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Justiça feminista: intransigência e rebeldia como ação política de afirmação

Nos roubaram tudo, menos a raiva.

(Chile, 2019)

Eles nos tiraram tudo, inclusive o medo.

(Venezuela, 2020)

Os movimentos feministas vêm produzindo práticas de resistência e novas semânticas para compreender as relações de poder que organizam a distribuição desigual dos corpos. Essas experiências começaram a indicar, em particular, os limites dos governos representativos e a capacidade do Estado de responder às questões sociais. Nesse sentido, os movimentos feministas e de mulheres têm ocupado uma posição ímpar na construção de alianças sem fronteiras e no questionamento do status normativo das democracias. O impulso feminista despertado nos últimos anos, vinculado à pluralidade de corpos que exigem enunciação, tem mostrado como a linguagem de gênero não pode ser assimilada pela semântica dos Estados e que a própria percepção de gênero cruza posições de autoridade e violência. Tais evidências começaram a apresentar um novo arsenal de compreensão sobre o que é a violência e como ela se interconecta com a produção de corpos.

Os debates que atravessam a proteção das vidas das mulheres e as repercussões jurídicas que envolvem violência de gênero têm ocupado uma posição particularmente importante nas disputas feministas sobre administração da justiça e a relação entre movimentos sociais e Estado. Essa discussão, por óbvio, não é de agora, mas hoje, mais do que nunca, as questões de gênero e dos corpos precarizados coercitivamente por condições econômicas e sociais assumem uma desconfiança profunda das intervenções estatais e das práticas de seus agentes. Ressoam mundo afora expressões como “me cuidam minhas amigas e não a polícia” ou “não me cuidam, me violam”, ambos gritos de ordem em levantes feministas no México, ou “o violador é você”, performado pelas chilenas do Las Tesis ao apontarem a cumplicidade do Estado nos casos de violação.

A “nova” conjuntura que coloca também a forma-Estado como objeto indispensável de análise se propõe a pensar como as violências de gênero são plurais e conexas, ampliando assim o arsenal de significados passíveis de serem interpretados sob essa semântica. Os movimentos feministas contemporâneos, promovidos pelas “mais jovens” — como denomina Raquel Gutiérrez Aguilar —, têm levantado a relação de uma gramática que nomeia a violência, articulando-a ao continuum patriarcal, com uma pragmática antivitimista, que nos interpela a enfrentar as formas plurais de violência a partir de diferentes estratégias, conforme afirma a companheira Cristina Vega.

É, nesse contexto, que o debate produzido por Rita Segato e Miriam Lang é trazido à cena pública. Com o objetivo de tensionar a razão punitiva que pode perpassar as demandas feministas por justiça e contaminar os espaços mistos de sociabilidade política (“comunidades transformadoras”), as autoras buscam estabelecer um diálogo para pensar criticamente como nós, feministas, nos confrontamos com a sempre difícil posição de reivindicar justiça sem cair na armadilha da vingança e da punição. Punição, inclusive, não como mera forma correspondente à aplicação da pena realizada pela Justiça do Estado, mas como modo de vida capilar, racionalidade reverberada em nossas relações interpessoais e exercida de maneira arbitrária na reafirmação do desejo punitivo, que se traduz naquilo que chamam de “cancelamentos” ou “justiçamentos sumários”.

As autoras em Justiça feminista perante o Estado ausente: um debate urgente acenam dois vieses de preocupação diante das articulações feministas atuais: a primeira em resguardar nossas conquistas por direitos e pelo reconhecimento social das violências que nos atravessam, e a segunda em não nos rendermos ao poder punitivo como estratégia responsiva às mais diversas formas de violação que sofremos. Aqui, a abertura estabelecida pelo texto nos convida a pensarmos essas duas questões como indispensáveis para tecer caminhos e estratégias de luta hoje. Para tanto, adoto a primeira pessoa para conversar com essas inquietações provocadas por Segato e Lang.

Como ponto de partida, afirmo que tendo a concordar com a crítica à racionalidade punitiva que afeta os movimentos sociais — de maneira geral, sem exclusividade aos movimentos feministas — e insisto na urgência em adicionarmos o punitivismo aos cavaleiros apocalípticos de nosso tempo: capitalismo, colonialismo, racismo e patriarcado. Não é possível compreender o modo de vida letal contemporâneo, suportado pelo genocídio, pelo extrativismo, pelo endividamento, pela migração forçada, pelo aniquilamento da terra, dos animais e das águas, pela exploração dos corpos precarizados, pelas fronteiras, pela polícia e pela prisão, sem que esses dispositivos que organizam e hierarquizam vidas sejam tomados em conta conjuntamente. Nesse sentido, me parece que as articulações que vêm pensando as violências interconexas e produzindo devires insubordinados aos mandatos que buscam domesticar os corpos são ativados pelos movimentos feministas mais recentes e têm se dado considerando radicalmente essas permeabilidades.

Por essa razão, de forma diversa às questões trazidas pelas autoras, considero que a crise dos espaços mistos não seja um problema causado pela racionalidade punitiva e, tampouco, que essas crises devam ser local privilegiado de enfrentamento. O que coloca em crise os espaços mistos (de projetos políticos compartilhados) permanece sendo as violências perpetradas e a naturalidade com que elas seguem ocorrendo (causando, inclusive, uma tensão sobre o que o político desses projetos significa).

A reação a essas violências pode, sim, ostentar uma expressão punitiva de cancelamento, exclusão, banimento sem “devido processo” e “contraditório”. Contudo, se a centralidade da crise está em admitirmos que não existe local imune a esses quadros patriarcais de violência, parece também urgente que nós assumamos que, tanto a exposição à violência nesses espaços quanto a aspiração libidinal de vingança devam ser igualmente tomadas em consideração como estratégias de precarização da vida, portanto, radicalmente feministas. Ambas inegociáveis, ambas inadmissíveis. Ambas combatidas como posições corrosivas aos processos de luta coletiva, exigindo de nós subjetividades outras.

Para isso, para além de adotarmos uma interrogação sobre como as práticas de “justiçamento” têm se operado no interior desses “espaços mistos”, talvez a provocação esteja em questionar: quão transformadores podem ser espaços que seguem admitindo a violência e dúvida sobre a palavra da vítima, ao mesmo tempo em que seguem afirmando a exclusão e o autoritarismo punitivo? A crise me parece a possibilidade da criação de algo outro, a capacidade de ruína de espaços em que os rituais de sociabilidade estejam ainda conformados a essas práticas. Talvez mais importante do que mobilizar a potência do desejo a compatibilizar essas ambiguidades, seja criar dinâmicas “mistas” que possam ser produzidas por pessoas dispostas a enfrentar diretamente cada um dos aspectos que mantêm verticalização, domínio e subjugação.

Tenho particular interesse em fazer algumas perguntas que talvez possam nos ajudar a ajustar nossas alianças feministas e antipunitivas ao analisarmos os conflitos que se operam nessa encruzilhada: 1) Em que medida a fragmentação de coletivos, comunidades, espaços políticos — ou uma mínima desestabilização — ocorre em decorrência de violência contra corpos vulneráveis? E em que medida se dá pela postura reativa a essas violências? 2) Se a capacidade de ouvir, de trocar e de se solidarizar com a condição vulnerável que partilhamos é o que produz projetos políticos, no que se tem insistido como transformador nesses espaços? 3) Se estamos articulando essas críticas nodais à forma que o patriarcado opera no interior das relações há tanto tempo, por que elas seguem ocorrendo de forma naturalizada em espaços que deveriam ser seguros para construção coletiva? 4) Se temos insistido que a desconfiança sobre nossas narrativas produz uma posição hierárquica desigual sobre quem é o sujeito habilitado a falar, como o emudecimento de quem for pode colaborar com o deslocamento ativo da justiça?

Penso que essas perguntas tenham a capacidade de nos ajudar a identificar em quais espaços e em quais relações devemos insistir. Não são perguntas que nos dão respostas universais e, por isso, elas nos lembram que as experiências são sempre posicionadas, parciais, singulares e jamais imunes às formas subjetivas hegemônicas. E por serem contaminadas pelas práticas de conformação de corpos, a posição intransigente está em reconhecer, analisar e narrar o que não se quer mais, o que não se admite mais.

Entendo essas expressões como uma intransigência estratégica (me utilizando da categoria de Gayatri Spivak) para estabelecer zonas de autodefesa, em que não se possa avançar e nem retroceder naquilo que não mais se aceita. São áreas que não serão ocupadas pelos termos da mediação, que não serão privatizadas pela racionalidade estatal contratualista em que, para uma satisfação de uma maioria hegemônica abstrata, é necessário renunciar cada corpo dissidente como cláusula elegível. Aqui, parece-me que temos algo que as “feministas que estão chegando” têm nos ensinado significativamente: a posicionar a recusa como ação política de afirmação.

As políticas do não, como gesto de rejeição aos modos de vida contemporâneos, nos ajudam a esboçar por quais caminhos não percorremos mais. Essas ações têm, inclusive, demonstrado como a aposta no Estado e suas estratégias de contenção dos problemas às vulnerabilidades dos corpos são produzidas sob a lógica da “colonialidade do poder” e como tendem a incrementar condições de precariedade. Assim, o descrédito que apontamos à justiça estatal nada tem a ver com ausência — de respostas ou de ações concretas —, mas sim com seu devido funcionamento, operacionalizado em sua forma mais real. Ou seja, de maneira a reafirmar quem é ou quem são os sujeitos de direito no interior do Estado, cuja consequência é reforçar as violências contra aquelas pessoas que jamais serão assim consideradas — não por erro ou falha, mas por programação colonial-racista-patriarcal

A potência feminista, como Verónica Gago nos afirma, está também em sair da lógica do resgate e do refúgio para nos deslocarmos a construir “tramas mais densas de defesa, autodefesa e proteção”. Dessa forma, agir ativamente contra o Estado é agir ativamente contra a institucionalização patriarcal e a tutela de nossas demandas pelo poder punitivo (conjuntamente). Neste ponto, alinho-me ao que Segato e Lang acenam em seu texto, quando dizem que “o ‘cancelamento’ do acusado é uma estratégia muito afim ao sistema que se pretende desmontar”. Isso porque pensar o poder punitivo como estratégia de reivindicação de direitos é apostar numa ferramenta bélica que insiste em produzir confinamento. O confinamento aqui não é só um resultado “pena” a ser aplicado ao agressor, mas também é a posição da vítima confinada à violência sempre traduzida pelo “doméstico”, é o confinamento das violências à lógica privatizada e individualizante do sistema penal, é o confinamento da capacidade de autodefesa que os feminismos insistem em produzir. Portanto, sair do confinamento instituído pelas estratégias de punição é rebelar-se também contra a ocupação territorial que insiste em “aterrissar” sobre os corpos vulneráveis na fusão “colonialismo e patriarcado”.

Essas constatações, no entanto, não estão distantes do que se tem sido criado pelas estratégias das chamadas justiças feministas. São questões indispensáveis que acenam para formas de justiça que não sejam discriminatórias, que não sejam autoritárias e que se recusem a “negociar com dispositivos letais”, tais como os ativados pelas racionalidades punitivas. Para tanto, algumas práticas podem ser aqui indicadas como rotas de ação, que já vêm sendo desenvolvidas: 1) reconhecer que os problemas das violências de gênero não são individuais, são transversais e que afetam nossos corpos coletivamente. Portanto, 2) é necessário multiplicar as resistências, ao 3) construir alianças de autonomia entre mulheres e corpos feminizados e racializados. Para isso, é 4) necessário romper o silêncio, 5) reapropriarmo-nos dos nossos corpos, 6) desenvolver estratégias de proteção mútua em todos os espaços e por todas as pessoas envolvidas nos coletivos em que estamos inseridas, 7) criar espaços de justiça fora da lógica moral e patriarcal e, por fim, que 8) essa justiça seja feita desde nossas experiências e nossos corpos. Daí a dimensão estratégica da justiça feminista.

O gesto do diálogo, nesse convite aberto às tensões propostas por essa conversa entre-textos, é um dos pressupostos feministas do nosso tempo. A rebeldia que nos provoca é aquela de querer “transformar tudo desde baixo” (Verónica Gago). Por isso, o deslocamento em que busquei insistir acena também em duas direções desde baixo: a primeira, a ideia da justiça feminista ― já em curso por movimentos feministas, especialmente pelos feminismos negros e indígenas, por coletivos de mulheres e corpos dissidentes no Brasil, na América Latina, no Caribe e em alguns países do Norte global —, deve servir de base de apoio para que comunidades realmente transformadoras sejam criadas; é desde aqui e não o contrário. O esforço de conformação e a orientação da bússola ao que se entende por coletividade devem ser recalibrados urgentemente. A segunda, tentarmos pensar a persistência radical no agir político a partir da afirmação de María Galindo, de que para descolonizar é preciso despatriarcalizar. E isso nos exige assumirmos que o ponto de impacto, para desmantelar as hierarquias e as binaridades que erigem o patriarcado, passa impreterivelmente pelo esforço localizado de interpretar as investidas feministas como práticas de fissuras partilhadas, incompatíveis com as métricas verticais, os esforços de confinamento e a construção racializada e gendrada do Outro. No fim, investidas de ataque necessariamente rebeldes: antirracistas, anticoloniais, anticapitalistas, portanto, antipunitivas.