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Kronstadt, mais uma vez1

(julho de 1938)

Marinheiro em exílio na Finlândia.

O artigo de Trotsky na edição de abril da New International foi, para mim, motivo de desapontamento e embaraço. Desapontamento, porque eu esperava uma explicação franca e razoavelmente objetiva do caso Kronstadt. Embaraço, porque admiro Trotsky e aceito muitas de suas teorias. Um artigo como aquele — essencialmente uma peça de autodefesa casuística, apesar de brilhante — torna mais difícil defender Trotsky da frequente acusação de que seu pensamento é sectário e inflexível.

Para os que, como eu, acreditam que a revolução proletária é o único caminho para o socialismo, a questão que se coloca hoje é: podemos evitar o tipo de degeneração que se deu na Rússia? Especificamente, em que medida a teoria bolchevique carrega a responsabilidade pela ascensão do stalinismo? Em A Revolução traída, Trotsky demonstra que o stalinismo é fundamentalmente um reflexo do baixo nível de produtividade e de desenvolvimento econômico da Rússia. Mas, mesmo se aceitarmos essa análise, como é o meu caso, uma importante causa auxiliar pode ser identificada em algumas debilidades da teoria política bolchevique. Não será dever dos marxistas hoje em dia procurar sem descanso essas debilidades, para reconsiderar toda a linha bolchevique com distanciamento científico? Minha impressão é de que Trotsky mostrou pouco interesse por essa reconsideração básica. Ele parece mais interessado em defender o leninismo do que em aprender com seus equívocos.

O artigo sobre Kronstadt é um bom exemplo do que quero dizer. É apaixonado, eloquente, e não convence. Trotsky pode estar certo em todas as suas afirmações. Mas ele aborda o assunto de uma maneira que impossibilita o observador distanciado de formar uma opinião inteligente. Não tenho nem o tempo nem o conhecimento — e a New International não tem o espaço — para discutir a questão de Kronstadt aqui. Mas eu gostaria de indicar algumas apreensões quanto ao tom do artigo. Em geral, parece-me que Trotsky adota uma posição polêmica numa questão que deveria ser considerada desapaixonadamente, com algum respeito pelo lado contrário. O próprio título é desdenhoso: “A gritaria em torno de Kronstadt”. A oposição é caracterizada com uma fraseologia de promotor numa corte criminal — “essa variegada fraternidade”, “essa campanha de verdadeiro charlatanismo”. Para justificar esse tom abusivo, Trotsky precisaria trazer à tona provas muito mais fortes para desmontar as afirmações de Serge, Thomas, Berkman e Souvarine do que ele (ou Wright) dispõem no momento.

Trotsky começa seu artigo com um amálgama digno de Vishinsky: “participam da campanha… anarquistas, mencheviques russos, social-democratas de esquerda… trapalhões individuais, o jornal de Miliukov, e, por vezes, a grande imprensa capitalista. Uma ‘frente popular’ sui generis!” (A única categoria que se aplica a mim é a de ‘trapalhão individual’. Trotsky parece incapaz de imaginar qualquer pessoa criticando Kronstadt, a não ser que esteja a serviço de algum interesse escuso ou seja um iludido, enquanto os stalinistas caracterizam todos os críticos dos processos de Moscou como trotskistas, fascistas, assassinos, e — meu rótulo pessoal — fantoches de Trotsky). Não consigo ver tanta diferença quanto gostaria entre, de um lado, a insistência de Trotsky na tese de que, uma vez que os inimigos da Revolução usaram Kronstadt para desacreditar o bolchevismo, então todos os que expressam dúvidas sobre Kronstadt são (considerados ‘objetivamente’) aliados da contrarrevolução, e, de outro, a insistência de Vishinsky na tese de que a Quarta Internacional e a Gestapo são camaradas em armas porque ambas se opõem ao regime stalinista. Essa exclusão dos motivos individuais como irrelevantes, essa recusa a considerar objetivos, programas, teorias, qualquer coisa exceto o fato objetivo de estar em oposição — essa forma de pensar me parece perigosa e irrealista. Insisto que tenho dúvidas sobre Kronstadt sem ser um canalha ou um estúpido.

Tendo criado esse amálgama, Trotsky define seu menor denominador comum — e é dos menores, com efeito. “Como é que o levante de Kronstadt pode causar tanto desconforto em anarquistas, mencheviques, e contrarrevolucionários ‘liberais’ ao mesmo tempo?”, ele pergunta. “A resposta é simples: todos esses grupos estão interessados em comprometer a única corrente genuinamente revolucionária, que nunca repudiou suas bandeiras…”. A resposta é algo simples demais — outro aspecto que me incomoda, aliás, nas respostas de Trotsky. Até onde eu próprio saiba, não estou interessado em “comprometer” o bolchevismo; ao contrário, gostaria de poder aceitá-lo cem por cento. Mas, infelizmente, tenho algumas dúvidas, objeções, críticas. Será que é impossível expressá-las sem ser acusado de contrarrevolucionário e incluído na salada de anarquistas, mencheviques e jornalistas capitalistas?

Marinheiros interrogados pelos bolcheviques depois de presos.

A maior parte do artigo de Trotsky tenta mostrar que a base social do levante de Kronstadt era pequeno-burguesa. Ele aponta um fato importante: os marinheiros de Kronstadt, em 1921, eram um grupo bem diferente daqueles heróis revolucionários de 1917. Mas o resto de sua longa argumentação se resume a identificar todos os elementos que se opunham aos bolcheviques como sendo “pequeno-burgueses”. Ele apresenta poucas provas para justificar essa rotulação, além do fato de que eram todos antibolcheviques. Seu raciocínio parece ser o seguinte: somente a política bolchevique podia salvar a Revolução; os grupos de Makhno, os verdes, os social-revolucionários, os kronstadtianos etc., eram contra os bolcheviques; portanto, eram objetivamente contrarrevolucionários; portanto, estavam objetivamente trabalhando para a burguesia. O raciocínio dá por resolvida a própria questão que queria resolver. Mas ainda que aceitássemos seu postulado inicial, estaríamos diante de um processo perigoso do ponto de vista político. Ele racionaliza uma desagradável necessidade administrativa — a supressão de opositores políticos que também estão agindo em favor do que consideram os melhores interesses das massas — transformando-a numa luta entre o Bem e o Mal. Uma medida de governo se torna uma cruzada política, simplesmente recusando-se a distinguir entre categorias objetivas e subjetivas — como se um assaltante de banco devesse ser acusado de querer derrubar o capitalismo! Stalin aprendeu o truque até bem demais.

Trotsky tem pouco a dizer sobre o modo com que os bolcheviques lidaram com o caso de Kronstadt em si mesmo. Não apresenta nenhuma defesa para as execuções em massa, que, de acordo com Victor Serge, ocorreram meses depois de os rebeldes terem sido esmagados. Com efeito, não menciona absolutamente esse aspecto. Tampouco ele dá muita atenção ao problema crucial: com que seriedade os bolcheviques tentaram um acordo pacífico antes de colocarem as armas em campo? Ele desconsidera esse ponto: “Ou será que teria sido suficiente apenas informar os marinheiros de Kronstadt a respeito dos decretos da NEP, achando que isso iria apaziguá-los? Ilusão! Os insurgentes não tinham um programa consciente, e não podiam tê-lo, dada a própria natureza da pequena burguesia.”

Aqui Trotsky admite, implicitamente, o que afirma Souvarine: Lênin estava dando os últimos retoques na NEP durante o décimo congresso do partido, que foi interrompido para permitir aos delegados que tomassem parte no ataque a Kronstadt. A decisão tomada por Lênin e Trotsky foi séria: suspender o anúncio da NEP até que a rebelião, que reivindicava algumas das concessões que a própria NEP iria garantir, fosse afogada em sangue. Como eles poderiam estar tão seguros de que teria sido impossível chegar a um acordo com os kronstadtianos com base na NEP? Algumas frases antes, Trotsky admite que “a introdução da NEP um ano antes teria evitado o levante de Kronstadt”. Mas os kronstadtianos, escreve Trotsky, sendo pequeno-burgueses, não tinham “programa consciente” e, portanto, não poderiam ser sensíveis ao apelo de concessões programáticas. Pequeno-burgueses ou não, os kronstadtianos tinham um programa. Souvarine, por exemplo, resume-o em sua vida de Stalin como: “eleições livres para os sovietes; liberdade de expressão e uma imprensa livre para os operários, camponeses, socialistas de esquerda, anarquistas e sindicalistas; a libertação dos operários e camponeses detidos como prisioneiros políticos; a abolição dos privilégios para o partido comunista; rações iguais para todos os trabalhadores; o direito dos camponeses e artesãos autônomos de dispor do produto de seu trabalho”. Talvez Trotsky use o termo “programa consciente” com algum sentido especial.

Para mim, a afirmação mais interessante do artigo é: “É verdade … que eu já tinha proposto a transição para a NEP em 1920… Quando me defrontei com a oposição dos líderes do partido, não apelei para as fileiras, pois não queria mobilizar a pequeno burguesia contra os trabalhadores.”

Marinheiros executados.

Como aponta Trotsky, Lênin admitia que a política do “comunismo de guerra” tinha se prolongado mais do que deveria. Tratava-se apenas de um erro de julgamento, como sugere implicitamente Trotsky, ou foi um erro nascido da própria natureza da organização política bolchevique, que concentra o poder nas mãos de um pequeno grupo tão perfeitamente isolado (por um aparato partidário burocrático e hierarquizado) da pressão política das massas que termina sem responder às necessidades das massas — exceto quando é tarde demais? Mesmo quando um dos líderes tem condições de avaliar corretamente as necessidades das massas, ele não pode fazer mais do que tentar convencer seus colegas acerca do acerto de sua visão. Se eles não se convencem, ele se vê inibido por sua própria filosofia política de buscar apoio nas bases. É verdade, como escreve Trotsky, que a burguesia teria procurado se aproveitar de qualquer divisão nas fileiras bolcheviques. Mas não são ainda maiores os perigos de uma ditadura férrea, isolada da pressão das massas? Não são episódios como o de Kronstadt inevitáveis nessas condições? E teria sido possível a uma camarilha stalinista usurpar o controle do partido se houvesse maior participação das massas e maior liberdade para a oposição de esquerda, tanto dentro quanto fora do partido dominante?

Estas são as questões que Kronstadt levanta. Trotsky não as responde quando resume: “Em essência, os veneráveis críticos se opõem à ditadura do proletariado e, com isso, são adversários da revolução. Nisso está a chave do segredo.”

O segredo é mais complicado do que essa formulação. Rosa Luxemburgo se opôs durante toda a vida à concepção de Lênin da ditadura do proletariado. Mas os oficiais da guarda que a assassinaram em 1919 sabiam muito bem qual era a sua atitude com respeito à Revolução de 1917.

— Nova York, 26 de abril de 1938.