4

Fora Bolsonaro, unidade democrática e lições para o futuro

Betume 3, Eduardo Climachauska

O desgaste de Jair Bolsonaro e de seu governo é inegável. A estratégia adotada — discutível, vê-se hoje — desde o começo do mandato era consolidar posições e avançar com certo cuidado. Embora a estratégia de campanha prometesse conflitos imediatos e intensos, com a esquerda posta sob ataque, o capitão e seus generais preferiam inicialmente ir comendo pelas beiradas, pelas zonas de menor resistência. Na verdade, o projeto estava dando certo e seria no médio e longo prazos que sua coalizão colheria os frutos das iniciativas governamentais, autoritárias, conservadoras e neoliberais. A pandemia acertou-o em cheio. Ao tentar copiar a resposta negacionista de Donald Trump, ainda mais com este derrotado em sua tentativa de reeleição, Bolsonaro acabou por comprar brigas inúteis, perdeu grande parte da classe média do Sudeste e do Sul que o apoiou em sua eleição em 2018, mostrou-se para muitos tacanho. Até a vacina inicialmente boicotou. A ameaça constante à democracia não parece ter descido bem tampouco em grande parte do eleitorado.

Desde o início do governo — na verdade desde a campanha, como se via no discurso de seu vice Hamilton Mourão — a perspectiva do autogolpe estava posta. Mas somente se dessem certo as outras iniciativas isso seria em princípio possível. Ou Bolsonaro teria que se aproveitar do momento inicial do governo, em que tinha muita popularidade, contava com a complacência do eleitorado e podia multiplicar os conflitos que justificariam medidas de endurecimento contra a esquerda e enfim em relação aos aspectos mais democráticos da democracia liberal. Obviamente, não havia bola de cristal nas mãos de ninguém; a pandemia era imprevisível. Bolsonaro perdeu assim seu impulso e momento iniciais, seus adversários principais terminando por ser não uma esquerda altamente fragilizada e desorientada, mas sim o establishment liberal oligárquico que domina em larga medida a política e o judiciário no Brasil. A ameaça de autogolpe virou então tentativa de chantagear a todos que não comungam com sua visão de Brasil e da conjuntura, assim como preparação para uma temida derrota eleitoral. Bolsonaro sabe que, fora do poder, sua prisão e a de seus filhos é mais que uma possibilidade. Seus crimes na presidência da República estão mais que expostos, assim como os quase inocentes esquemas de corrupção em que estão todos eles envolvidos.

De fato, a reação do sistema liberal no Brasil vem se mostrando muito mais robusta do que se poderia imaginar. O judiciário, com o Supremo Tribunal Federal à frente, diminui em muito a margem de manobra de Bolsonaro. Ninguém menos que o ministro Alexandre de Moraes, secundado por Luis Roberto Barroso, vem batendo de frente com Bolsonaro. Ninguém menos que Gilmar Mendes vem aceleradamente promovendo a reconstituição do sistema político liberal oligárquico que nos trouxe até essa situação de ameaça autoritária, já em sua imbricação com a centro-esquerda petista, mas que neste momento se mostra como o dique fundamental aos desejos do capitão de virar a mesa, sem que as forças armadas por ora ao menos tenham comprado seu projeto, em sua radicalidade. A esquerda tem sim contribuído para a manutenção da democracia, no Congresso e nas ruas, mas não tem, minoritária social e institucionalmente, ademais de bastante desmoralizada, estado na dianteira da oposição a Bolsonaro (a despeito do enfraquecimento deste e dos fortes índices eleitorais de Lula).

Após mais uma sequência de provocações e mobilização de suas bases, incitando a um confronto direto com o STF, com direito a ofensas pessoais, Bolsonaro ostensivamente recuou. Desculpou-se e, aparentemente, perdeu apoios em sua base. Alguns acham que com isso a possibilidade de um autogolpe foi afastada. Será mesmo? Essas foram as maiores manifestações que Bolsonaro já conseguiu promover. Supostamente desmobilizados, aqueles que seguiam Sara Winter, ou com ela simpatizavam, voltaram animados às novas manifestações, mais massivas. O exército não comprou o projeto de Bolsonaro alguns meses atrás, mas ele conseguiu trocar o comando das forças armadas, pondo nele um general de sua estrita confiança. Ou seja, Bolsonaro joga xadrez, não dama, como muitos na esquerda brasileira querem jogar, mal entendendo movimentos de peças que somente mais adiante talvez sejam de fato mobilizadas. Em suma, trata-se de uma acumulação de forças, em que avanço e recuo são cinicamente manipulados, gerando-se certo desânimo na tropa que o segue, que entretanto vem seguidamente desfrutando da mobilização e do confronto.

Pode-se argumentar que eleitoralmente Bolsonaro estaria morto e que, sem o exército, pode até fazer algum estrago, mas que será incapaz de virar a mesa ao perder a eleição, como é incapaz agora. Que inclusive sua situação tende a se deteriorar. Pode ser. Mas isso é trocar o certo pelo incerto. Bolsonaro é um jogador de xadrez, porém extremamente ousado. Tem pouco a perder, um confronto maior garantindo-lhe, mesmo que derrotado, papel relevante na sequência das eleições de 2022 — sem que esteja garantido que as perderá. Há muita água a rolar até as próximas eleições, Lula é um candidato com muitíssimos problemas, que emergirão durante a campanha e no período pós-eleitoral, caso as vença, sem contar que Bolsonaro continua mantendo seus 25–30% de apoio eleitoral intacto, necessitando provavelmente recuperar algo como 15–20% para se fazer viável em um segundo turno, a possiblidade de que chegue a essa fase sendo bastante grande. Missão difícil, mas de modo algum impossível. Jogo é jogo, treino é treino, dizia o cronista.

De todo modo, o fato é que uma vitória da oposição é fundamental. Perder a próxima eleição para Bolsonaro seria ainda pior do que ter perdido a de 2018. Não se trata de o fascismo enquanto tal, na forma de seu regime clássico, ser hoje uma possibilidade, sequer de que retorne o regime militar que conhecemos (o “autoritarismo burocrático”, segundo O’Donnell). Nos últimos três anos pudemos, todavia, constatar o que significa um presidente de extrema direita, aliado às forças culturais mais retrógradas de nossa sociedade, e agora aos setores mais brutais da oligarquia patrimonial que nunca larga o poder no Brasil. Nesse sentido, é difícil entender como a discussão de uma frente ampla democrática contra Bolsonaro ser necessária ou não pode ser pôr. Não se trata de a todo custo ter uma candidatura única à presidência da República, uma vez que nem os liberais de hoje, nem o PT desde sempre, nem o Psol, a despeito de certas divisões internas, se filia à tradição da unidade democrática contra o fascismo — praticamente o único meio pelo qual se pode a ele resistir e derrotá-lo. Mas pelo menos a unidade dos princípios e das iniciativas comuns contra Bolsonaro e seu projeto tem que ser buscada.

Isso incide diretamente na questão do impeachment. Bolsonaro cometeu inúmeros crimes na presidência da República, da gestão da pandemia às ameaças à democracia. Nada justifica uma atitude esperta de deixá-lo sangrar para que seja mais facilmente derrotado. A política brasileira vem se autodestruindo por projetos de poder que tem seu eixo na esperteza — que de tão grande acaba enrolando o esperto. Mobilizar-se unitariamente pela democracia e pelo impeachment é uma tarefa necessária em si, a qual pode ajudar também não só a desgastar Bolsonaro e aprofundar seu isolamento, com seus cupinchas no Congresso, porém igualmente forjar a unidade de que necessitamos e necessitaremos para nos contrapormos a suas ameaças autoritárias e a suas tentativas de golpe. Não há desculpa nem razão para não investir pesadamente nessa ampla frente. O impeachment não é instrumento a ser banalizado, nem muito menos a ser injustamente utilizado. Mas, neste caso justifica-se, requer-se o impeachment, de maneira absoluta. Talvez nunca o Brasil tenha sido tão maltratado, talvez nunca um presidente tenha cometido tantos crimes de responsabilidade, afora aqueles que, ocorrendo durante a ditadura militar e ou no Estado Novo de Vargas, Bolsonaro gostaria hoje de imitar.

Isso permitiria ainda mais que a esquerda — e a centro-direita — competissem mais tranquilas em 2022. Com essa unidade básica pública e fortemente assegurada, calcada na vontade das massas mobilizadas pela democracia, uma disputa eleitoral entre elas, mesmo que se veja uma delas apenas em um segundo turno contra Bolsonaro, poderia se basear em compromissos mínimos, que protegessem as instituições e mesmo aspectos cruciais das políticas sociais, sem que se abra mão de um programa progressista de reconstrução nacional. Por mais que certos setores abracem o neoliberalismo, os movimentos da opinião pública não os podem deixar indiferentes. Por outro lado, se é verdade que a centro-esquerda e a esquerda já não irão mesmo unidas à eleição (obviamente o PT prefere os caciques oligárquicos patrimonialistas a abrir mão de um projeto de poder sem que outras considerações joguem nisso papel maior), pelo menos uma unidade na luta de massas contra Bolsonaro, pela democracia e pelo impeachment poderia se forjar.

Ou seja, são muitas as razões que apontam para a unidade da luta democrática e para a continuidade da campanha pelo impeachment. Há muitas lições que delas se podem colher para o futuro. Se a democracia que temos tem muitas limitações, devemos defendê-la para podermos avançar rumo a um sistema democrático mais profundo, menos patrimonialista e de muito mais participação. Mesmo aqueles que supostamente as desprezavam e anunciavam seu fim, hoje as celebram — a democracia liberal da Nova República e a Constituição de 1988. Além disso, é mais que patente a necessidade de construir coalizões renovadoras e que tenham legitimidade frente ao eleitorado, com novos nomes e programas para o futuro. Do contrário, estaremos somente enxugando gelo e o problema logo se reapresentará. Os erros políticos do período pós-constituinte nos trouxeram até aqui. É preciso fazer com que — hoje mesmo — acertos políticos inovadores nos permitam bloquear retrocessos e recuperar o tempo perdido.