Fazer fracassar, mais uma vez, melhor

Resenha do livro Discurso de ódio: uma política do performativo, de Judith Butler. Tradução de Roberta Fabbri Viscardi. São Paulo: Editora Unesp, 2021.
O que aconteceu durante o tempo entre a publicação de Excitable Speech (1997) e sua tradução como Discurso de ódio (2021)? Em pouco mais de duas décadas, a consolidação da sociabilidade em meios digitais trouxe possibilidades para a circulação do discurso de ódio que Butler dificilmente poderia prever: a aceleração desgovernada da reprodução da injúria, a presença incontornável de megacorporações nas decisões sobre os destinos do discurso, a incorporação do ódio em plataformas eleitorais que se alimentam de circuitos algorítmicos e mobilizam redes dentro de redes dentro de redes de pessoas e máquinas e ciborgues. No entanto, essa atualização de nossa realidade em nada torna o texto de Butler obsoleto. Se a filosofia sempre carrega algo que excede o tempo no qual uma questão teve de ser posta — mesmo que esse exceder não seja o de uma atemporalidade inteiramente ahistórica —, podemos dizer que a pertinência da análise feita no livro permanece, ainda que o ritmo dos problemas esteja ainda mais difícil de acompanhar.
Em 1997, suas palavras se dirigiam aos entendimentos sobre performatividade presentes — explícita e implicitamente — nos debates sobre a censura jurídica e estatal das manifestações de ódio. O que significa, por exemplo, argumentar que a queima de cruzes no quintal de uma família negra não faz nada além de representar um ponto de vista protegido pelo direito à liberdade de expressão? A partir da década de 1950, nos EUA, tribunais estaduais passaram a proibir a queima de cruzes, decisões que motivaram, em 1992, uma decisão da Suprema Corte contra essas interdições — decisão tomada na abstração da própria história da violência racial e das práticas da Ku Klux Klan, na abstração da mera opinião oferecida no “livre mercado de ideias”. Butler não está apenas preocupada com a necessidade ou não da proibição: o discurso do juiz Antonin Scalia produz a redução do ato a uma mensagem, a algo que não se distinguiria formalmente de qualquer outra mera declaração de um ponto de vista — um ato de fala puramente constativo. É essa tradução que permite remover de cena o terror conjurado pelo ato, a preocupação legítima da família negra com a marcação de sua casa e com a violência prometida para o futuro. Se o ato discutido deve ser ouvido como injúria, ele não pode ser idêntico ao supostamente dito. Em outras palavras, o discurso de Scalia é também a introdução da cruz em chamas na taxonomia dos atos de fala, porém no lugar onde ela pode ser reduzida, ter o poder de sua presença confirmado no momento de sua própria ausentificação, ter sua historicidade esvaziada para que a mesma história continue.
Em 2003, a Suprema Corte produziu nova decisão: levando em consideração a história da violência racial nos EUA, a queima de cruzes poderia ser interpretada, em certos casos, como ato de intimidação, ameaça com intenção de praticar violência, ainda que o ato em si nem sempre tivesse essa finalidade. A diferença entre as duas decisões, como diferença de interpretação e localização, mostra a indissociabilidade, defendida por Butler, entre o poder de certos atos de fala e a herança que eles conjuram. Se, como dizia Austin em How to Do Things with Words [Como fazer coisas com palavras], a força dos enunciados performativos é assegurada por convenções sociais, como se dá essa relação? Pensar o alimento dessa força é fundamental para Butler: cometer uma injúria com palavras é fazer parte de algo, falar a partir de um comum que vem do passado como legado e vai em direção ao futuro como projeção — isso significa, portanto, que o poder da fala excede o sujeito que a põe em circulação mais uma vez. Mais uma vez: fazer parte é citar, repetir, confiar que, desta vez, das próximas vezes, a força não terá desaparecido, que ainda é possível ferir em comunhão linguística com todos aqueles que já tiveram sucesso em ferir. O poder da cruz em chamas é um poder social. E, novamente apontando para a diferença entre as decisões, esse poder só pode ser exercido quando dá continuidade à história do clã, nas iterações das mesmas letras — o terror não está no ato em si.
A origem do poder não é o sujeito que age/fala porque ele não age/fala sozinho, não é primeiro nem último. Daí a pergunta “Quem fala quando uma convenção fala?” (p. 51) abrir a análise da performatividade para a questão do poder, abertura que é uma das assinaturas de Butler: seu texto vem do encontro curioso (frequentemente interditado por olhares de reprovação) entre a teoria dos performativos de J. L. Austin e a teoria da interpelação de Louis Althusser. A primeira serve de ponto de partida para interpretar a cena montada na segunda: uma pessoa é interpelada por um outro com voz de autoridade, um outro que, ao ter sucesso em fazer com que essa pessoa se vire e se reconheça no chamado, que se identifique com o nome usado para convocar e dobrar — mas, dizia Austin, os atos com a forma do ritual podem sempre fracassar. “‘Olhe, um negro!’ Era verdade, eu me divertia. ‘Olhe, um negro!’ O círculo pouco a pouco se estreitava. Eu me divertia abertamente. ‘Mamãe, olhe o negro, estou com medo!’ Medo! Medo! E eis que agora eu era temido. Queria me divertir com isso até engasgar, mas isso se havia tornado impossível para mim”,1 relata Fanon em 1952. Fracasso, fracasso, sucesso no ritual de assujeitamento — (re)produção de subjetividade pela subordinação, esculpir a alma com atos ritualísticos, dobrando o corpo para dentro de si. Fracasso, fracasso, sucesso em fazer uma pessoa prestar atenção, virar-se reconhecida no nome injurioso, no nome que faz muito além de se referir a algo — nome instrumentalizado no “trabalho cotidiano que consistiu em inventar, contar, repetir e promover a variação de fórmulas, textos e rituais com o intuito de fazer surgir o negro enquanto sujeito racial”,2 diz Mbembe em 2013. Em 2021, temos o duplo acúmulo dos sucessos e fracassos; morte social negra e vida social negra.
O livro de Butler é uma longa intervenção destinada a reorientar nosso olhar para que as implicações do caráter ritualístico do performativo se mostrem, apareçam também no interior de um quadro mais amplo — sua obra, como um todo, opera como antídoto contra toda imaginação fatalista que, excessivamente entregue às obras da violência, acaba orientada para a identificação entre poder e ato, poder e palavra. Como se algumas palavras fossem elas mesmas dotadas de poder, como se esse poder fosse invariavelmente exercido com sucesso. Como se não tivéssemos poder diante das palavras e tivéssemos de recorrer ao lugar que identificamos como próprio do poder: o Estado. Agora, na aceleração de nossa existência digital, a urgência da resposta ao discurso de ódio nos põe diante de ainda outra forma de autoridade: a dos senhores da tecnologia. O tempo do discurso não é o tempo do sujeito — o sujeito corre atrás do fluxo ingovernável do ódio, ódio impulsionado por investimentos volumosos num mundo de bots, influencers, agitadores de Whatsapp, marketeiros digitais e das mesmas pessoas de sempre. Precisamos que algo seja feito. A devastação social produzida pela nova materialidade do discurso de ódio é sem precedentes. Uma cruz em chamas em cada feed, milhares de compartilhamentos e milhões de curtidas. Entregues à desarticulação e desorientação que reinam neste mundo, o que nos sobra além da ação radicalmente indireta, da esperança em Mark Zuckerberg e no STF como detentores do poder de interditar o poder imaginado intrínseco do discurso? Sobra o que sempre sobrou: nosso poder.
Se o trabalho de Butler pode ser lido como esforço contínuo de sustentar filosoficamente nosso poder diante da violência, Discurso de ódio pode ser lido como a variação disso enquanto teoria geral da performatividade. Não se trata apenas de pensar um fenômeno e acumular saber sobre ele — o que há de mais fundamental na reorientação do olhar é mudar relações, fazendo aparecer, diante de nós, aquilo que há de vulnerável naquilo mesmo que condiciona e intensifica nossa vulnerabilidade. Todo ritual pode fracassar. Todo performativo, enquanto citação (repetição e conjuração), pode fracassar. A vida de uma estrutura — como a do racismo estrutural, para repetirmos o exemplo — certamente excede o ato, mas depende dele para continuar, para ser vivida a cada vez, mais uma vez, mais uma possibilidade de fracasso. Para que uma estrutura viva e seja vivida, precisa se tornar vulnerável também, entregar-se aos destinos incertos do sujeito, à incerteza fundamental que marca o tempo da repetição. Assim, se um fazer parte garante o poder social da injúria, essa garantia não é plena. E mais: não somos átomos isolados contra a sociedade, as palavras e as coisas. Não somos apenas o corpo dobrado em súplica, em subordinação — da mesma forma que Césaire pode dizer, em 1939, que sua negritude não era “mancha de água morta sobre o olho morto da terra”, mas algo que “mergulha na carne rubra do solo”, “na carne ardente do céu”, “perfura o abatimento opaco com sua reta paciência”;3 Fanon pode citá-lo em 1952, “no paroxismo do vivido e do furor”,4 continuando, tentando continuar um fracasso, tentando ressignificá-lo com sucesso.
Se Discurso de ódio pode ser bem-sucedido em nos afetar e transformar, isso se deve ao seu próprio caráter performativo: ele faz algo em nosso olhar, no modo como as coisas aparecem. No lugar de uma visão determinista, fatalista ou simplesmente melancólica, temos a imagem vulnerável do que nos domina espelhando a imagem de nosso próprio poder. Além de intervenção, o texto também é convite: como repetição apropriadora das teorias que parecem não dever se encontrar, ele nos familiariza com o estranho e nos convida a pensar de maneira menos enclausurada. Por fim, é preciso dizer que, mais uma vez, Butler nos mostra o poder de formular questões onde o ritmo da normalidade nos empurra para respostas instantâneas, padronizadas e de fácil viralização. A filosofia nos incita — desde tempos em que a velocidade da existência social era certamente mais propícia — a uma suspensão do tempo necessária para que possamos avaliar as implicações da temporalidade do poder, do discurso, do sujeito. São muitos os desdobramentos dessa parada. Não devemos esperar uma receita para a solução definitiva de nossos problemas, pois o livro não é manual de instruções, mas um mapa. E, como é frequente nos textos de Butler, esse mapa nos mostra que nem tudo está perdido desde que voltemos a nos encontrar.