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Desvelar para proteger

Vinícius Ribeiro

Em julho de 2020, milhares de entregadores via plataformas digitais foram às ruas de diversas cidades do Brasil para reivindicar melhores condições de trabalho. A manifestação, que chamou a atenção de toda a sociedade pela dimensão que tomou, evidenciou uma contradição: os trabalhadores são vistos como essenciais durante a pandemia, especialmente para evitar a circulação de pessoas e permitir o isolamento social, mas são considerados como autônomos pelas plataformas digitais, o que não lhes garante nenhum direito.

As manifestações contribuíram para lançar perante a opinião pública um debate que, até então, estava circunscrito aos meios universitário, judicial e de alguns grupos de trabalhadores: como deve ocorrer a regulação do trabalho via plataformas digitais?

Preliminarmente, fazemos duas considerações. Em primeiro lugar, ressaltamos a centralidade do Direito do Trabalho em qualquer debate para o estabelecimento de regras no trabalho via plataformas digitais. Essa área do direito é uma evolução na regulação do trabalho, pois é produto da superação da aplicação de institutos civilistas e penais nas relações de trabalho no século XIX e início do século XX e da ficção jurídica de igualdade e liberdade entre trabalhador e empresário. O Direito do Trabalho foi concebido para apresentar respostas à desigualdade econômica entre as partes do contrato de trabalho, estabelecendo disposições para corrigir essa assimetria e compensá-la por meio de proteção jurídica ao trabalhador. Considerando que não houve alteração no cerne da forma pela qual ocorre a exploração do trabalho humano pelas empresas proprietárias de plataformas digitais, não há razões para afastar as intervenções do Direito do Trabalho nos debates regulatórios.

Em segundo lugar, é necessário reconhecer que o trabalho via plataformas digitais vai além dos motoristas e entregadores, sendo encontrado em diferentes setores e sob outras formas. Uma de suas expressões ainda pouco conhecida no Brasil é o crowdwork.1 Ter isso em vista é fundamental para que as tentativas de regulação contemplem as realidades de todos os trabalhadores. Contudo, dadas as limitações deste texto e o maior destaque que motoristas e entregadores tiveram nos últimos meses, centraremos a análise nesses grupos de trabalhadores.

Uma caracterização em disputa

Para debater em que termos deve ocorrer a regulação do trabalho via plataformas digitais, é preciso um mínimo de consenso sobre o que são essas plataformas. É aqui que começam as dificuldades.

A primeira divergência está na caracterização das empresas proprietárias das plataformas digitais. Elas constroem uma narrativa que as colocam como empresas de tecnologia, funcionando meramente como um instrumento de combinação entre oferta e demanda de mão de obra. Essas empresas se referem aos motoristas e entregadores de diversas formas — “parceiros” e “empreendedores”, por exemplo —, sempre evitando chamá-los pelo o que de fato são: trabalhadores. Assim, esvaziam o conteúdo laboral das atividades que realizam.

Contudo, a realidade é outra. Adotar meios tecnológicos sofisticados não as torna empresas de tecnologia. Devemos olhar para a substância do que elas realmente fazem, que é transporte de passageiros e de entregas. Ninguém é cliente da Uber ou da iFood buscando uma solução tecnológica, mas porque precisa fazer uma viagem de carro ou receber um produto. Caso contrário, qualquer empresa que adote inovações tecnológicas avançadas em seu processo produtivo se transformará automaticamente em uma organização do setor de tecnologia.

A segunda divergência está na compreensão da dinâmica do trabalho. As empresas afirmam que os trabalhadores possuem a liberdade de gerenciar os seus horários e de administrar os seus ganhos, sendo que elas apenas combinam os pedidos de viagens e entregas de seus clientes com a disponibilidade dos trabalhadores cadastrados nas plataformas digitais. Dizem ainda que o código de conduta, o sistema de avaliação dos trabalhadores e as regras estabelecidas para a realização do trabalho não passariam de medidas para assegurar a qualidade e confiabilidade dos serviços, o que seria de interesse de todos os envolvidos nessa relação.

Porém, mais uma vez, os fatos se sobrepõem ao marketing. As empresas têm amplo controle sobre o trabalho realizado, o que é viabilizado pela administração da mão de obra por meio dos algoritmos.2 Há a automação de atividades anteriormente atribuídas a gerentes, encarregados, contadores, atendentes e trabalhadores do setor de recursos humanos, a partir de informações extraídas dos trabalhadores diretamente pelas plataformas digitais e por meio do feedback de seus clientes. A programação algorítmica permite distribuir atividades entre os trabalhadores, fixar o valor do trabalho, indicar o tempo para a realização de uma tarefa e a duração de pausas, determinar como o serviço deve ser feito, avaliar os trabalhadores e aplicar sanções. É o que se chama de gerenciamento algorítmico.

O sistema de avaliações é um dos instrumentos que viabiliza a organização do negócio. Parcela das empresas permite que seus clientes deem notas aos trabalhadores ao término da execução da tarefa — sendo que essa avaliação leva em conta a expectativa gerada pela empresa acerca da forma da prestação do serviço —, o que influi na distribuição de trabalho e na permanência na empresa. Ter uma média de avaliação muito elevada (acima de 96%) assegura o recebimento preferencial de atividades em determinadas localidades. Ademais, para que seja possível continuar trabalhando para a empresa, os trabalhadores devem manter uma média alta (geralmente acima de 90%). Obter uma média inferior ao patamar estabelecido pela empresa acarreta a aplicação de punições, que vão desde a suspensão até a exclusão definitiva (ou seja, a dispensa).

A análise da flexibilidade dos horários deve considerar fatores estruturais do trabalho via plataformas digitais, como a dependência econômica dos trabalhadores. Quanto maior a necessidade de realizar atividades para as plataformas para sobreviver, menor a liberdade de determinar a jornada de trabalho. Em pesquisa realizada com motoristas da Uber na cidade de São Paulo, identificou-se que 77,5% dependiam economicamente da empresa. Desse grupo, todos trabalhavam mais de quarenta horas semanais, 75% trabalhavam pelo menos seis dias na semana3 e um terço trabalhava mais de sessenta horas na semana.4 Estudo desenvolvido por pesquisadores da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) com entregadores durante a pandemia apontou que a maioria trabalhava mais de nove horas diárias em sete dias da semana.5 Ou seja, para muitos trabalhadores essa liberdade se resume tão somente a escolher quando começar uma longa jornada de trabalho.

Além disso, algumas empresas, especialmente no setor de entregas, estabelecem sistemas de pontuação que determinam a frequência, as áreas e os horários que os trabalhadores podem realizar entregas. A acumulação de pontos ocorre a partir de critérios definidos pelas empresas, como a quantidade de ofertas de trabalho aceitas. Nesses casos, a liberdade para escolher os horários de trabalho fica condicionada ao cumprimento das regras da empresa e a trabalhar demasiadamente, uma vez que fazer muitas entregas gera maior pontuação.

Os problemas do debate brasileiro

Parte das análises sobre a dinâmica do trabalho via plataformas digitais no setor de transporte de passageiros e de entregas no Brasil, especialmente no Poder Judiciário, centra-se excessivamente nos fatores que a empresa não controla — que são, basicamente, alguns aspectos da jornada de trabalho — e na documentação escrita — produzida unilateralmente pelas empresas —, sendo os termos de condições de uso a mais utilizada.

Ainda, aceita-se acriticamente muitos elementos da narrativa construída pelas plataformas: seriam empresas de tecnologia, ofereceriam trabalho num cenário de desemprego elevado, as regras estabelecidas para os trabalhadores não passariam de mecanismos de conveniência para passageiros e motoristas e assegurariam fontes complementares de renda para diversos trabalhadores.

Se este texto fosse escrito em 2014, ano em que a Uber chegou no Brasil e pouco se conhecia a respeito do funcionamento das plataformas digitais, aceitar esses argumentos seria compreensível. Porém, sete anos depois, com diversas pesquisas jurídicas e sociológicas demonstrando que a realidade é bem distinta da narrativa empresarial, aderir integralmente às suas premissas promove uma visão fictícia do trabalho via plataformas digitais e afasta o país da tendência mundial de proteger esses trabalhadores.

Há diversos estudos, nacionais e internacionais, demonstrando a relação direta entre dependência e precariedade (quanto mais dependentes da empresa para sobreviver, maior a precariedade das condições de trabalho),6 as distintas formas de controle dos trabalhadores,7 o gerenciamento algorítmico,8 o déficit de trabalho decente nas plataformas,9 as nuances na flexibilidade da jornada de trabalho10 e a acentuada assimetria de poderes entre trabalhadores e empresas.11 Ou seja, existe suporte científico, embasado e robusto, que aponta para um mundo no qual os trabalhadores estão sujeitos à intensa exploração por essas empresas.

Além de ignorar todos esses estudos, restringem-se as tentativas de fazer prova do gerenciamento algorítmico nos processos judiciais. Recentemente foi suspensa a realização de perícia em algoritmo de empresa proprietária de plataforma digital. Argumentou-se que tal medida poderia “trazer à tona informações sigilosas” — as quais podem ser resguardadas pelo próprio Poder Judiciário —, além de “não ser necessária para examinar a existência ou não da relação de emprego entre motorista e a empresa” — sem a devida fundamentação sobre essa desnecessidade.12

Nesse sentido, nota-se que parte dos posicionamentos assumidos no debate trabalhista sobre o trabalho via plataformas digitais no Brasil opera sob a racionalidade que impulsionou a reforma trabalhista de 2017,13 especialmente como forma de flexibilizar as modalidades de contratação, da jornada de trabalho e da remuneração e de individualizar os riscos, reduzindo os custos para os empregadores e aumentando a insegurança para os trabalhadores.

Um olhar para fora

A lógica de operação das empresas proprietárias de plataformas digitais nos setores de transporte de passageiros e de entregas, ainda que cada uma tenha as suas particularidades, compartilha os mesmos pressupostos de funcionamento. Considerando que diversas empresas atuam em vários países, é relevante saber como o tema é tratado em outros lugares.

Tribunais superiores decidiram pela aplicação da legislação trabalhista às relações entre motoristas e entregadores e plataformas digitais nos Estados Unidos (na Califórnia),14 Reino Unido,15 Espanha,16 França,17 Uruguai,18 Holanda,19 Itália20 e Chile.21 Chama a atenção o fato de que as decisões em alguns desses países influenciaram positivamente a conjuntura para os trabalhadores para além do debate judicial, como veremos a seguir.

Na Califórnia (EUA) em 2018, a Supreme Court estadual alterou o seu entendimento sobre a caracterização da relação de emprego e adotou o teste ABC. A partir desse novo critério, para o trabalhador ser autônomo, há a necessidade dele: (a) não estar sob direção ou controle do contratante, tanto do ponto de vista formal como material; (b) não desempenhar atividade inserida no negócio principal da empresa contratante; e (c) realizar, de forma habitual e independente, atividades para as quais é contratado. A prestação de trabalho em troca de remuneração que não tenha esses três requisitos simultaneamente deve ser considerada como uma relação de emprego.22

No ano seguinte, o Legislativo estadual promoveu uma alteração no Código de Trabalho estadual para incorporar o teste ABC no texto legal (AB 5), a qual entrou em vigor em 2020. Esse cenário demandaria que empresas proprietárias de plataformas digitais do setor de transporte de passageiros, como a Uber, classificassem seus motoristas como empregados. Apesar disso, a empresa manteve-os como autônomos.23 Assim, o Estado da Califórnia ajuizou uma ação para obrigá-las a respeitar a nova regulação e, em agosto de 2020, a Superior Court estadual determinou que os motoristas eram empregados.24

Na Espanha, o Tribunal Supremo decidiu em setembro de 2020 que a relação entre entregadores e a Glovo (uma empresa proprietária de plataforma digital) é de emprego. Na sentença, os magistrados apontaram os seguintes elementos: nessa atividade econômica, as plataformas digitais ― e não as motos ou os telefones celulares ― são os meios de produção; as avaliações dos trabalhadores são uma forma de controle e vigilância; a empresa atua no setor de entregas; as decisões comerciais, valor do serviço oferecido, métodos de pagamento e remuneração dos entregadores são definidos unilateralmente pela empresa; os trabalhadores não possuem autonomia para os aspectos relevantes da atividade, sendo que a empresa detém poder de direção e de organização.25

A decisão do Tribunal Supremo influenciou a atividade legislativa. Em outubro de 2020 foi criada uma mesa de diálogo tripartite para debater como garantir direitos trabalhistas para entregadores via plataformas digitais. O resultado foi o Real Decreto-ley 9/2021, que estabelece a presunção de laboralidade no âmbito das plataformas digitais de entrega e, em relação à representação dos trabalhadores, o direito de ser informada dos parâmetros, regras e instruções em que se baseiam os algoritmos e que afetam as decisões que influenciam as condições de trabalho, abrangendo o ingresso e a continuidade na empresa.26

No Reino Unido, a Supreme Court confirmou as decisões dos tribunais trabalhistas que classificaram os motoristas da Uber como worker,27 uma figura intermediária entre empregados e autônomos, em que se garantem alguns direitos, como o salário mínimo, férias e regras sobre jornada de trabalho. Os magistrados britânicos ressaltaram que a empresa controla e determina de maneira rígida como o trabalho deve ser realizado pelos motoristas.28

Três meses após essa decisão, a Uber aceitou negociar com o GMB Union, garantindo ao sindicato acessar os pontos de encontro dos motoristas e intervir em casos nos quais os trabalhadores são suspensos ou dispensados.29 Isso seria impensável há um ano, considerando a postura da empresa em se recusar a tratar diretamente com entidades sindicais. A sentença da Supreme Court e a mobilização coletiva dos trabalhadores foram decisivos para mudar o cenário.

Na Itália, em janeiro de 2020 a Corte Suprema di Cassazione decidiu que o trabalho dos entregadores da Foodora é organizado por uma outra parte (no caso, pela empresa proprietária da plataforma digital), o que configura o trabalho hetero-organizado. A Corte entendeu que esse tipo de trabalho deve ter as mesmas proteções do trabalho subordinado.30 Com base nesse entendimento, em fevereiro de 2021, a inspeção do trabalho e promotores de Milão determinaram que as maiores plataformas digitais devem respeitar a legislação trabalhista em suas relações com os entregadores e impuseram uma multa de 733 milhões de euros.31

No início de 2021, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou o seu relatório anual sobre perspectivas sociais e de emprego no mundo, dedicado ao papel das plataformas digitais nas transformações no mundo do trabalho. Segundo a OIT, os países adotam quatro abordagens para classificar os trabalhadores. A primeira é considerá-los empregados, como ocorreu na Espanha e França. A segunda é classificá-los em categorias intermediárias, como se deu no Reino Unido. A terceira é enquadrá-los uma figura intermediária “de fato”, em que pode ser considerado empregado para fins previdenciários, mas não trabalhistas, como se verificou na China. A quarta é identificá-los como autônomos — e sem direitos —, pelo fato de poderem estabelecer os seus horários, mencionando como exemplos a Austrália e o Brasil.32

Para onde ir?

A legislação brasileira oferece instrumentos para assegurar direitos mínimos aos trabalhadores via plataformas digitais nos setores de transporte de passageiros e de entrega. Os requisitos para caracterizar a relação de emprego no Brasil — pessoal natural, pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação — são detectados na grande maioria dos casos. Especificamente em relação à subordinação, uma alteração promovida na CLT em 2011 não deixa dúvidas: “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio” (parágrafo único do art. 6º).

O fato de os motoristas e entregadores trabalharem para mais de uma empresa não é um obstáculo para a aplicação da legislação trabalhista. A exclusividade não é uma condição para a existência do vínculo empregatício. No Brasil, prestar serviços para mais de um empregador é uma realidade comum para diversas profissões, como vigilantes, profissionais da saúde e professores. Isso jamais impediu que fossem reconhecidos como empregados. A mesma regra deve valer para motoristas e entregadores.

O Poder Judiciário tem um papel central em assegurar proteção a esses trabalhadores. É necessário superar a narrativa das empresas, fazer valer a primazia da realidade ― um dos princípios mais importantes do Direito do Trabalho — e desvelar o conteúdo do trabalho via plataformas digitais para compreender adequadamente a sua dinâmica e proteger os motoristas e entregadores. Decisões judiciais determinando a aplicação da lei trabalhista nesses casos tiveram efeitos positivos em vários países, contribuindo para desenvolver a legislação, promover a ação coletiva e apoiar a atuação de outros órgãos do sistema público trabalhista.

No Brasil, a aplicação da legislação trabalhista, na forma existente, deve ser o ponto de partida e não o de chegada. A reforma trabalhista de 2017 trouxe mecanismos de precarização do trabalho, como a introdução do contrato intermitente e ampliação da terceirização. É necessário conceber propostas para aprimorar a proteção desses trabalhadores, especialmente a partir de suas demandas, como a portabilidade das avaliações entre as plataformas, o contraditório em casos de más avaliações ou reclamações de clientes, a transparência dos sistemas de avaliação e do funcionamento do algoritmo, a remuneração dinâmica para os casos em que não se garante um mínimo de trabalho por mês, dentre outros. É fundamental que eventuais alterações legislativas ocorram sob as premissas do Direito do Trabalho, considerando a notória desigualdade entre trabalhador e plataforma e o papel que essa área do direito desempenha nessas situações.

Finalmente, é primordial a inserção dos trabalhadores no centro desse debate. Primeiro, pois escutar os sujeitos que vivem a experiência diária da atividade é de grande importância para entender como determinado trabalho ocorre. Depois, porque qualquer modificação da lei deve ter como pressuposto ouvir os principais afetados pela mudança. Por fim, os direitos trabalhistas no Brasil tiveram maior efetividade quando o movimento sindical lutou por sua aplicação. Garantir da voz dos atores mais importantes dessa discussão é a única forma de responder aos anseios daqueles que atualmente não possuem nenhuma proteção social.