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Uma jornalista vai para o hospício

Resenha do livro Dez dias num hospício, de Nellie Bly

5 peles, Flora Rebollo (2021). Acrílica, lápis de cera, giz de cera, pastel seco e bordado sobre tela. Foto: Ana Pigosso.

No ano de 1887, a jornalista Nellie Bly, em busca de emprego em Nova York, bateu na porta do editor-chefe do jornal New York World e dele recebeu a proposta de uma “missão delicada”: “E se você fingisse estar louca para ganhar acesso a uma instituição psiquiátrica famosa por maltratar seus pacientes?”. Tratava-se do Hospício de Alienados de Blackwell’s Island, uma faixa de terra hostil no East River que abrigava a maior parte das prisões, hospitais de caridade e reformatórios de Nova York. Nellie aceitou o desafio: a “reportagem-proeza” seria a sua primeira incursão no campo do jornalismo investigativo,1 bem como sua primeira visita a um hospício de mulheres, ainda mais na condição de interna. O expressivo e detalhado relato de sua experiência como louca em uma verdadeira jornada aos infernos que se inicia num abrigo de mulheres em Nova York, passa por uma delegacia de polícia, a audiência com um juiz, o encaminhamento à ala psiquiátrica de um hospital geral e termina em dez dias como lunática em Blackwell’s Island, compõe o conjunto das reportagens que Nellie produziu a partir dessa experiência de ruptura “entre o jornalismo e seu assunto”, nas palavras de Patrícia Campos Mello no belo prefácio ao livro Dez dias num hospício, que agora chega aos leitores brasileiros pela Editora Fósforo.

Para cumprir sua missão, Nellie Bly adota o nome de Nellie Brown, só o começo da transformação identitária em si mesma necessária para representar o papel de uma menina pobre, demente e desafortunada. Tem 23 anos e finge 19 quando, após vaguear pelas ruas de Nova York, chega a um abrigo de mulheres apenas com o dinheiro suficiente para pousar por duas noites. Ali, recorrendo a tudo o que já tinha lido sobre o comportamento dos dementes, mostra-se triste, sustenta o olhar fixo, repete por diversas vezes que as mulheres que a cercam parecem loucas, diz que esqueceu tudo quando lhe perguntam sobre sua origem e recusa-se a dormir. Foi o que bastou para que as outras mulheres ali chamassem Nellie de maluca, que uma vizinha de quarto sonhasse que ela a ameaçava com uma faca, que no dia seguinte despertasse desprezo e zombaria entre as abrigadas e funcionárias e que, por fim, a polícia fosse chamada. Entre as bizarrices, repetia também que perdera os baús, o que deu a deixa para que os policiais a “enganassem”: não lhe disseram que a levariam do abrigo à delegacia, mas ao local onde poderia encontrar os pertences perdidos. E, “se ela não aceitar”, diz um deles, “vou arrastá-la pela rua”. Da delegacia é encaminhada à audiência com um juiz que, por sorte — “Se existissem mais homens como o juiz Duffy…” —, mostra-se generoso, claramente porque ela lhe lembra sua própria irmã, já morta. A identificação e a compaixão fazem com que o juiz pense que a loucura de Nellie devia ter sido provocada por alguém:

Fizeram alguma sordidez… essa menina foi drogada e trazida para a cidade… Vamos enviá-la para que seja examinada no Bellevue. É provável que dentro de alguns dias o efeito da droga passe e ela consiga nos contar uma história surpreendente. Ah, onde estão os repórteres nessa hora!

A sugestão do juiz é de que os jornalistas desvendariam o mistério de modo mais eficiente do que os médicos, e de fato Nellie teme mais ser descoberta por seus colegas de ofício do que examinada pelos psiquiatras do hospital de Bellevue, para onde é levada de ambulância. Ali é retirada do carro por um homem de aparência bruta, que tenta arrastá-la “como se eu tivesse uma força de elefante e fosse resistir” e em seguida é submetida à “longa lista de perguntas que já me haviam feito tantas vezes”, da qual é salva pelo médico que diz que ela “era louca demais para oferecer qualquer informação útil”. O pavilhão psiquiátrico do hospital chama sua atenção pela absoluta brancura, a pouca mobília, os bancos duros, as chaves e os cadeados nos portões. Serviram-lhe um pedaço de carne e uma batata frios, a atmosfera era congelante e lhe repetiam que, por estar numa instituição pública de caridade, não podia esperar mais do que isso — o frio e a fome, além da escuta insensível e incompetente de diversos especialistas: “o Dr. Field fez perguntas que não tinham relação nenhuma com meu caso”. Por fim, atestam: “Demente, sem dúvida nenhuma”.

Depois de diagnosticada e alguns poucos dias em Bellevue, Nellie Brown é levada de barco com um grupo de mulheres a Blackwell’s Island, “um lugar de gente louca do qual ninguém consegue sair”. Para o imaginário ocidental, o barco em que as (tidas como) loucas navegam em fins do século XIX traz evocações anteriores, das naus de loucos reproduzidas na iconografia da passagem para o Renascimento a partir da composição literária de Brant de 1497, a Narrenschiff, em que se descrevem os barcos que, nas palavras de Michel Foucault em História da loucura na idade clássica (1972/1978), tiveram “existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra” (p. 9), para afastar com as águas o mistério dos indesejados.

Do outro lado do rio, Nellie descreve a sujeira física e a degradação humana que lá se depositam: o desconforto dos corpos nas camas e bancos, o fedor, a comida fria, sem sal e estragada a ser ingerida com as mãos porque não havia facas e garfos, os pacientes “azulados de tanto frio”, os banhos gelados em que as mulheres eram afogadas até o limiar da morte, os empurrões e tapas de enfermeiras grosseiras e perversas, por vezes às ocultas e outras com a conivência dos médicos. Nellie se pergunta: “À exceção da tortura, que tratamento levaria uma pessoa à loucura com mais rapidez?”, para ao final do livro concluir: “O Hospício de Alienados de Blackwell’s Island é uma ratoeira humana”. Bastaram dez dias para a sua investigação, e poderiam ser menos, porque a rotina insuportável era sempre a mesma.

Patrícia Campos Mello nos conta ainda que, graças ao impacto dessa série de reportagens de Nellie Bly, o governo de Nova York determinou uma investigação e aumentou os recursos para as instituições psiquiátricas públicas. Além disso, estabeleceu-se que apenas mulheres com graves distúrbios psiquiátricos poderiam ser colocadas em hospícios. De fato, Bly chamou também a atenção para muitas mulheres sãs que ela encontrara internadas em Bellevue e Blackwell’s Island e que adoeceram e morreram de maus tratos.

Com a série de reportagens reunidas em Dez dias num hospício, Nellie Bly realiza em fins do século XIX um trabalho investigativo pioneiro, seja porque o faz sendo mulher numa época em que se pensava que jornalismo era coisa de homens, tal como o voto e as calças compridas, como na forma em que se engaja para realizá-lo — uma modalidade de observação participante intensa pela qual transforma-se em objeto de sua própria investigação, ao fingir-se de insana para experimentar a realidade de instituições psiquiátricas, a fim de conhecer como funcionam. É notável como o seu trabalho antecipa em pelo menos seis décadas as pesquisas em diversas áreas das ciências humanas em geral, e da Saúde Mental em particular que, com maior intensidade a partir de meados do século XX, trouxeram à luz e denunciaram formas autoritárias e violentas de diagnóstico e tratamento da loucura, em especial em suas versões de confinamento asilar. Nos anos 1950, os psiquiatras David Cooper e Ronald Laing, na Inglaterra, bem como Gregory Bateson, nos Estados Unidos, colocaram em questão os diagnósticos psiquiátricos tradicionais ao mostrar a responsabilidade do contexto social, em suas diversas formações institucionais, na produção do sofrimento e do adoecimento psíquico. No ambiente contracultural do pós-guerra, eles deram origem ao movimento da antipsiquiatria, cujas manifestações se desdobraram em transformações nas práticas de saúde mental em todo o mundo. No Brasil, o movimento antimanicomial ganhou força a partir dos processos de redemocratização, com o desenvolvimento de políticas públicas no campo da Saúde Mental que visavam a redução dos leitos hospitalares, em favor de formas de tratamento mais humanizadas. Hoje, esses avanços estão ameaçados por políticas governamentais regressivas, que voltam a privilegiar os lobbies dos hospitais psiquiátricos e desmantelam as estruturas de atendimento ambulatorial.

A crítica às instituições asilares comportou também trabalhos de estudo e pesquisa a partir de perspectivas históricas, sociológicas e artísticas que tiveram a potência de introduzir o debate na cena social mais ampla. São exemplos disso a pesquisa genealógica de Michel Foucault documentada em História da loucura (1972) e O nascimento da clínica (1980); o trabalho etnográfico de Erving Goffman, realizado — tal como o de Nellie Bly — numa instituição psiquiátrica americana em que ele conviveu por um ano, atuando na recreação dos internos, e relatou em Manicômios, prisões e conventos (1961/1974), um estudo paradigmático sobre a vida em instituições totais; o filme documentário Titicut Follies (1967), de Frederick Wiseman, rodado no interior de um manicômio judiciário de Massachusets; o filme Um estranho no ninho, dirigido por Milos Forman (1975), no qual um prisioneiro, interpretado por Jack Nicholson, finge estar insano para não trabalhar e é levado a um hospital psiquiátrico.

A investigação comprometida e engajada de Nellie Bly junta-se a esse conjunto de trabalhos e mais tantos outros que excedem a possibilidade de citar aqui, como armas numa longa batalha em que cenas muito parecidas se repetem até hoje, multiplicando os dez dias vividos e relatados por Bly nas realidades de vidas inteiras submetidas e traumatizadas pela violenta desumanização cotidiana que se realiza em instituições asilares no mundo todo a título de tratamento para doenças mentais.