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Muito mais que o Bitcoin, a internet do valor

Arapuca dupla, Débora Bolsoni

O Bitcoin não é e dificilmente poderá se tornar dinheiro, pois seu valor é demasiado instável, seu sistema pouco eficiente (capaz de processar menos transações por segundo do que os principais operadores atuais, como Visa e Mastercard) e não tem aderência/presença na vida cotidiana das pessoas como meio de circulação. Este é o diagnóstico de Steve Forbes1 e boa parte dos entusiastas da criptoeconomia, fato que seria pouco relevante não fosse ele também, curiosamente, o diagnóstico de boa parte das análises críticas, em especial marxistas, que buscam se debruçar sobre o fenômeno das criptomoedas.

Salvo algumas exceções, a crítica tem se concentrado no Bitcoin e com o objetivo de saber a viabilidade ou não dessa nova tecnologia de ocupar a função social de dinheiro. Além das conclusões serem um tanto precipitadas ― tendo em vista que, como qualquer software, o Bitcoin é um projeto sócio-técnico permanente,2 que precisa ser constantemente atualizado, mantido e (re)trabalhado3 ―, o foco da crítica em apenas uma das mais de 11 mil criptomoedas existentes e tão somente em relação a um aspecto dessas tecnologias (o monetário) reduz a capacidade de compreensão do fenômeno e, por isso também, a possibilidade de influir em seu movimento.

Existem milhares de projetos sendo desenvolvidos, alguns deles bastante avançados, para criar a criptomoeda que efetivamente seria capaz de substituir o dinheiro fiduciário. Todos eles levam em conta, há algum tempo, os problemas suscitados de estabilidade, eficiência, escalabilidade, custo, inserção social etc. Portanto, a descrença na capacidade do Bitcoin de se tornar dinheiro não é exclusiva dos críticos e marxistas, mas sim partilhada por boa parte dos técnicos, desenvolvedores e entusiastas da criptoeconomia, que consideram o Bitcoin um ativo para reserva de valor mais próximo ao ouro do que propriamente um eventual substituto ao Dólar.

A crítica, nesse sentido, se esvazia, pois supõe um problema ― a possibilidade do Bitcoin ser dinheiro ― que não é pretensão de boa parte de seus entusiastas. Ademais, a redução do debate à questão monetária faz com que se perca de vista o objetivo mais amplo da criptoeconomia, o qual não se resume à criação de um dinheiro digital não controlado por bancos e Estados,4 mas sim almeja transformar a sociedade, as instituições sociais e suas formas de organização, por meio de um silencioso processo de encriptação, descentralização e tokenização da economia.

Hoje esse movimento é perceptível, por exemplo, com as NTFs (Non-Fungible Tokens), aplicação majoritariamente baseada na tecnologia blockchain da Ethereum, a segunda maior e mais conhecida criptomoeda, só atrás do Bitcoin. Mas qual a relação entre Bitcoin, blockchain, Ethereum e NTFs? Como se dá o desdobramento de um para outro? Quais são suas semelhanças e diferenças? Será que as NTFs são apenas o último impacto proporcionado pela criptoeconomia ou um pequeno sinal do que está por vir? São questões que parecem escapar das análises críticas atuais, por se dedicarem exclusivamente à qualificação do Bitcoin como um dinheiro reacionário, que propõe a construção de um capitalismo sem Estado, produto de uma ideologia anarco-capitalista e ultraneoliberal.5

Para apreender, em toda a sua complexidade e contradição, o movimento de emergência desse conjunto de tecnologias e seus impactos na atual forma de organização social, lanço mão da categoria internet do valor. O termo é utilizado pelos próprios criptoentusiastas e por vezes aparece também sob a forma de internet do dinheiro. Seu significado na criptoeconomia é bastante literal, trata-se de construir uma rede universal descentralizada de pagamentos e transações ponto a ponto que permitam a interoperabilidade, imediata e sem intermediários, entre diferentes redes. Ou seja, seria na prática uma experiência sem atrito para movimentar valor globalmente, independentemente de qual moeda ou rede as partes prefiram utilizar.

A ideia é criar um novo sistema econômico por meio da revolução na forma como se “troca(m) valor(es)” pela internet; em outras palavras, acredita-se que a internet do valor fará com a transação de valor(es) o mesmo que a internet fez com a informação ― expandi-la universalmente e espraiá-la por todas as dimensões sociais. Nesse sentido, a categoria internet do valor parece bastante significativa, pois, mesmo que de forma não intencional ou consciente, capta a essência do objeto real: a construção de uma rede global descentralizada para transacionar valor ― esta substância social historicamente específica, autoexpansiva, obscura e contraditória, a qual possui um movimento próprio e que aponta seus desdobramentos no sentido de um espectro histórico-direcional conhecido.

Abrem-se assim, por meio da análise do valor, as portas para o desenvolvimento de uma crítica social abrangente, rigorosa e imanente desse novo conjunto de tecnologias que veio revolucionar a economia e a sociedade ― ainda que seja, ao fim e ao cabo, uma revolução para nada alterar ou para, naquilo que é essencial, permanecer o mesmo.6

Aproximações

Tecnologias como Bitcoin, blockchain, criptomoedas, DLTs (Tecnologias de Registro Distribuído), plataformas peer-to-peer (ponto a ponto ou P2P), todas compõem a internet do valor, mas esta não se resume a nenhuma delas. Mesmo assim, uma compreensão mínima dessas partes é fundamental para o entendimento do todo; tanto quanto o posterior entendimento do todo será fundamental para a compreensão das partes. Comecemos a desvendar então a anatomia e o metabolismo da internet do valor por seu expoente maior, o Bitcoin.

A centralidade do Bitcoin nas análises teóricas é perfeitamente compreensível, uma vez que apenas reflete sua centralidade também na realidade efetiva da criptoeconomia. Em 2021, o valor de mercado de todo o conjunto das criptomoedas alcançou um pico de mais de US$ 2,5 trilhões;7 neste mesmo período, o Bitcoin atingiu sozinho um valor de mercado de mais de US$ 1 trilhão,8 com a sua unidade chegando a ser comercializada no Brasil por mais de 350 mil reais.

Essa chamada “dominância” que o Bitcoin exerce sobre a criptoeconomia, apesar de já ter sido maior e hoje apresentar uma tendência de queda, é notória. Isso se explica não só pelo seu pioneirismo ― afinal, é ele que marca em 2009 o nascimento da internet do valor9 ―, mas também pela confiança que seu sistema operacional conquistou ao longo dos doze anos de atividade, o qual se mostrou seguro apesar de todos os problemas, disputas e constantes ataques sofridos.

Em síntese, o Bitcoin é uma “moeda digital em que técnicas de criptografia são utilizadas para regular a geração de unidades de moeda e verificar a transferência de fundos, operando independentemente de um banco central”.10 Trata-se de um arranjo sofisticado de coordenação de registros distribuídos para validação de transações eletrônicas ou, conforme o título do artigo que o lançou, “um sistema ponto a ponto de dinheiro vivo eletrônico”.11

A utilização do termo “dinheiro vivo” ― ou cash, no texto original ― não é sem propósito. O objetivo do Bitcoin é justamente se aproximar no meio digital da experiência quando se transaciona com dinheiro vivo. Ou seja, quer-se replicar no meio eletrônico uma forma peculiar de transação, “não declarada”, para a qual não se exige nome, identidade, histórico ou dados bancários. Normalmente, quando se paga algo em dinheiro vivo, não é preciso o cadastro em nenhum sistema, nem a certificação de que a outra parte é confiável. Também prescinde-se da mediação de um terceiro para que a transação ocorra, a troca entre o produto e as cédulas é feita diretamente pelas partes envolvidas. No nível pessoal, é essa experiência que o Bitcoin busca alcançar digitalmente.

Já no plano sistêmico, uma versão ponto a ponto de “dinheiro vivo eletrônico” almeja que os pagamentos online sejam feitos diretamente entre as partes, sem a necessidade de uma instituição financeira para realizar ou confirmar a validade da transação. Procura-se, portanto, resolver o problema do gasto duplo, fundamental para a contabilidade e controle de moedas em qualquer sistema financeiro, usando uma rede distribuída peer-to-peer (P2P) tolerante a falhas. É uma tentativa de solucionar os problemas identificados nos atuais sistemas monetários e financeiros, que se organizam em torno de autoridades centrais sobre as quais recai a responsabilidade do bom funcionamento sistêmico. Por isso, diz-se que os sistemas atuais se baseiam em um “modelo de confiança”, no qual os atores econômicos precisam acreditar que as instituições intermediárias atuarão conforme esperado e da forma mais eficiente possível em prol da coletividade. Não há, contudo, nenhum mecanismo intrínseco, inerente à sua infraestrutura, que possa garantir de antemão essas expectativas sociais.

O Bitcoin surge então com o intuito de criar um sistema de pagamentos eletrônicos baseado em prova criptográfica ao invés da “mera confiança” ― ou seja, quer-se substituir a falibilidade e suscetibilidade humana pela “confiança no código”, considerado imparcial e incorruptível. O problema é como fazer isso num banco de dados distribuído, no qual cada ponto da rede (também chamado de “nó”) mantém um registro de dados separado das transações ocorridas, e que é estruturado numa rede ponto a ponto (P2P), sem a necessidade de uma autoridade central para seu funcionamento.

No sistema tradicional, a propriedade e transferência de moedas são feitas por meio da constante atualização do “estado” da rede ao longo do tempo. A existência e o destino das moedas são identificados pelo registro de transações válidas e de acordo com a ordem cronológica que ocorreram. Desta forma, é possível confirmar a existência de “fundos” na conta de origem para realizar a transação, bem como impedir tentativas posteriores de (re)transferir um valor já transacionado. Essa checagem, no modelo atual, é feita pelos agentes de confiança.

Agora, se não há uma autoridade central responsável pela verificação e validação das transações, é preciso que exista um mecanismo criador de consenso entre todos os pontos da rede sobre o correto histórico das transações que nela ocorreram. No Bitcoin, essa sofisticada arquitetura para criação de consenso em registros distribuídos foi denominada blockchain, ou simplesmente cadeia de blocos.

O nome surge em razão de sua forma de funcionamento. Tudo começa com um servidor de marca temporal (“timestamp”), que reúne um conjunto de dados de transações ocorridas na rede em um bloco e, a partir dele, cria um código criptográfico (hash) para que este bloco seja datado e publicizado.12 Esse código garante não só o momento de registro dos dados, mas também que as transações registradas no bloco não possam ser alteradas, pois isso modificaria o hash, o código criptográfico exclusivo gerado a partir do input daquele conjunto de transações (que são, em última instância, informações). No Bitcoin, o marcador temporal de cada bloco inclui também o marcador temporal do último bloco válido da rede, imediatamente anterior a ele, para gerar seu código criptográfico. Forma-se, assim, uma cadeia de assinaturas eletrônicas criptografadas em que cada novo marcador reforça os que vieram antes dele.

Para implementar um servidor distribuído de marcador temporal numa base P2P (ponto a ponto), o Bitcoin utiliza um sistema de prova de trabalho (proof of work ou PoW) semelhante ao Hashcash de Adam Back.13 Este protocolo demanda do solicitador de um serviço o dispêndio de tempo de processamento computacional para se achar a solução de um problema matemático, o qual pode aumentar de dificuldade ― e, portanto, de quantidade de processamento computacional necessário ― de forma exponencial. Uma vez que o esforço de poder computacional demandado para satisfazer a prova de trabalho é despendido, o bloco não pode ser alterado, a não ser que se refaça a prova de trabalho na mesma medida. Como os blocos são encadeados um após o outro ― daí a “cadeia de blocos” ou blockchain ―, o trabalho para alterar um bloco incluiria refazer todos os blocos depois dele e, portanto, toda a prova de trabalho teria de ser despendida novamente.

Para compensar o aumento da velocidade e capacidade de processamento dos hardwares ao longo dos anos, assim como o interesse em executar os nós, que pode variar muito conforme as condições de cada época, a dificuldade de prova de trabalho na blockchain do Bitcoin é determinada por uma média móvel, visando uma quantidade de seis blocos por hora, um bloco a cada dez minutos. Se os blocos começarem a ser gerados muito rapidamente, a dificuldade da prova de trabalho aumenta; caso contrário, se os blocos demorarem muito a serem gerados, a dificuldade diminui.

A blockchain do Bitcoin segue, então, os seguintes passos:14

  1. Novas transações da rede são transmitidas para todos os nós;
  2. Cada nó coleta novas transações em um bloco;
  3. Cada nó trabalha para encontrar uma prova de trabalho para seu bloco;
  4. Quando um nó encontra a prova de trabalho, ele transmite o bloco para todos os nós;
  5. Os nós aceitam o bloco somente se todas as transações nele forem válidas e já não tiverem sido gastas;
  6. Os nós expressam sua aceitação do bloco trabalhando na criação do próximo bloco da cadeia, usando o hash do bloco aceito como hash anterior.

Portanto, a tecnologia blockchain constitui um livro-razão15 digital, descentralizado, distribuído e, no caso do Bitcoin, público e aberto a qualquer um que queira participar de sua rede, sem nenhuma pré-condição ― seja para simplesmente transacionar com Bitcoins como um usuário, seja para ser um nó ou minerador.16

Independentemente das questões que serão suscitadas na sequência, vale ressaltar a simplicidade e a genialidade com que essas tecnologias resolvem problemas complexos do sistema financeiro e monetário atual. Reconhecer essa virtude não significa um rendimento a seus pressupostos, mas sim um alerta para a necessidade incontornável de bem compreendê-las. Ademais, ao que tudo indica, são tecnologias que vieram para ficar.17

Criptografia ou economia, quem garante o Bitcoin?

A confiança e a segurança nas transações eletrônicas da rede Bitcoin aparecem como uma grande obra da criptografia moderna, isto é, da mais alta perfeição das tecnologias da informação e comunicação (TICs). Por isso o Bitcoin é apresentado como um “dinheiro matemático”, que possui um código incorruptível e é governado de forma descentralizada por uma comunidade peer-to-peer ― o que Lehdonvirta e Vidan sintetizam na ideologia do “In code we trust”.18

Mas será que essa aparência condiz com sua realidade efetiva? Será que é o software do Bitcoin que garante a segurança criptográfica de suas transações? Será que o bom funcionamento da rede decorre de uma imperatividade da máquina pura e simplesmente? Examinemos a tecnologia mais a fundo.

Até aqui descrevemos a tecnologia blockchain a partir de seu comportamento conforme, isto é, com os agentes atuando de boa-fé para o cumprimento adequado de seu protocolo. O que acontece, contudo, se um ou mais pontos da rede forem maliciosos, quiserem corromper a rede em proveito próprio? Quem inventou o Bitcoin ― uma pessoa ou grupo de pessoas, não se sabe ao certo ― tinha plena consciência do tamanho do problema, por isso não criou simplesmente uma rede de criptografia, mas sim uma rede de incentivos econômicos para garantir o comportamento conforme ainda que nas condições mais adversas (com vários agentes maliciosos querendo “quebrar” o código).

Há três formas de incentivo intrínsecas ao arranjo de funcionamento do Bitcoin ― uma blockchain de proof-of-work (PoW) ― que condicionam os nós a sustentarem honestamente a construção da cadeia de blocos. O primeiro incentivo para que os nós computem transações e despendam poder de processamento (maquinário e energia elétrica) é, por convenção, a recompensa em moedas da rede que o criador de cada bloco recebe: a chamada “mineração”. Ou seja, em troca de sua contribuição com potência computacional, o minerador vencedor de cada bloco recebe da rede certa quantidade de bitcoins.

Em suma, nas blockchains de prova de trabalho, as criptomoedas nascem como uma recompensa para os nós competirem em relação à criação dos blocos e, ao assim agirem, seguindo seus próprios interesses individuais, acabam por sustentar a rede ao validar as transações que nela ocorreram com segurança criptográfica, sem a necessidade de um intermediário garantidor. Inicialmente, o minerador de cada bloco recebia cinquenta bitcoins (BTCs) como recompensa por seu trabalho (PoW). Acontece que, conforme descrito no código fonte, essa recompensa decai pela metade a cada quatro anos ― ou seja, começando em 2009, ela alcançou o patamar de 6,25 BTC por bloco em 2020. Com a média de um bloco minerado a cada dez minutos, isso significa que já existem quase 18,8 milhões de BTCs minerados19 e a entrada de novas moedas em circulação se esgotará por volta de 2110-2140.

A segunda forma de incentivo dá-se em razão da cobrança de taxas de transação, também chamadas de “taxas de rede”, uma parcela cobrada do valor de cada transação, as quais também se destinam ao nó vencedor de cada bloco, que despende recursos próprios para reunir, validar e processar as transações que acontecem na rede. De forma um pouco mais precisa, o nó que criar o bloco ― aquele que primeiro encontrar a prova de trabalho ― receberá, além da recompensa da mineração anteriormente descrita, as taxas de rede de todas as transações que forem nele incluídas.20

A última forma de incentivo é uma decorrência do próprio mecanismo de funcionamento do sistema. O arranjo arquitetado pelo(s) criador(s) do Bitcoin predispõe os nós a permanecerem honestos, não por alguma vinculação moral ou respeito para com as pessoas que confiaram neles, mas sim porque é economicamente mais vantajoso fazer a rede funcionar e receber em troca BTCs, conforme programado em seu código fonte, do que atuar para sabotá-la. Se um nó malicioso, por exemplo, conseguir reunir mais poder computacional que todos os nós, honestos, terá que escolher entre usar este poder para reverter apenas algumas transações que ele mesmo tenha feito há pouco tempo ou usar todo esse poder computacional para gerar novas moedas. Ele pode descobrir ser mais lucrativo jogar de acordo com as regras, as quais o recompensarão com mais moedas, do que uma eventual quebra do sistema21 e, por consequência, da validade da própria riqueza que seu ato corruptor poderia gerar.

Depreende-se, pois, que a confiança atribuída à blockchain do Bitcoin fundamenta-se, em última instância, em incentivos econômicos e não no código propriamente dito ― na mais alta perfeição e imparcialidade tecnológica, como a princípio pode parecer. Afinal, o que vincula os nós a adotarem um comportamento conforme é a expectativa de rentabilidade, um cálculo econômico-racional, e não uma imperatividade da máquina. Claro que as ferramentas e arranjos computacionais sofisticados são fatores essenciais para a estruturação da tecnologia ― em resumo, criptografia assimétrica e sistemas distribuídos tolerantes à falha ―, mas o primeiro motor, aquele que inicia e orienta o movimento, é o ganho econômico.

É a possibilidade de serem recompensados ao final do processo com um acúmulo sobre os recursos investidos o que inclina os mineradores a processarem adequadamente as transações da rede. Ou seja, o blockchain só é capaz de produzir a confiabilidade e segurança necessárias se o sistema estiver funcionando de modo lucrativo àqueles que investem para mantê-lo, se economicamente estiver gerando mais dinheiro aos que a “produzem” do que eles inicialmente investiram. Poder-se-ia dizer, então, a partir de uma análise mais aprofundada, que o blockchain é, na verdade, o protocolo da confiança na acumulação de mais-dinheiro, pois é a certeza deste acúmulo que garante a funcionalidade adequada da rede.

Essa contradição é apenas uma das que explicitam a oposição entre a aparência criptográfica, racional e matemática do Bitcoin e sua essência econômica, humana e social. Outro exemplo claro dessa inversão é a questão da suposta governança descentralizada e democrática (não hierárquica) da rede, baseada em “uma CPU, um voto”.

O Bitcoin, como qualquer software, precisa ser constantemente mantido, atualizado e retrabalhado. Essa tarefa não é realizada abstratamente por um robô imparcial e desinteressado, mas sim por um seleto grupo de desenvolvedores que formam o core development team. Compete exclusivamente a esse grupo propor alterações no código do Bitcoin, das mais simples até as mais complexas e polêmicas ― como, por exemplo, um possível aumento do número total de moedas a serem emitidas.

Claro que tamanha concentração de poder é justificada por meio de alguns artifícios argumentativos, tais como:22 (i) a afirmação de que o Bitcoin core apenas conserta bugs no sistema e realiza melhorias técnicas elementares; (ii) que há uma normativa para o “processo de desenvolvimento”, a qual prevê que mudanças significativas na rede requerem um “amplo consenso da comunidade”; e, finalmente, (iii) que qualquer atualização precisaria ser referendada, aprovada, por um conjunto de mineradores que detenham a maioria do poder computacional da rede, caso contrário, as mudanças não seriam implementadas. Este último parece ser o mais convincente. Contudo, como veremos em seguida, a grande concentração de poder computacional em alguns grupos de mineradores ― mining pools ―, põe por terra a ilusão de um amplo e democrático poder decisório baseado em Unidades Centrais de Processamento (CPUs).

Numa recente análise empírica,23 publicada em 2019, contatou-se que mais de 50% do poder computacional do Bitcoin está concentrado em três ou quatro mining pools, grupos de mineradores reunidos com o propósito de somar suas capacidades computacionais ― aumentando as chances de ganhar a competição pela mineração de cada bloco e, assim, ter maior previsibilidade sobre os retornos de seus investimentos. Além disso, prosseguem os autores, dentro dessas pools, menos de vinte atores recebem mais de 50% dos recursos distribuídos. Ou seja, além de um número muito pequeno de pools serem majoritariamente recompensadas pela mineração de Bitcoins, dentro desses grupos, um número ainda mais seleto de atores retém a maior parte do dinheiro.

Isso significa que o poder de facto sobre a rede é restrito a uma quantidade ínfima de pessoas e grupos, com meios praticamente inexistentes de participação e influência de agentes externos, tanto de usuários comuns como das instituições sociais em geral. O Bitcoin aparece, pois, como uma rede de descentralização de poder e democratização de acesso; mas, na verdade, apresenta extrema centralização e hierarquização de poder, com pouquíssima participação na tomada de decisões. Da mesma forma, supõe-se que o Bitcoin seja previsível e imparcial por ser quase exclusivamente gerido por máquinas e algoritmos, quando, no entanto, ele está fundamentado em relações humanas incertas e tendenciosas tanto quanto qualquer outro constructo humano.

Por fim, cumpre observar que não se trata de uma “falsa aparência”, no sentido de uma realidade enganosa criada pelos entusiastas do Bitcoin, por exemplo. Essa aparência é a forma necessária de manifestação de sua essência. Quero dizer, o Bitcoin precisa aparecer como seu oposto, porque senão não teria razão de existir. Justamente porque ele é uma rede extremamente centralizadora, hierárquica e monopolista, que pressupõe e reforça o sistema econômico e as formas sociais atuais, que ele precisa aparecer como seu oposto, como uma rede descentralizada e democrática, que surgiu para revolucionar a economia e a sociedade.

Encaminhamentos

Tentei apresentar, com muitas reduções e simplificações, uma introdução à existência concreta da internet do valor por meio da descrição do modo de funcionamento de seus maiores expoentes: o Bitcoin e a tecnologia blockchain. A crítica que se seguiu teve como propósito atravessar a forma aparente desses objetos como primazias técnico-científicas e explicitar suas determinações mais essenciais como produtos e produtores de relações sociais humanas. Assim, espero ter esclarecido por que neste campo criptografia e economia, internet e valor, caminham juntos.

Contudo, a verdade é que apenas arranhamos a superfície da internet do valor. Do lado das tecnologias, foram tecidos alguns comentários sobre apenas uma das mais de 11 mil criptomoedas existentes. Dessas, algumas criptomoedas, como a Ethereum, já não usam mais uma blockchain de prova de trabalho para geração de consenso ― o que demanda uma apreciação diferenciada de sua economia política. Além disso, existem outras criptomoedas que sequer utilizam a tecnologia blockchain, e sim outras formas de Tecnologias de Registro Distribuído (DLTs), como é o caso da Iota24 e da Ripple.25 Existem projetos que são públicos e abertos, como o Bitcoin, mas existem aqueles que são públicos e permissionados, outros que são privados e abertos, outros ainda, privados e totalmente fechados.

Também não foi possível abordar os variados usos e propósitos que se fazem das tecnologias relacionadas à internet do valor. Existe todo um ecossistema de novas soluções para impactar diferentes setores, desde redes sociais, plataformas de vídeo, serviços de streaming, indústria de jogos, cloud computing e armazenamento distribuído de dados, até bolsas de valores descentralizadas, crowdfunding (Initial Coin OfferICO), serviços de transporte de passageiros e locação de veículos, sistemas de crédito de energia elétrica, contratos legais e acordos inteligentes, bancos de horas de trabalho, cartórios e registros de propriedade, histórico de saúde e sistematização para doação de órgãos, mecanismos de votação e governança organizacional e assim por diante.26

Do lado da crítica ― econômica, social, institucional, cultural, ambiental etc. ― ainda nem foi determinado aquele que qualifica essa nova internet: o valor. Tampouco foi possível discutir o significado de se criar uma rede global para a difusão e expansão dessa forma específica de relação social. O que, por mais instigante que seja, terá de ficar para outra oportunidade.27

Em suma, são muitas as questões em aberto, talvez um universo tão extenso que seja até difícil de dimensionar. Mas o objetivo aqui era esse mesmo, um convite à continuidade da investigação.