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Justiça feminista no Estado ausente: um debate urgente1

Reflexões sobre estratégias diante da violência patriarcal

A violência patriarcal é um dos grandes flagelos que a humanidade enfrenta hoje em dia. Todas nós experimentamos uma ou mais de suas variantes ao longo de nossas vidas: violência física, sexual, psicológica, econômica, assédio, abuso. Diante da justiça comum, seja na América Latina ou em outras partes do mundo, muitas das mulheres que estão em busca de justiça pela violência que sofreram encontram uma impunidade que é sistêmica. A assimetria de poder resultante da dominação patriarcal nos sistemas de justiça se entrelaça, muitas vezes, com outras assimetrias de raça, classe ou idade, e impede que as denúncias sejam devidamente recebidas e processadas ou, quando o são, impede que culminem em um resultado que possa ser considerado justo.

Desde que o tema da violência patriarcal foi reivindicado como tema político por feministas na década de 1970, grupos formados exclusivamente por mulheres têm desempenhado um papel fundamental para sua visibilização. Eles têm sido os espaços onde muitas mulheres puderam se reconhecer nas histórias das outras, onde puderam romper a “privacidade” que muitas vezes caracterizava o que lhes acontecia e de construir, a partir daí, uma análise que tirou a violência patriarcal do âmbito dos sentimentos individuais de culpa e a reconheceu como um problema da sociedade. Isso foi possível graças aos espaços protegidos, de confiança, entre mulheres, nos quais pudemos contar nossas experiências sem que nossas vozes fossem desde o princípio desacreditadas e nossa integridade pessoal fosse questionada por novas instâncias ou manifestações de violência patriarcal. Eles também foram os espaços onde nós, mulheres, pudemos desenvolver coletivamente ferramentas e estratégias contra diferentes tipos de violência, fortalecendo-nos mutuamente e aprendendo coletivamente. Não há dúvida de que em um mundo onde o patriarcado é um princípio fundador e estruturante, esses espaços de solidariedade entre as mulheres sejam extremamente necessários.

Nos últimos anos, os feminismos latino-americanos, mas não apenas eles, tiveram um sucesso transformador sem precedentes. Marcamos presença em praticamente todos os espaços discursivos, na literatura, no cinema, no teatro, no jornalismo e, é claro, no mundo da política. Em alguns países, conseguimos mobilizar de forma massiva setores sociais muito diversos não tradicionalmente ligados ao feminismo.

Uma das grandes contribuições das teorias feministas para a compreensão de nossas sociedades são, sem dúvida, a interseccionalidade, tornando visíveis interações situadas entre diferentes relações de dominação, das quais o patriarcado é uma e provavelmente a mais arcaica e, portanto, fundacional. Isto permitiu relacionar analiticamente a violência masculina feminicida com a violência econômica, trabalhista, institucional, policial, racista e colonial, ou seja, com a forma atual de acúmulo de capital. Hoje, os feminismos denunciam radicalmente as condições contemporâneas de valorização do capital, em defesa da vida. Eles conseguiram construir a proximidade entre lutas muito diferentes. Mas eles também conseguiram experimentar dimensões representadas pela sociedade desejada, tecendo espaços de contrapoder, na rua, em assembleias e nos territórios.2

Duas razões nos motivam a escrever este texto: a primeira, uma preocupação de preservar essas enormes conquistas dos feminismos, das quais nos sentimos parte, diante de certas estratégias que, acreditamos, poderiam implicar em grandes retrocessos para nós enquanto movimento. A segunda, uma preocupação com a continuidade e o potencial transformador de diversos espaços compartilhados por homens e mulheres: movimentos sociais, coletivos radicais ou de esquerda, grupos de trabalho, organizações sociais, que lutam, em meio à grave crise civilizacional da qual a pandemia do coronavírus é apenas a última expressão, por uma transformação radical multidimensional, cuja necessidade nos parece evidente. Espaços mistos que apostam na mudança sistêmica em alguns de seus aspectos, e que agora passamos a chamar de “comunidades transformadoras”. Acreditamos que, diante da urgência de desmontar a dinâmica destruidora de vida do capitalismo colonial moderno contemporâneo, é necessário preocupar-se com a existência de forças sociais que compartilham essa aposta.

No contexto da impunidade sistêmica de que violência patriarcal tira proveito e diante da constatação de que o sistema de justiça comum do Estado não é confiável, uma vez que é omissiva ou injusta, muitas mulheres recorrem a seus espaços de militância para denunciar experiências de violência patriarcal em busca de justiça. Essas experiências muitas vezes têm origem nesses mesmos espaços, que, como qualquer outra esfera da sociedade, são atravessados por um conjunto de relações de dominação, entre elas a dominação patriarcal. Então surge uma forma de julgamento sumário internamente aos coletivos formados para a reflexão, para a ação em defesa dos direitos e projetos políticos de vários tipos, ou para o estudo e a elaboração de um novo marco teórico ou ideário. Tais coletivos podem ser chamados de “comunidades transformadoras”, pois, devido ao seu tamanho referente à quantidade de seus integrantes e da possibilidade de inter-relação e interação entre todos os seus membros, se assemelham a uma comunidade, mesmo que não seja uma comunidade com raízes territoriais. Dessas comunidades transformadoras muitas vezes participam tanto a mulher que denuncia quanto o denunciado por ela. Essa comunidade transformadora, dentro da qual ocorre a acusação, compõe um grupo circunscrito que se reuniu em torno de certos objetivos, princípios e valores. Se, como já dissemos, não compartilham um território de raiz comum, compartilham um projeto, a densidade simbólica proporcionada por uma ideologia compartilhada e, não raro, rotinas e até rituais de sociabilidade.

Tais julgamentos sumários contra a violência patriarcal não são necessariamente assumidos como tal e são autopercebidos como uma justificada resposta coletiva visceral contra a denúncia. É por isso que muitas vezes eles não alcançam o resultado desejável de contribuir para a despatriarcalização de nossos espaços de luta, nem resultam em uma consciência coletiva fortalecida e mais lúcida diante de nossas próprias contradições em um mundo patriarcal, racista e classista marcado pela colonialidade do poder, nem apontam para possíveis formas de superá-las. Pelo contrário, eles têm um efeito deletério, disruptivo, e eliminam a possibilidade de continuar lutando juntxs após um acontecimento de agressão e ruptura com princípios tácitos ou explicitamente acordados.

Em várias ocasiões, observamos que esses processos acabam debilitando, dividindo e até mesmo dissolvendo os contextos de militância e as comunidades transformadoras em que ocorreram. Um coletivo é destruído sem que se alcance, de modo efetivo, a justiça e a reparação. A caráter improvisado e sumário deixa um efeito de dor, amargura e frustração em todos os envolvidos, em vez de se tornar marcos de consciência e despatriarcalização bem sucedida na memória coletiva do grupo. Com frequência, a solução encontrada é a amputação do coletivo — a expulsão definitiva e sem defesa do acusado — sem nenhum aprendizado significativo sobre as relações, seja para o indivíduo ou para o grupo que continua. Pelo contrário: permanece um sentimento de confusão e derrota, e não raro uma antipatia e uma repulsa misturadas com medo em relação à causa das mulheres e sua luta contra a violência patriarcal.

Às vezes, com um esforço para radicalizar a luta contra a violência patriarcal, ou para alcançar satisfação total da denunciante, as mulheres que a acompanham adotam uma tática que se originou nos Estados Unidos, chamada “cultura do cancelamento”. Uma tática na qual se busca “cancelar” o homem acusado de violência patriarcal em todos os espaços sociais, ou seja, eliminá-lo — matá-lo — simbolicamente. Trata-se, portanto, de uma nova versão da lei de retaliação cuja sombra, por mais esforço que o Direito de Estado Moderno tenha feito em bani-la, nunca deixou de estar presente na mentalidade dos juízes e nas expectativas de uma sociedade punitivista.

Neste contexto, reconhecemos o grande sucesso da campanha #MeToo por sensibilizar grandes setores da sociedade, e sua utilidade para escrachar homens cujo poder ou posição os fazia parecer intocáveis, como Harvey Weinstein, ou membros de alto escalão da hierarquia católica acusados de abuso sexual. Porém, ainda estamos longe de entender todas as dimensões nas quais as redes sociais reconfiguraram o espaço de debate público e suas consequências. Por exemplo, a forma como os algoritmos manipulam nossas emoções e exacerbam a polarização social, atrás unicamente de lucro para empresas como Facebook, Twitter e Instagram. Ou o modo como as redes sociais nivelam sistematicamente as diferenças entre mensagens falsas e informações verdadeiras, tornando a ação informada um desafio crescente. Não podemos considerar como um ato de justiça uma campanha em redes contra um sujeito acusado de violência, que apela para as reações espontâneas de grupos afins.

Em nossa opinião, o “cancelamento” do acusado é uma estratégia muito parecida com o sistema que se pretende desmontar. Ela reproduz padrões autoritários patriarcais e de cunho inquisitorial ao efetuar expurgos sumários de indivíduos e atuar com o pressuposto de que a solução consiste em “limpar” a sociedade, eliminando sua existência. Entretanto, é essencial compreender que o patriarcado é uma ordem política estruturante que se aplica em todas as relações desiguais da vida social e que a luta das mulheres é contra o padrão patriarcal, não contra os homens.

Esse equívoco faz com que algumas mulheres que se dizem feministas cheguem a patrulhar os espaços do movimento social, pedindo que todos se “posicionem” diante de reivindicações de violência que nem sempre são descritas com precisão e peçam a exclusão de quem identificam como seus perpetradores, sem exigir a especificação dos fatos ou o direito de resposta. Isto se deve, compreensivelmente, ao desejo de proteger as vítimas da provação que muitas mulheres experimentam no sistema de justiça comum, onde, em algumas instâncias, se pede que relatem novamente, em detalhes, o que experienciaram. Mas, desta forma, estes processos tomam a forma de linchamentos sumários e, como tal, têm uma ampla margem de erro que pode comprometer a verdade e a justiça e, acima de tudo, podem colocar em risco a credibilidade das demandas do movimento. Essas formas de “resolução” de eventos de violência patriarcal em nossas esferas de luta transformadora parecem ser emanadas de uma crueldade vingativa, mais do que um princípio de justiça feminista, sem contar que carregam uma margem de erro muito grande. Em suma, permitem associar os feminismos à injustiça e ao abuso de poder.

Por essa razão, procuramos estabelecer aqui uma diferença clara entre o que chamamos de “linchamento sumário” e “julgamento popular”. Embora o linchamento não obedeça a nenhum dos princípios do que é considerado um “processo justo”, estatal ou não estatal, o julgamento popular, embora não ocorra na esfera estatal, é capaz de apresentar as características de um julgamento justo: obedece a uma diretriz, destina tempo para deliberação, permite contradições e a defesa do acusado.

Sem dúvida, concordamos que devem ser analisadas e processadas as ocorrências de violência patriarcal, racista, classista ou de qualquer outra índole, que inevitavelmente também ocorre nas comunidades transformadoras; que todxs nós compartilhamos a tarefa social de responder e contribuir para desarmar, em todos os espaços onde passamos, o mandato de masculinidade que reproduz a violência patriarcal. Nossa reflexão aponta para como conquistar o objetivo de justiça e de transformação da sociedade. E, é claro, deixa muito espaço para que as respostas variem conforme o caso concreto e conforme as capacidades do coletivo que o enfrenta.

Para lidar com as reclamações que hoje se multiplicam, é possível recorrer à concepção e às práticas de justiça nas sociedades com estrutura comunitária, que podem nos orientar para lidar melhor com a questão que nos aflige. Parece-nos que os “julgamentos populares” para tratar as denúncias de violência patriarcal em comunidades de ativismo e pensamento do âmbito urbano encontram na justiça indígena um ponto de referência importante, justamente porque esta tem uma longa história de busca coletiva de justiça contra atos que afetam a comunidade em seus princípios de convivência. Essa resposta também poderia ser aplicada a outras comunidades, como as comunidades educativas, sempre que se desenvolva e adapte, para cada caso, com maior precisão e elaboração a ideia cuja proposta estamos apenas iniciando com este texto.

A justiça indígena observa uma série de princípios. O que temos que aprender com isso se refere a dois aspectos, um é o formato do “processo justo” e o outro se refere a qual é a meta ou objetivo de fazer justiça. A justiça em comunidade, nos territórios onde ela ainda é praticada, é fundamentalmente deliberativa e baseada em assembleias. Para ela, não há dois crimes iguais; ao contrário do direito positivo moderno, ela não tem uma “tipificação” de crimes e, por isso, permite um exame minucioso, por parte da comunidade, de todos os aspectos da agressão cometida. Devido ao tamanho limitado do grupo, permite que o caso seja apresentado em todos os seus aspectos, sem exigir uma “redução aos termos” de um direito instituído e positivado. Em outras palavras: é possível falar, dialogar abertamente sobre o que aconteceu, e espera-se que isso aconteça. Ela supõe a possibilidade de dúvida, ouve todas as vozes envolvidas no episódio denunciado, permitindo o que em justiça estatal é chamado de “contraditório”. Ao contrário da justiça comum, que enfatiza a punição como uma suposta medida dissuasiva, ela não tem como objetivo e meta o castigo ao culpado ou a exclusiva satisfação da vítima, mas o tratamento público e comunitário da ferida ocasionada. O bem superior que prevalece é a possibilidade de restaurar laços e continuar juntos a tecer o fio da história do povo. É uma justiça coletivista que procura restaurar a confiança mútua rompida pelo ato que está em deliberação. Em outras palavras, não se trata de uma justiça concebida a partir dos valores do individualismo. Os critérios que norteiam a reparação e a cura da vítima também incluem a sutura de uma ferida sofrida coletivamente e a reparação e cura dos laços de convivência que tornam a comunidade possível. Este é seu horizonte de justiça, e é por isso que muitas vezes se resolve que o acusado deve trabalhar para o benefício da comunidade.

Embora seja verdade que muitas dessas comunidades estejam hoje atravessadas pelas múltiplas relações de dominação e contradições que caracterizam e estruturam as sociedades em que estão inseridas, bem como pelas múltiplas investidas do capitalismo colonial-moderno, que provoca abusos e injustiças no seu interior, uma grande diversidade de povos nativos do continente ainda resolve seus conflitos internos mediante práticas de justiça da comunidade que podem inspirar, acreditamos, uma pauta para o “processo justo” em grupos de tamanho restrito no ambiente urbano.

Diante da urgência de uma transformação sistêmica do capitalismo patriarcal, colonial, racista, ecocida, destrutiva das próprias possibilidades da vida, a existência e a continuidade de comunidades transformadoras de mundos urbanos, brancos-mestiços, de coletivos, grupos, organizações, representa um valor em si. Afirmamos que essas comunidades podem aprender com os séculos de experiência dos nossos povos com a justiça comunitária. Eles podem se fortalecer adotando os princípios que o regem, estabelecendo a reparação do coletivo, a possibilidade de sua continuidade como um bem comum valioso, como um valor a ser defendido também diante dos sucessos de violência patriarcal — assim como o direito a uma vida livre de violência. Não em detrimento da mulher ferida, mas com ela.

Na justiça comunitária, a sentença mais dura, quando não há outra solução, é a expulsão. Geralmente ela é aplicada por um período de tempo limitado. A expulsão definitiva é muito raramente decidida, em casos muito extremos, e é vista como morte social. Em “processos sumários” ou “linchamentos sociais” em coletivos urbanos por violência de gênero, por outro lado, a expulsão permanente do grupo é frequentemente considerada o mínimo que deve ser feito, sem levar em conta a perda e ruptura que significa para o coletivo. O acusado torna-se uma espécie de bode expiatório sobre o qual o coletivo projeta suas imperfeições e temores — como se a dureza para com ele pudesse apagar os traços das relações de dominação, de classe, raça, colonialidade e também de gênero, que atravessam a todxs, sempre. O grupo se limpa do que nele existe a partir da expulsão de um de seus membros.

A própria teoria social feminista aponta que não existe nenhum lugar, nenhum sujeito intocado pelas relações de dominação e suas interseçcões. Para nos emanciparmos delas, para fazê-las retroceder, temos de encará-las, reconhecê-las em nós mesmas, não tentar esconder as partes de nós em que elas habitam. Precisamos interpelá-las muito antes que se manifestem em atos violentos, e não só a partir da dor, mas também do carinho, do humor, da ironia. É trazendo-as à luz, debatendo-as, que nasce a possibilidade de mudança. É preciso entender que a violência patriarcal não se resolve com a imposição do castigo mais duro a um agressor, senão não se criam condições capazes para transformar a sociedade. Não podemos resolver os problemas que irão surgir repetidamente em nossos espaços de militância em chaves de preto e branco, bom e mau, simplesmente diante da “eliminação da maçã podre”, porque dessa forma estaremos reproduzindo a episteme dicotômica da modernidade patriarcal e fechamos qualquer possibilidade de emancipação. Dessa forma, descartamos a possibilidade de processos coletivos de debate e esclarecimento em cada caso. Por mais crucial que seja a libertação da mulher, não conseguiremos banir a violência sem abrir espaços e debates que propiciem a transformação dos homens.

Para uma despatriarcalização efetiva, nossas comunidades transformadoras devem ser espaços coletivos nos quais é possível aprender a ser homem de outra forma, à margem ou fora dos mandatos violentos da masculinidade hegemônica; espaços prefigurativos que mudam as pautas de respeitabilidade, desarmando o gênero como princípio organizador e hierarquizante da sociedade, para homens e mulheres, para héteros, gays, trans e queers.