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Há fogos e fogos

Agora não espero mais aquela madrugada
Vai ser, vai ter que ser
Faca amolada

“Fé cega, faca amolada”,
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

Essa é uma nota rápida, escrita na noite do incêndio na Cinemateca Brasileira, a 29 de agosto de 2021. Cinco dias antes, o grupo Revolução Periférica ateou fogo na estátua do bandeirante Borba Gato, na zona Sul de São Paulo. A proximidade dos eventos incitou uma coceira comparativa.

O incêndio do Borba Gato é resultado de um desejo claro, um gesto de pura intencionalidade. É preciso matar essa estátua. O ato irrompe libidinoso, violento, afiado, com um tipo de vigor e de clareza sublinhado pelo dia de sol. É fogo às claras, que cega afiado como navalha, e repete, sem hesitar, que é preciso matar essa porra dessa estátua. E faz sentido que seja assim: no século XIX acreditava-se que os monumentos públicos erguidos em homenagem aos “grandes homens” seriam capazes de “irradiar” sua suposta virtude para o seu entorno, contaminando positivamente os seus arredores e os passantes. Assim sendo, que atributos irradia a imagem playmobil do escravizador de indígenas? Assassinato, morte, violência colonial. Magia contra magia, o ato de incendiar o Borba Gato é em si uma forma de “monumento contramonumento” e, por isso, deve ser nítido e público.

Já o incêndio no depósito da Cinemateca Brasileira vem sem qualquer surpresa. Faz um ano que o Governo Federal interveio na Cinemateca, dispensou a equipe de funcionários competentes e dedicados, pegou a chave na marra e trancou suas duas sedes para fazer nada. Na ocasião, a prefeitura de São Paulo apresentou uma proposta de reestruturação da instituição, com dinheiro, planejamento etc. O governo disse “não”, e a Cinemateca ficou com Regina “Leve” Duarte. E pra quê? Claríssimas nebulosas intenções: para deixar morrer. Para largar a memória do cinema brasileiro à roleta russa das intempéries, dos fungos, das faíscas. Todo mundo sabia que era questão de tempo. E daí o dia chegou, assim discreto, depois do expediente, numa noite qualquer. O fogo chegou como chega um ônibus.

O incêndio do Borba Gato tem autor: Revolução Periférica. Um dos seus membros apresentou-se à polícia na quarta. Galo, entregador de aplicativo e ativista, está em inexplicável prisão preventiva. Mais perverso ainda, sua companheira, Gessica, que sequer estava no local, também está presa. Os dois cuidam de duas crianças, o irmão de Gessica, de nove anos, e a filha do casal, de três… Por outro lado, o incêndio na Cinemateca não tem nem terá responsáveis, apenas causas objetivas: um curto, uma falha elétrica etc. Alguém responde pelo fogo no Borba. Ninguém responderá sobre o fogo na Cinemateca.

São dois fogos de personalidades distintas: um é produto de um gesto nítido, outro é pusilânime, indiferente, morno. Não são essas características marcantes do complexo sociointestinal que nos governa hoje? A assumida fraqueza, o deixar pra lá, “não dá”, “não posso”, “quer que faça o quê?”… A ideia que vai a seguir não é minha. Peguei de orelhada da Anna Teixeira Pinto: e tento relatar meio na pressa, como não se deve:

Aimé Césaire percebeu que os fascismos originais, na Alemanha e na Itália, mimetizavam as formas coloniais que os europeus aplicavam fora do seu continente. Césaire diz: “[para a elite europeia,] o imperdoável em Hitler não são os crimes em si (…) mas o fato de que são cometidos contra os brancos (…) na Europa”. Imperialistas, os fascismos originais eram regimes “de fronteira”, ou seja, funcionavam numa lógica de expansão, avançando sobre as fronteiras territoriais e tecnológicas — cultivavam um aceleracionismo, mesmo que invocassem um arcaísmo mitológico. Os fascismos recentes são diferentes nesse aspecto (embora o resultado seja sempre o mesmo). São fascismos “de fronteira negativa”, ou seja: de contenção. Contenção do quê? Contenção da vida. Economicamente, são os fascismos do “não podemos nada, não se pode nada”. Politicamente, são fascismos do “ficamos em nosso território, e ninguém diferente de nós venha querer existir sob nossos olhos”. Contêm muitas vezes um nacionalismo às avessas, do tipo “patriotas, acanhemo-nos!”.

Bolsonaro é um exemplo dessa nova versão do fascismo. A imagem de Brasil que ele nos oferece é uma anti-imagem, no sentido de que já não se trata, como nos fascismos dos anos 1930, de propor uma virtualidade modelar, mas de restringir, passo a passo, a complexa paisagem social, física, cultural e econômica nacional, reduzindo-o a um Brasil pastoril, garimpeiro, com rodovias a perder de vista repletas de caminhões carregados de soja — que come e caga, e nada mais. Não são os fascismos da era imperial, mas da era neoliberal: o mundo reduz-se ao indivíduo, e este não pode nada.

Bolsonaro disse na campanha: antes de construir é preciso destruir. O encadeamento tosco trai uma diferença sutil. Sim, é preciso destruir. Mas o gesto da Revolução Periférica ensina: é preciso pensar e afirmar o que destruir, e como… destruir construindo, construir destruindo.

Há fogos e fogos: o fogo no Borba Gato faz algo aparecer: o genocídio indígena, o racismo, a violência colonial, todas as homenagens que ainda existem a torturadores e ditadores. É fogo que põe coisas em movimento e abre possibilidades de renovação. É fogo que faz ver a sombra do boneco gigante bandeirante. Já o incêndio na Cinemateca convoca apenas o riso congelado da Regina, vazio frio de morte.