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Iracema fala, de Nuno Ramos: a arte no “front desse inesgotável pior”

Entre os dias 13 e 15 de agosto, o artista Nuno Ramos dirigiu o espetáculo Iracema fala, parte de um projeto maior desenvolvido com o Sesc São Paulo para responder a temas como violência e extinção. “A Extinção é Para Sempre” tenta dar forma — múltipla — a questões que têm ocupado suas reflexões mais recentes a respeito da pandemia e da escatologia promovida pelo atual governo brasileiro.1 Entre elas, como a linguagem incorpora e responde à naturalização da violência.

O espetáculo revisita o filme Iracema, uma transa amazônica, dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna nos anos 1970. Hoje considerado uma das obras mais importantes do cinema experimental brasileiro, o “docuficção” foi o primeiro a oferecer imagens alternativas do projeto de colonização da Amazônia levado a cabo pela ditadura militar, que apostou na construção da estrada Transamazônica para ocupar e desenvolver a região. Talvez por isso o filme tenha se tornado símbolo do descalabro daquele projeto de país, e não deixa de assombrar hoje, quando assistimos atônitos à notável presença dos militares no poder e aos ataques escancarados à floresta e aos povos indígenas. Como diz Edna Cereja, a paraense que interpretou Iracema em 1974, foi ela quem envelheceu, não o filme. Este continua urgente e atual (de acordo com Bodanzky, a cada exibição do filme essa percepção de atualidade se repete, sobretudo entre jovens). Seria um equívoco ignorar o interregno democrático no Brasil, e é bom lembrar que o governo do PT desenvolveu uma série de políticas para reduzir o desmatamento e criar áreas de conservação na Amazônia, ainda que jamais tenha aberto mão de atividades extrativistas e modelos predatórios de desenvolvimento, de que Belo Monte é o exemplo mais aterrador.

Iracema fala propõe uma releitura do filme a partir do ponto de vista de Edna, que volta a atuar depois de quase cinco décadas (quando interpretou Iracema tinha apenas 15 anos e nenhuma experiência de atuação). Foi dito que ela comandaria a cena, “criando sua própria versão da história”. E o espetáculo foi criticado, não sem razão, por não ser exatamente assim, apesar das cenas em que Edna interpela o elenco e pilota a câmera. Mas seria ingênuo esperar transparência e falta de mediação de um artista conhecido por trabalhar com a opacidade e esquadrinhar os meandros da linguagem.

É claro que este é um projeto de Nuno. Mas ele é resultado de uma tentativa do artista de explorar novas linguagens, como o teatro, e experimentar com o trabalho coletivo. Se Edna não é o (principal) cérebro por trás de tudo, suas contribuições são centrais para o espetáculo e adicionam uma camada metadiscursiva ao filme de 1974. Parte da força do filme vem do jogo de cena entre a inexperiente Edna, escolhida para o papel de Iracema porque tinha “cara de índia”, e o ator gaúcho Paulo César Pereio, com papéis em filmes icônicos do cinema novo e do cinema marginal. Ao interpretar Tião Brasil Grande, um caminhoneiro afeito ao discurso corrente da expansão militar, Pereio contou com sua capacidade de improvisar e certa empáfia para interagir com as pessoas locais, cavando declarações sobre atividades à margem da lei, como o tráfico ilegal de madeira e mesmo práticas de trabalho escravo. Como notou Ismail Xavier, a performance de Pereiro ganha mais força às custas da diferença de poder entre ele e Edna.2 No espetáculo visto agora, sem a presença carismática de Pereio, Tião Brasil Grande surge emasculado e é Edna quem rouba a cena. Nas conversas com o público após cada sessão ao vivo, ficou claro que muito do que vemos no palco surgiu da interação de Edna com a equipe, e Nuno inclusive aproveitou muitas de suas falas e incorporou a interação com ela no espetáculo.

Se, como disse Ismail Xavier, no longa de Senna e Bodanzky Edna “vê seu papel se transformar numa citação de si mesma ao querer ser Iracema”, aqui ela joga com a citação: cita a Iracema e a si mesma querendo ser Iracema, abraçando o jogo de desconstrução do filme proposto por Nuno. Ao mesmo tempo, reivindica para si uma história diferente da que tem a personagem, que por sua vez evoca a indígena tabajara que dá nome ao romance fundacional de José de Alencar publicado em 1865: Iracema: lenda do Ceará. Edna é mãe, é urbana (a Amazônia não é apenas floresta), não se julga atriz, ainda que eventualmente possa ser. Num certo sentido, o efeito de estranhamento magistralmente trabalhado por Pereio nos anos 1970 é agora empregado por Edna. E levado ao extremo na desmontagem do filme que propõe a peça. Afinal, não é possível refazer o filme. E os tempos não estão para isso.

Já não temos mais a miragem do “milagre econômico” ou as utopias revolucionárias que marcaram a época. O que se observa agora é apenas a repetição patética e farsesca de um projeto de violência e destruição. É verdade que o espetáculo não tem a mesma potência de real que tem o filme, feito no corpo a corpo com as obras na estrada e os perigos de habitar um espaço fora do império da lei. Mas não é este o ponto. Se a força do filme está na forma como combina documentário com ficção, o espetáculo aposta em formas de ecoar as muitas questões que atravessam Iracema. Ele funciona mais como memória do filme, trabalhada a partir da chave do pesadelo.

O filme foi responsável por registrar e fazer circular internacionalmente, pela primeira vez, a imagem da Amazônia em chamas. Hoje, essa imagem tornou-se tão comum que não precisa ser mostrada outra vez. É um referente ausente, mas que ainda assim domina a cena, assombrada também por outras extinções – de nossas instituições de memória, de um projeto para a cultura. Como não pensar na imagem da cinemateca brasileira, que guarda cópia do filme de Bodanzky, em chamas? As repetições dos gestos estilizados do filme operam no mesmo sentido, criando uma fantasmagoria que lembra mais a temporalidade do trauma – uma repetição obsessiva. Algo na linha do que fazia o cinema marginal para confrontar a barbárie, como comenta Nuno.3

“Não acho que sejamos sobreviventes de um antigo tempo, mas atores de uma cena que já se põe de outra forma”.4 Assim Nuno descreve o momento atual, e é essa tentativa de dar forma a esta “outra forma” que vemos neste espetáculo. A performance é assombradora. Não poderia deixar de ser.