração teológica, metafísica, transcendental ou fenomenológica, Butler nos apresenta uma antropologia que surge imersa em um universo relacional, ético e político, em que o próprio Eu está descentrado, marcado por uma opacidade radical em relação a si e ao Outro. Assim, Butler pretende bloquear a ânsia do Mesmo em fagocitar a diferença para dentro do idêntico, permitindo uma figura subjetiva capaz de ir além da ipseidade e aceitar que a diferença já se encontra no interior do próprio Eu. Por conta disso, desde antes da formação do Eu, a interpelação do Outro já é de ordem ética. Isso significa que a redução do Outro ao Mesmo, da alteridade à identidade, é o caminho para a morte de ambos, pois o Eu não pode se desvencilhar do Outro sem se desfazer de si mesmo.

Como o Eu pode se relacionar com o Outro sem ocasionar um apagamento mútuo? É dessa questão que Butler desdobra o problema antropológico em uma teoria da relação Eu-Outro atravessada pela temática da violência. A alteridade radical não pode tentar ser superada, sob pena de desencadear a violência identificadora, e literal, contra o Outro. Então, de alguma forma, o Outro exige a limitação de minha subjetividade e de meu poder; essa limitação seria, no entanto, a obrigação de uma passividade, uma ausência completa de ação, atividade ou discusividade? Parece ser essa pista sobre o problema da violência, aberta por Lévinas e mais tarde investigada também por Derrida, o ponto de partida de Butler.

O projeto de Lévinas é retirar a ontologia, e também a epistemologia, do posto de prima philosophia e, em seu lugar, entronar a ética. A primazia da ética é a não imposição do Eu sobre o Outro. Essa seria a única forma de desentranhar a violência da metafísica ocidental, mostrando que o respeito infinito pelo totalmente Outro é capaz de quebrar o potencial mortífero do Eu que reduz tudo a si mesmo, fazendo desaparecer toda alteridade. Lévinas estava à procura de uma subjetividade que fosse capaz se colocar além da ipseidade, compreender e, acima de tudo, respeitar a diferença enquanto diferença, abdicando de qualquer tentativa de assimilação e, assim, responsabilizando-se pelo Outro ao preservá-lo de sua colonização. Só assim seria possível distinguir uma relação violenta de uma não violenta, já que apenas a segunda atende à exigência ética de não se insurgir contra o rosto alheio, exigência essa que só se atende por um discurso primordial, ou seja, uma linguagem purificada capaz de acolher o que lhe é ontologicamente distinto.

A partir da ideia de que não pode haver um discurso que não seja também violência, pois todo discurso deve ser capaz de separar, classificar, explicar e reduzir o diferente ao idêntico, o Outro ao Mesmo, Derrida desconfia profundamente de toda tentativa de não violência. O discurso não pode ser o Outro da violência porque ele está comprometido com ela. Para Derrida, o discurso só pode realizar a paz se o seu telos for sua própria morte. No interior do discurso, a violência ainda se faz presente, então a própria possibilidade da paz está ligada ao ocaso do próprio discurso. Então para evidenciar o potencial mortífero de toda metafísica ocidental, Derrida absolutizou o momento da desconstrução, chegando a ponto de mostrar como a própria escrita, ou o discurso, está carregada de violência, soberania e ipseidade. Não parece exagero dizer que, em Derrida, todos os conceitos do pensamento ocidental, ou pelo menos todos tal como foram pensados até agora, são portadores de uma violência imanente. Contra essa contaminação generalizada, irromperia um não discurso que procura mostrar a identidade subjacente a todo binarismo, sem que se possa vislumbrar nenhum tipo de superação, dialética ou não, dessa suposta diferença: apenas a desconstrução é válida (mas qual é o lugar de onde se enuncia a desconstrução?). Por essa desconfiança generalizada, Derrida não pode ficar impassível diante da ideia de não violência. Em sua crítica a Lévinas, ele esboça o fracasso de toda postura não violenta, mostrando sua desconfiança renitente quanto a qualquer discurso que almeje à pureza.7 A pureza não seria senão um desejo obscuro de aniquilar o Outro, maculando a não violência desde a origem, e a despeito de suas melhores intenções. A não violência tem um sonho de violência sem limites, porque só assim ela poderia se realizar.

Entretanto, Butler quer reabrir essa via da não violência. Ela gostaria de provar que o pós-estruturalismo não precisa aceitar uma identidade secreta entre violência e não violência como tentou demonstrar Derrida. Essa conclusão conduz ora a se contentar com um relativismo niilista e complacente, ora a esposar uma justiça apocalíptica — duas opções rechaçadas por Butler. Mas então como mostrar que essa identidade entre opostos, essa passagem da não violência na violência, não é uma necessidade?

Em seu diálogo com Lévinas, Butler pretende voltar a uma teorização sobre a não violência, mas incorporando as advertências da desconstrução. Acompanhando Derrida, ela admite que qualquer enunciação que pretenda demarcar rigidamente o que é a violência já está condenada a reabilitá-la. Essa delimitação essencialista e apriorística porta, de fato, um perigo. Afinal, assumir em definitivo o que é a violência e daí advogar por uma prática não violenta é dizer que essa demarcação é possível a partir de um lugar que seria capaz de enunciar a verdade sobre a violência. No entanto, entre não dizer in abstracto o que é a violência e simplesmente não dizer o que é a violência em nenhuma situação dada há uma distância enorme. Em outros termos, tão arriscado quanto se lançar em uma definição apriorística, é não se propor a pensar em nenhum tipo de diferenciação. Butler evidencia que é possível fazer a distinção entre violência e não violência ao menos no interior de certos quadros referenciais concretamente situados: “Por mais que não possamos definir se a violência é ou não justificada sem sabermos o que se considera violência, não podemos deixar de definir o que diferencia a violência e a não violência. Em outras palavras, a operação de crítica não pode impedir o compromisso e o juízo”.8

É por isso que quando o texto parece oscilar indefinidamente, Butler resolve se colocar contra um relativismo generalizado: “Parte da tarefa deste livro é enfrentar a dificuldade de encontrar e fixar o significado de violência (…). Em minha opinião, essa dificuldade não implica um relativismo caótico que solaparia a tarefa do pensamento crítico de expor o uso instrumental de uma distinção que é tão falsa quanto prejudicial”.9

O discurso crítico na esfera pública e a ação ético-política da não violência passariam por desestabilizar a semântica hegemônica da violência. Porque o sentido dominante da expressão está eivado por marcações de classe, raça e gênero que abrem caminho para todo tipo de arbitrariedade policial e injustiça judiciária. Apenas evidenciando uma série de formas e estruturas sistêmicas que permanecem quase-ocultas, vindo à tona, quando vem, apenas como mera fatalidade ou caso isolado, é que se pode captar o sentido mais profundo da violência contemporânea e demonstrar como são os protestos e insubordinações contra essas estruturas que representam, de fato, a não violência.

Contudo, o que permitiria a Butler restabelecer essa demarcação entre violência e não violência sem que isso reinaugure a violência? Em certa medida, a aposta de Butler é que a não violência prescinde de qualquer aspiração pela pureza ou passividade. Aqui então ela, que já havia se distanciado de Derrida, faz uma aposta para além de Lévinas, pois não deseja apresentar a não violência como uma des-atividade, uma subtração do sujeito de suas pretensões emancipatórias em nome do Outro. Sua ideia é que a não violência tem de se assumir como uma luta, comprometendo-se com a igualdade radical, a afirmação da enlutabilidade da vida e a ausência de destrutividade. Somente assim ela poderia cumprir seu papel de interromper o ciclo infinito da violência e “combater aqueles que estão comprometidos com a destruição, sem reproduzir sua destrutividade”, pois “compreender como lutar dessa maneira é a tarefa e o dever de uma ética e uma política não violentas”.10 Há aí um movimento curioso. Pois para não igualar não violência e pureza, Butler embaralha a conceituação habitual, colocando a agressividade do lado da não violência. Ou seja, seria possível contornar a crítica derridadiana, pois a não violência não implica pureza, homogeneidade ou indiferenciação: pode haver mobilização, luta e conflito no interior da não violência, dado que ela não deve ser confundida com o pacifismo, menos ainda com a passividade.

Diante, nada menos, de uma tentativa de elaborar uma nova semântica da violência e da não violência, cabe indagar em que sentido a luta não violenta guarda superioridade em relação à violenta. Essa temática nos remete de novo ao problema do humano. Agora não mais como antropologia filosófica, mas como um problema em torno do valor ético-político do humano, em outras palavras, da temática clássica do humanismo.

Butler se distancia da herança humanista clássica ao evidenciar o núcleo de violência que existe em um pensamento meramente abstrato, que hipostasia a reconciliação e trai seu potencial emancipatório. É que nessas éticas, de matriz fenomenológica ou transcendental, o humanismo postula uma norma universal em meio a um mundo que impossibilita essa universalidade. Trata-se de um humanismo abstrato, a-histórico e dissociado das estruturas sociais, o que torna a ética uma espécie de manual de conduta impotente diante das intermitências do social.

De outro lado, há um humanismo revolucionário, que pretende realizar o ser humano por meio da violência, e um anti-humanismo que gostaria de extinguir o valor da humanidade. Ambos reclamam a violência revolucionária como forma de ação legítima contra um sistema que reverbera a violência continuamente em todas as suas estruturas de dominação. É engenhosa a forma como Butler relê textos canônicos das duas tradições a fim de realizar interpretações inusitadas, talvez até insólitas, que corroboram sua tese a favor da não violência. Assim, ela lê Fanon para explicar o regime racial da violência de Estado, mas não para endossar sua violência revolucionária; lê Benjamin para entender a relação entre a lei jurídica e a violência, mas não para endossar uma violência divina. Em certo sentido, Butler considera que, para o mundo contemporâneo, o paradigma da violência revolucionária, seja em sua versão clássica, terceiro-mundista ou contracultural, estaria esgotado. Porque ela não é capaz, como pensa o humanismo revolucionário, de formar o ser humano — ao contrário, ela apenas seria responsável por seu autoaviltamento. De outro lado, aspirar pelo rebaixamento do estatuto filosófico do ser humano através da violência, como pretende o anti-humanismo, tampouco se justifica.

Conhecedora da filosofia moral adorniana, Butler escapa da armadilha de glorificar o inumano. Há aí um movimento que, no plano do conteúdo, é quase dialético, mesmo que na forma Butler esteja distante dessa tradição. Butler desabilita o humanismo sem recair no anti-humanismo. Ela se coloca tanto contra o pacifismo indulgente do humanismo tradicional como contra a violência presente no humanismo revolucionário e no anti-humanismo. Nesse movimento duplo, o ideal do humano não desaparece, mas figura apenas no horizonte e não mais como ponto de partida. Ademais, esse ideal humano se afigura refratário à violência, mas não à agressividade, contestação ou luta.

A partir dessa reconfiguração do debate sobre o humanismo, alocando a não violência do lado de um ideal humano, Butler se questiona como seria possível lutar através e pela não violência e quais as possibilidades da não violência atuando dentro do campo de força da violência. Desde que não seja confundida com a passividade, a não violência, acredita Butler, poderia muito, pois ela não é uma forma de recusa abstrata da política, da disputa e da força. Para demonstrar essas possibilidades, ela trabalha com exemplos concretos, que vão de inventivos protestos na Turquia a marchas nos EUA, de manifestações LGBT a boicotes e ocupações. Isso tudo faz pensar que seria possível uma prática ético-política que, sem perder nada em potência transformadora, não reduzisse a diferença do Outro ao Mesmo, que não sendo violenta também não deixasse de afirmar suas convicções e valores.

Entretanto, e no caso em que é o outro que procura eliminar a diferença? Não seria uma violência ter de se curvar à violência do Outro? Sobre esse ponto, parece que o texto se insurge contra si: somos instados a defender a não violência para interromper um circuito infindável de violência, mas em alguns momentos ficam abertas exceções. Essa oscilação, quase antinomia, não se resolve com clareza. Parece que a própria Butler já pressente as dificuldades de sua posição. De um lado, ela afirma que qualquer exceção ao princípio da não violência já não pode encontrar respaldo na ética. De outro, é forçada a admitir que em situações concretas, o problema pode se colocar de outra maneira:

Em outras palavras, aquilo que chamaríamos de “igualdade radical dos enlutáveis” poderia ser entendido como precondição demográfica para uma ética da não violência que não comporta exceções. Não estou dizendo que ninguém deve se defender nem que não há casos em que a intervenção não seja necessária. Pois a não violência não é um princípio absoluto, mas uma luta aberta contra a violência e suas forças compensatórias.11

A não violência de Butler gostaria de não abrigar exceções (mesmo que ela reconheça que na prática as coisas se passam de outra forma…) e ao mesmo tempo de se apresentar como uma luta aberta, uma mobilização, uma agressividade contra as formas de violência e destruição. Ora, sem apresentar ou discutir com alguma clareza o que são essas exceções, surge um déficit considerável. A violência não poderia voltar através das exceções não tematizadas? Quais seriam os limites desses casos limítrofes? Abdicar desse tipo de resposta parece perigoso. São colocações como essa que nos fazem questionar se não haveria uma hipóstase da não violência. Se a não violência não apareceria no discurso de Butler como uma espécie de reforma do imaginário e nada mais, o que a tornaria apenas outra teoria política normativa não liberal, ou outra formulação utópica.

O ponto seria saber se a aversão de Butler à violência não corre o risco de se tornar, ela mesma, violenta. Pois, a despeito de suas intenções manifestas, em alguns rompantes idealistas presentes no livro nos perguntamos se sua proposição ética da não violência não resvala em uma espécie de pacifismo, mesmo que não recaia na passividade. A predileção por métodos pacíficos pode ser, em muitos momentos, apenas outra forma de prolongar um estado de violência. O que garante que a não violência possa interromper a violência? Assim como a retribuição pode desencadear uma guerra sem fim, nada garante a priori que uma resposta não violenta seja capaz de minimizar a violência do outro lado. A partir daí, novamente estaríamos às voltas com o problema de saber sob quais critérios poderíamos decidir o que seria um Estado de Exceção no interior do qual a contraviolência pudesse ser legitimamente exercida e também quais seriam os limites dessa contraviolência. Ressalte-se: tematizar o problema da validade da contraviolência em momentos específicos não é sinônimo de defendê-la em qualquer contexto. Mesmo a contraviolência, quando desenfreada, pode passar a um estado de violência generalizada e, em casos extremos, ao terror.

Para passar a esse tipo de reflexão, Butler teria que dar um passo a mais de seu arcabouço teórico em direção ao social. Por mais que surjam exemplos históricos atuais, ainda há um déficit sociológico nas reflexões a respeito da violência, tematizada ora no enfoque pós-estruturalista, ora no psíquico. A política aparece ou como um conjunto de relações de poder, ou como aparato estatal, mas não como afetada pelo social, que é mais um ponto de chegada do que de partida. O social se explica pelo psíquico ou pelo poder, mas não tem uma densidade própria, o que sem dúvida compromete a reflexão sobre a violência, sua dinâmica de classes e sua circulação.

Restaria saber que política pode ser derivada dessa ética. É possível estabelecer uma relação entre ética e política sem que a primeira colonize a segunda? Butler insiste que “a existência institucional da violência não será derrubada por uma proibição, apenas por um éthos e uma prática anti-institucionais”.12 De que forma essa prática anti-institucional poderia dar lugar a uma forma de institucionalidade não violenta? Butler parece não romper com pelo menos um dos pilares políticos do pós-estruturalismo: o de pensar que a ação política legítima e eficaz é aquela que se localiza às margens da institucionalidade. Há um déficit de reflexão institucional que só pode ser suprido se o éthos não violento se estender para uma política que se manifeste também, mesmo que não apenas, no interior da esfera estatal, e não apenas como uma éthos, uma prática ou uma conduta, por mais elevada que ela seja. Mas isso fica muito difícil quando se equaciona sem mais o Estado com a repressão, além de turvar nossa compreensão sobre a violência que emana da própria sociedade civil.

Estamos de acordo com a ideia de que é necessária uma transformação mais profunda da subjetividade e não nos parece que a mera existência de instituições seja suficiente para estabelecer um vínculo de não violência. Contudo, essa transformação subjetiva não pode surgir como um contraponto às instituições, uma dicotomia. A política performática não se dá como tarefa pensar em formas organizacionais e institucionais que permitam a emancipação, mas nisso ela recai em um impasse — ela gostaria de se dirigir a uma coletividade, mas não oferece os meios para pensar na constituição e manutenção dessa coletividade. Essa ausência constitui uma lacuna simbólica considerável, dado que um recuo em pensar arranjos institucionais, ou ao menos em formas de institucionalização, inviabiliza imaginar uma política que não seja formada apenas por atos, ações, mobilizações, ou seja, por luta.

Essa suspeita contumaz sobre institucionalidade estatal se desdobra em desconfiança permanente que Butler dirige contra o Direito. Mais uma vez, ela se coloca muito próxima dos cânones do pós-estruturalismo, especialmente nos ecos nietzscheanos presentes em Foucault e nas ressonâncias benjaminianas em Derrida, ao considerar a lei como uma violência em ato (seja uma violência produtiva ou repressiva, mas violência). Se de partida esse enquadramento se apresenta com uma precaução crítica razoável quando Butler diz que “não podemos aceitar prontamente a ideia de que a violência é resolvida assim que passamos de um conflito violento extralegal para o Estado de direito”, ela logo se transforma em uma concepção bastante unilateral quando se expressa da seguinte maneira: “(…) a passagem de um campo conflituoso extralegal para um campo legal é uma mudança de um tipo de violência para outro”.13 Ainda no mesmo sentido, um pouco mais adiante, Butler escreve que “a violência legal está presente não apenas nas práticas de sentença, ligadas às práticas de punição e encarceramento, mas também no caráter obrigatório da lei”.14 Ora, mas isso seria sugerir que a não obrigatoriedade das leis seria melhor? Não estaríamos depositando confiança em formas extrajurídicas que frequentemente são tão injustas quanto as formas de regulação estatal? Não temos nenhuma garantia de que as formas não estatais, extralegais de organização, institucionalidade e resoluções de litígios sejam menos violentas do que um Estado, ou se elas apenas fariam surgir outras formas de violência. Contestar a lei ou sua aplicação é muito diferente de agir fora de toda lei e contestar toda forma de legalidade. A violência que está além da lei pode ser tão perigosa e injustificada quanto aquela que se faz dentro da lei, pois se ela não é referendada pela lei positiva, ela o será por outro quadro referencial, por outra lei, seja ela costumeira, teológica ou natural.

O livro também é atravessado por uma persistente tentativa de tecer uma conexão entre política, ética e psicanálise. Butler explica o que seria possível pensar como o destino da pulsão de morte e da agressividade que dela advém. Para ela, a não violência não abarca a pretensão de um ser humano angelical, mas deseja que a agressividade secretada pelo aparelho psíquico não precise se exteriorizar como violência. Mas se a agressividade não pode ser pura e simplesmente dissolvida, como podemos manejá-la para que ela não se torne uma violência contra si mesmo? Se o supereu fica incumbido de inibir a agressividade, ele apenas a redireciona contra o eu, fazendo o sadismo se dirigir contra a própria pessoa — nossa repressão da agressividade aconteceria às nossas custas. Haveria outra forma de manejar nossos impulsos agressivos? Em uma leitura atenta de um texto freudiano canônico, Butler descobre que para se proteger da autodestruição desencadeada pelo supereu, o eu pode “transforma-se em mania”, na expressão de Freud no texto “O Eu e o Id” (1922). A mania seria a forma de escapar da tirania do supereu, renunciando ativamente ao objeto perdido através de uma desidentificação. Nesse caso, uma solidariedade de grupo que fosse capaz de não se realizar como identificação total, e, portanto, restaurar a lógica da violência contra o Outro, seria um tipo de desidentificação coletiva com relação à prática tirânica, sendo capaz de atacar o autoritarismo sem reproduzir seus expedientes. A agressão e o ódio certamente permanecem, mas agora dirigidos para uma luta contra tudo o que prejudica a perspectiva de expansão da igualdade e coloca em risco a continuidade de nossas vidas interconectadas.

Contudo, Butler alerta que a mania não pode ser erigida em virtude política, pois ela ainda é uma forma instável de lidar com o problema da violência. Seria preciso conjugá-la com um dever relacional capaz de exceder a agressividade e o ódio que brota do aparelho psíquico submetido a relações intersubjetivas. Se não preservarmos a vida alheia, é a nossa própria que está em risco. Ao mesmo tempo, essa tarefa parece extremamente difícil porque, mesmo sabendo dessa interdependência, pulsa em nós um desejo de separação e morte. Butler encontra em Melanie Klein uma forma de resolver o impasse freudiano a respeito do destino da agressividade gerada pelo aparelho psíquico. Para Klein, seria possível pensar uma culpa que se desdobra na preservação da vida do outro. Quando Butler aponta para essa possibilidade, ela sugere que a fantasia que deveria emoldurar uma teoria do laço social é aquela de nossa dependência com a vida do outro. Na continuidade do argumento, surge a relação do bebê com a mãe como uma forma de explicar um modelo de laço psicossocial que poderia servir de matriz para as relações entre vidas precárias:

Embora a explicação do desenvolvimento pressuponha o bebê e a mãe, será que podemos dizer que essa forma ambivalente do laço social assume uma conformação mais ampla quando a interdição de matar se torna um princípio organizador da sociabilidade? Afinal, aquela condição primária em que a sobrevivência é assegurada por uma dependência que é sempre parcialmente intolerável não nos abandona à medida que envelhecemos; na verdade, ela muitas vezes se torna mais enfática à medida que envelhecemos e entramos em novas formas de dependência que lembram aquelas formas primárias (…).15

Sem se opor à afirmação dessa vulnerabilidade e dependência das vidas, esse modelo infantil-maternal é uma phantasia suficiente para configurar o que queremos de nossa experiência política? Há algo de muito elaborado quando Butler fala em vínculo, e não mais em imperativo, regra ou lei. A obrigação ética não aparece mais como uma relação do sujeito com Deus, com a Razão ou consigo mesmo. Ela surge já como uma relação com o Outro, mas um Outro que, por sua vez, já está também em mim. O vínculo ético-político é aquele que me une ao outro e, por consequência, a mim mesmo. Mas não seria demasiado que esse vínculo se pudesse se realizar a partir da phantasia descrita por Klein? É um truísmo dizer, mas a relação do bebê com sua mãe não é a mesma de um indivíduo com outro indivíduo — e seria desejável que fosse? Um indivíduo não sente de imediato que a vida do outro é de sua responsabilidade e nem sequer que a extinção do outro coloque em risco sua própria vida. Nossa dependência com os outros não é imediatamente visceral, nem tampouco claramente perceptível na maior parte das vezes. A ampliação de mediações materiais e técnicas torna essa dependência ainda menos evidente, ao passo que as formas de controle, vigilância e extermínio ficam cada vez mais instrumentais e menos diretas, fazendo a violência se tornar apenas um eco supostamente distante.

Desenvolver formas de escapar aos modelos éticos liberais-individualistas, por meio, por exemplo, de teorias relacionais, é crucial, mas será que o melhor caminho para essas novas éticas seria simplesmente se basear em relações primárias e então projetá-las sobre o social? Novamente, parece que estamos às voltas com uma parte da teoria que faz uso do aparato discursivo de outra área para dar conta do social. Nesse caso, não haveria uma passagem muito repentina das relações psíquicas para as sociais? Até que ponto a psicanálise pode servir de base para uma teoria ético-política? Mesmo que Butler seja hábil em passar da psicanálise à política e vice-versa, nem sempre essas passagens são tão sutis quanto o texto faz parecer. Porque resta saber se de fato nossa vida ética e política está, ou pode estar, submetida a imperativos psicanalíticos sem que com isso sejam colonizadas pela psicanálise e percam sua autonomia. Para impedir essa psicologização do ético-político, seria preciso fazer o movimento que nos leva do social ao psíquico, cujos modelos poderiam ser as incursões clássicas de Freud pelo campo do social, as pesquisas frankfurtianas, especialmente adornianas, sobre a relação entre sociologia e psicologia e alguns textos de Castoriadis que também são particularmente elucidativos quanto a esse ponto.16 Em nenhum deles se encontra, como em Butler, uma tentativa de embasar uma filosofia moral e uma política em uma teorização psicanalítica oriunda de relações psíquicas primárias, o que significa tomar o social como uma espécie de psíquico alargado. Butler ainda parece incorrer no problema, quando, na verdade, na verdade, a questão seria mostrar como o social se encontra desde o início imbricado no psíquico. Isso fica claro não apenas quando se toma a relação bebê-mãe como início, mas também quando aparece o tema do supereu como via para um tratamento tirânico do eu. Desenvolvimento clássico, que já percorre os próprios textos freudianos, é verdade, mas quase sempre balanceado pela ênfase que Freud dá ao superego como instância necessária na mediação para uma vida psíquica saudável, desde que refreada sua ânsia de controle excessivo. Mais tarde, essa temática do supereu tirano reaparece, em uma versão filosófica ampliada, e com ares de exagero, na Dialética do Aufklärung e também em Lacan. Fato é que se deveria ter cuidado em demonstrar que a forma política do superego corresponde à tirania, que há um tipo de gozo perverso quando o superego realiza sua fantasia de ordem, e que, portanto, ele tem um caráter exclusivamente repressor, ou que essa repressão seja sempre negativa. Essa leitura unilateral do papel psíquico, ético e político do superego anda de mãos dadas com a dificuldade para pensar a temática estatal fora dos quadros do autoritarismo e de considerar a lei como uma violência em ato. Em suma, que a forma psicanalítica seja capaz de exceder a díade Eu-Outro oriunda do modelo fenomenológico, ela ainda não se adequa bem ao social.

Ao final, diante das tarefas impostas à filosofia moral pela reflexão adorniana, ainda nos resta a sensação de um dever não cumprido. Apesar de tantas explicações a respeito da violência de Estado, de um imaginário liberal-individualista, da estrutura histórico-racial, não se faz presente aquela má totalidade que para Adorno ocasiona, no presente, a interversão de qualquer filosofia moral: o capitalismo. Butler chega a falar na importância de se pautar as “condições infraestruturais da vida”,17 e ensaia até mesmo uma inflexão materialista, mas é muito pouco diante da relevância que o tema tem em Adorno, e deveria ter para uma ética contemporânea. Em conferência proferida por ocasião do prêmio Adorno,18 Butler se esforça para mostrar que a questão da boa vida é, primeiramente, de saber se há uma vida e se há um sujeito que se percebe como dotado de uma vida socialmente reconhecida. Por mais sofisticados que sejam seus questionamentos a respeito dos pressupostos implícitos na pergunta sobre a vida boa, Butler não avança muito na direção aberta por Adorno. Essas formulações foucaultianas passam ao largo de qualquer consideração acerca de como o capitalismo molda nossa subjetividade, o que é o preço a pagar por uma leitura que descarta os elementos marxistas presentes no pensamento adorniano. Essa leitura unilateral de Adorno leva Butler a criticá-lo por formular uma filosofia moral infensa à política. Butler não é favorável a uma política que desconsidere toda a ordem da moralidade, mas enxerga em Adorno o problema contrário, uma espécie de extinção da política em nome da moral. Acontece que o pensamento de Adorno não é alheio à política em nome de uma moralidade ilibada, como Butler faz parecer. Sua posição é a de que hoje qualquer política consequente deve atender a certos critérios morais e que esses estão vinculados à capacidade de reabilitar de forma negativa o tema da vida boa, opondo-se a todas as formas de vida falsa que estejam direta ou indiretamente vinculadas a um mundo falso, ou seja, a essa reprodução da má totalidade que é o capitalismo.