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Mais e mais uma vez

Cinema mudo, Carlos Fajardo

Em duas décadas de convívio com o artista e professor Carlos Fajardo, consolidou-se uma forma de apreensão de alguns sentidos de sua prática, observada em diferentes momentos de seu percurso. Alguns elementos que organizam essa forma de apreensão podem ser reunidos a partir das características que apresento a seguir.

Para Fajardo, a arte é muitas coisas e a educação em arte é autoadquirida e nunca termina. Para ele, não é possível ensinar arte uma vez que se trata de uma manifestação absolutamente individual e que traz em si a superação do já conhecido, instigando novas possibilidades singulares de expressão. Cabe então ao professor envolver o aluno no aprendizado, dar condições para o desenvolvimento de um discurso visual autoral, para a ampliação do repertório plástico e visual e para a apuração da capacidade crítica.

Fajardo não leciona na forma de aulas expositivas que podem ser transcritas, suas aulas são, sobretudo, orientações que acontecem na interlocução com o aluno diante do seu trabalho. São conduções que pressupõem a presença física, material, contam muito o olho no olho e o movimento ao redor dos trabalhos. Para estabelecer esta interlocução, Fajardo lança propostas de exercícios como instrumentos para pensar a produção, uma maneira de estabelecer relações, de possibilitar o desenvolvimento de experimentações artísticas.

A ênfase está no processo de concepção do trabalho e de como realizar, no domínio da arte, uma síntese entre a vontade de discurso do aluno e o repertório que é possível se desenvolver para satisfazer tal discurso. Para ele, o aluno deve realizar por si próprio o processo de sintetização das indagações que dizem respeito à sua produção e cada aluno tem um tempo próprio para realizar esta síntese.

Convém citar aqui algumas de suas especulações sobre questões consideradas centrais para a sua própria prática artística e que são compartilhadas com os alunos em suas aulas. Aspectos que concernem ao desenho, à observação, à expressão, à representação, à construção, à materialidade, à forma.

Para Fajardo, o desenho, para além de um gesto, um rastro deixado pelo atrito do lápis sobre o papel, é um processo de raciocínio visual que pressupõe uma acumulação gradativa de experiências. Tais experiências criam um repertório a ser expresso no plano em um movimento de dentro para fora, oposto ao aprendizado de técnicas, que cria um movimento de fora para dentro.

O olhar que observa os objetos, o espaço, e suas inter-relações é primordial para o desenho. Fajardo enfatiza a necessidade de observar atentamente, esquadrinhar cada milímetro do que se vê. A observação tem desdobramentos para a representação e para a construção, é observando que se cria um repertório visual a ser traduzido na representação e é observando que se apura a análise crítica das condições construtivas.

A construção tridimensional, desde a escultura até a instalação, é, para Fajardo, uma expressão pensada em relação ao suporte e à materialidade e que guarda relações indiciais, simbólicas, alegóricas. Em suas aulas, os alunos são conduzidos a refletir sobre tais instâncias, a entender que a construção, antes de ser um símbolo ou uma alegoria, é um gesto, uma ação que transforma ou simplesmente desloca o material.

Fajardo enfatiza a importância do material e da forma: o material é parte constitutiva do discurso, suas características físicas carregam significados que são expressos na forma; a forma, que pode ser um elemento do desenho ou da construção tridimensional, é uma expressão decorrente de um repertório interno que se externaliza em símbolos ou em alegorias. Ele distingue a alegoria do símbolo; a alegoria é uma maneira de pensar as coisas para além da aparência, uma reflexão sobre o mundo que não coincide com sua representação visual, uma vez que cria uma maior distância entre a materialização da forma e o sentido da obra.

A experiência da obra, o aqui e agora, é fundamental para sua apreensão, segundo Fajardo. Para ele, uma imagem da obra não é a obra, por isso sempre enfatiza a necessidade do confronto físico com o trabalho dos alunos, a relação que se estabelece entre o corpo e a obra, sua escala, dimensão, localização e relação com o entorno. No caso da instalação, Fajardo chama a atenção para o compartilhamento do espaço com a obra, a maneira como espectador e obra se inter-relacionam.

A abordagem dessas questões se dá nos comentários das propostas práticas, propostas estas que geralmente têm origem em referências teóricas que o mobilizam naquele momento. A generosidade de Fajardo em compartilhar suas inquietações conceituais com os alunos é uma marca distintiva de sua prática. Ele não se coloca como uma figura exemplar, mas sim como um exemplo de como se indagar, se questionar sobre a prática artística, de como atravessar a própria prática com investigações teóricas relevantes, de como abordar a produção por meio de indagações que são comuns a qualquer expressão artística. Vale ressaltar que todas essas questões são tratadas com muito entusiasmo e bom humor. Fajardo sempre demonstra um enorme prazer e alegria em envolver os alunos no aprendizado, respeitando a diversidade, a variedade, a diferença.

Ao optar por compartilhar suas inquietações com os alunos, ele dissolve as hierarquias, coloca-se como um facilitador do desenvolvimento da capacidade criativa e não como o detentor de um conhecimento adquirido anteriormente. Ao priorizar a partilha do processo em detrimento do resultado, Fajardo sinaliza que fazer arte é, acima de tudo, experimentação, instigação, articulação entre as inquietações pessoais e as formalizações estéticas. E tal posicionamento aponta para uma relação com arte que passa ao largo da instrumentalização, coloca os procedimentos em constante reinvenção, a serem indagados mais e mais uma vez.



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Daniel Nasser

a grafite como gentil lube seco

Antônio Ewbank