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Argumentos em discussão frente às ideias sustentadas por Lang e Segato em sua provocação Justiça feminista diante da ausência do Estado: um debate urgente

No seu oportuno documento Justiça feminista no Estado ausente: um debate urgente, Lang e Segato expõem com clareza duas preocupações relacionadas àquilo que caracterizam como o resultado das reiteradas campanhas de denúncia levadas a efeito por um conjunto muito amplo de diferentes mulheres opostas à imensa rede de violências machistas e patriarcais que estruturam a vida social. Compartilho aspectos da primeira preocupação que elas expressam e divirjo do enfoque com que tratam a segunda preocupação. Ou seja, concordo que é urgente fazer um amplo debate sobre as maneiras com que podemos preservar e incrementar a força desencadeada pelas alianças heterogêneas entre muitíssimas mulheres e corpos dissidentes neste tempo de aberta rebelião feminista, e também acompanho sua visão quando assinalam que há riscos e ações que se propõem a boicotar e/ou neutralizar a capacidade de impugnação que já foi alcançada.

Ainda assim, com respeito à segunda linha de sua argumentação, as colegas dizem ter “[…] uma preocupação com a continuidade e o potencial transformador de diversos espaços compartilhados por homens e mulheres”, e mais adiante se referem a: “Espaços mistos que apostam na mudança sistêmica em alguns de seus aspectos, e que agora passamos a chamar de ‘comunidades transformadoras’”. Muitos dos argumentos a seguir tratam da crise que muitos desses espaços mistos estão atravessando.

Em contraste com a perspectiva sugerida, minha posição é a de comemorar essa crise dos espaços mistos, sobretudo quando se questionam os traços nitidamente patriarcais que estruturam esses “espaços compartilhados”. Comemoro assim a atual crise do “misto”, na medida em que, se a tratarmos num debate profundo e sereno, ela pode ser o prelúdio de um reajuste, de um reequilíbrio na trama das relações situadas em cada “comunidade transformadora” específica — usando a linguagem que propõem. Cumpre comemorar a crise dos espaços mistos para desarmar e impugnar os traços patriarcais que eles exibem, e que operam em seu interior reestabelecendo hierarquias e agressões que hoje se repudiam continuamente, e ao mesmo tempo buscar o reequilíbrio e a regeneração das relações que organizam tais espaços. Este, a meu ver, é um caminho possível para impulsionar a “produção de justiça”, tal como enunciada por María Galindo. Essa produção de justiça também no interior de nossos “coletivos mistos” é uma questão central de nossa prática.

Nas páginas seguintes, assim, trato de entrar em sintonia com o agudo e intransigente espírito crítico que as mulheres mais jovens em movimentos e situações muito diversas vão colocando em curso: quando não deixam passar a mais mínima sensação de incômodo, ou agressão, ou crítica feita no afã de disciplinar ou controlar a disposição que nós mesmas alcançamos coletiva e individualmente. Entro em sintonia, sobretudo, com a imensa capacidade expressiva que nomeia com clareza as quantidades de ofensas que se tornaram insuportáveis e também com movimentos de repugnância que elas não estão dispostas a dirigir nem a si mesmas nem a outras, buscando canalizar essa fúria desencadeada para subverter cada situação. Percebo, sim, que com frequência fazem isso um tanto às cegas, enfrentando obstáculos diversos nesse caminho. Um desses obstáculos é a limitação que se opera na imaginação e na prática política, quando ao cogitar da capacidade coletiva de produzir justiça topamos como modelos que se parecem aos da chamada “justiça ordinária”. Assim, concordo com Lang e Segato na ideia de que o modelo da “justiça ordinária” — que parte da denúncia, organiza o processo individual do “acusado” conforme “tipos penais” e estabelece a proporção do castigo pela falta cometida — não funciona quando a finalidade é confrontar/impedir o dano patriarcal que algumas pessoas provocam ostensivamente e estabelecer termos de convivência que não se fundamentem no abuso e na violência como eixos de relacionamento, sobretudo nas relações entre os gêneros. A finalidade da justiça ordinária é processar o agressor e administrar o castigo que ele merece. A justiça feminista como confrontação do dano patriarcal e abertura a uma tentativa de normas que reequilibrem a convivência coletiva é, evidentemente, outra coisa.

Abrir a discussão sobre o tema — e estimular a prática cotidiana de lutas feministas que ocorre num sem-número de espaços circunscritos — defronta-se de maneira direta com os tímidos esforços institucionais feitos em diversas entidades (universidades, algumas empresas cooperativas, alguns órgãos públicos etc.) para dar conta das “violências machistas” e/ou “de gênero”. Tais iniciativas, baseadas quase sempre no estabelecimento de instâncias para processar os “casos de violência” — chamadas com frequência de “organismos” ou “comissões” de gênero — têm-se revelado, até onde podemos saber, bastante inúteis. Um dos efeitos que foram observados em diversas universidades mexicanas, por exemplo, é que as soluções propostas por tais instâncias se baseiam, com muita frequência, na ideia de “proteção da vítima” e não na de “contenção do agressor”: a pessoa agredida que faz a denúncia termina sendo encaminhada a algum programa de “apoio psicológico”, e aquele/aqueles que cometeram o delito são “advertidos” para que não o repitam, sem que haja nenhuma consequência real sobre suas vidas cotidianas. Tudo isso, ademais, ocorre em meio a um clima de sigilo, sob a alegação de se proteger a privacidade. Quando esse padrão se repete muitas vezes, percebe-se a inutilidade de tais instâncias e muitíssimas mulheres optam, a meu ver com razão, por pressionar em favor da expulsão do agressor. O problema é que é a simples expulsão de “um agressor”, sem um debate de fundo, sem uma reflexão aprofundada, não recompõe as relações intragenéricas que se situam no lugar em que o evento ocorreu, e, na verdade, termina gerando reações desagradáveis de todos os tipos.

O modo com vejo o problema, expresso em termos bastante esquemáticos, é o seguinte: quando as mulheres e outros corpos feminizados optam por políticas de cancelamento ou de expulsão de agressores reincidentes, elas têm razão se avaliamos as coisas apenas como uma reação imediata de autodefesa. Contudo, no longo prazo, se não se discutem com clareza os meios de encaminhar as potencialidades recuperadas quando o mandato de silêncio é rompido — para além das expulsões; se não se criticam a fundo os fundamentos do modelo da justiça ordinária… não teremos êxito, coletivamente, na regeneração dos laços de convivência através dos quais se pode ensaiar a produção de um misto não patriarcal. Nesse sentido, não se trata de sugerir que as mulheres “se contenham” — como andaram afirmando algumas antigas feministas mexicanas — mas sim de abrir espaços para pensar juntas sobre problemas realmente difíceis.

Uma vez exposto meu imediato reconhecimento da iniciativa de Rita e Miriam para chamar uma discussão sobre o agudo problema da produção urgente de justiça contra os danos patriarcais, apresento de modo resumido alguns elementos através dos quais algumas de nós estão se orientando para equacionar o problema:

  1. Não renunciar aos espaços “entre mulheres” nem a uma política feminista em matéria de uma justiça impulsionada “a partir de nós mesmas” que pode se orientar pela pergunta: “o que queremos que aconteça?”, formulada em cada situação específica de agressão, destituição e/ou violência. Desde logo, a pergunta já não é: “A quem temos de cancelar/excluir/castigar e como conseguiremos isso?”. A pergunta coletiva sobre o que seria conveniente que aconteça altera o esquema persecutório e punitivista da justiça ordinária, e, simultaneamente, não nos paralisa.

  2. Não privilegiar a manutenção dos “espaços mistos” em desfavor dos desejos que brotam das experiências de enlace, conversação e força das mulheres, sobretudo porque é imprescindível colocar em crise — dentro dos tais “espaços mistos” —os traços patriarcais que os estruturam.

  3. Questão relevante: abrir-se aos ensaios práticos, tenazes e cuidadosos de regeneração de alianças entre mulheres e homens não violentos. Em outras palavras, cultivar o “entre mulheres” como eixo da prática feminista e da luta das mulheres não conduz nem necessária nem imediatamente ao separatismo, mas sim, nas “comunidades transformadoras” ou lugares mistos e onde valha a pena ser tentando, a um caminho de reequilíbrio nas relações intergenéricas erodindo os pactos patriarcais que as estruturam.

  4. Não copiar as formas existentes da justiça moderna — criticando, em especial, o esquema persecutório-punitivo da justiça ordinária — exige de nós, de todo modo, responder a duas questões que não podem ser deixadas de lado: não deixar impune o agravo específico e, ao mesmo tempo, delinear caminhos para que não se repita.

  5. As linhas para orientar nossa prática sobre a produção — imediata e estratégica — de justiça são: como tratamos da capacidade de gerar força para nós e dentro de nós mesmas — e com os homens não violentos? E também: como exercemos essa força, considerando acima de tudo a imensa ação reativa que surge entre alguns homens quando impugnamos os termos “costumeiros” de convivência que já não estamos dispostas a aceitar?

  6. Até onde posso entender no momento, a partir do conjunto de experiências que tive ou acompanhei, sei que alterar/subverter alguns traços patriarcais estabelecidos na estruturação da vida social — e, portanto, produzir justiça feminista — passa por a) marcar coletivamente limites muito claros que distingam o admissível do inadmissível e b) experimentar formas criativas de emendar agravos e restituir os bens agredidos. Um dos problemas mais duros que surgem aqui, nas instâncias mistas ou nas chamadas “comunidades transformadoras” é a força da inércia e a magnitude do não reconhecimento, assim como a virulência da reação daqueles homens que são objeto de crítica.

Em resumo, a ideia da justiça, desta perspectiva, se guia a) pelo princípio da não repetição, que exige que se fixem limites com máxima clareza; b) pela produção coletiva de equilíbrios nos quais se leva em conta a parte mais frágil/vulnerável da trama concreta, específica, e se passa a proceder a partir daí. Trata-se, portanto, de processos múltiplos de “produção de justiça”. A partir de tentativas específicas e múltiplas aprendemos e ensaiamos generalizações. Não partimos, pois, de reflexões universais.

Todo o argumento anterior se guia por uma última questão que também vale a pena considerar: não sabemos muito bem como reconstruir, nas condições atuais, a transmissão intergeracional de experiências entre mulheres diversas e feministas. De todo modo, considero que nós, mulheres maduras, precisamos abrir nossa sensibilidade para os esforços que as mais jovens estão realizando. Há algo de muito valioso na intransigência que frequentemente elas expressam em suas palavras e ações. Talvez se requeira, na experimentação de caminhos férteis para a produção de justiça, uma combinação pouco frequente de intransigência e serenidade, da flexibilidade que deriva da confiança nas próprias forças e da convicção inabalável de que sabemos o que não haveremos de admitir.

Seguimos em frente.