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Depois do 7 de setembro, o quê?1

Ainda há risco de golpe?

Betume 9, Eduardo Climachauska

Bolsonaro faz parte de uma constelação global em desenvolvimento, que ninguém sabe onde vai dar. Ela tem traços fascistas, mas não é a reedição do velho fascismo italiano e alemão. Por isso, proponho chamá-la, provisoriamente, de “autocratismo com viés fascista”. A fórmula, algo canhestra e que talvez precise ser modificada adiante, pretende contribuir para a compreensão do momento brasileiro.

Líderes autocráticos do século XXI perceberam que podiam utilizar as redes sociais para operar desde uma espécie de role playing game permanente, no qual fantasia e realidade se misturam, confundindo tudo e todos. O filósofo Rodrigo Nunes, da PUC-RJ, explicou, em um artigo na Folha de São Paulo em 2020, que a alternative right, à qual Donald Trump e Jair Bolsonaro se aliaram, “descobriu as vantagens de assumir a posição de uma das figuras centrais da cultura contemporânea: o troll”.2

To troll, na internet, é algo como jogar a isca para pegar trouxas. A chave para compreender a trollagem é que ela busca “introduzir ideias ‘polêmicas e ‘controversas’ no debate público de maneira irônica, humorística ou com certo distanciamento crítico, mantendo sempre a dúvida sobre o quanto ali é brincadeira ou para valer”, diz Nunes.

Por isso, a questão sobre se há risco de golpe por parte de Bolsonaro não pode ser respondida de maneira unívoca. Trump “brincou” com a ideia de golpe até o último dia na Casa Branca. Como soava estapafúrdia nos EUA, ninguém acreditou. Até que em 6 de janeiro de 2021, ele açulou as hostes reunidas em Washington, entre as quais havia gente fantasiada de viking, contra o Capitólio. Brincadeira ou tentativa golpista de verdade? Uma mistura fatal, pois ocupado durante quatro horas, o Congresso dos Estados Unidos da América teve que ser defendido a tiros, custando cinco vidas.

Por que Bolsonaro recuou?

Logo após insuflar os seguidores a desobedecer ao Estado de Direito, no 7 de setembro de 2021, Bolsonaro aparentemente recuou, dizendo respeitar a Constituição. Ocorre que o fascismo inventou, também, um modo sibilino, adotado pelos líderes autocráticos atuais, de naturalizar a ruptura com o Estado de Direito. O escritor Stefan Zweig sintetizou como funcionava o método hitleriano: “uma dose de cada vez, e depois de cada dose uma pequena pausa. Sempre só um comprimido e depois esperar um pouco para verificar se não era forte demais, se a consciência do mundo tolerava essa dose”.

Trump e Bolsonaro utilizam, consciente ou inconscientemente, o arsenal forjado um século atrás. Diferente do fascismo histórico, os autocratas de hoje não têm, até aqui, o objetivo central de conter um movimento operário de esquerda ou de promover um expansionismo bélico, ambos característicos do quadro após a Primeira Guerra. Porém, colocam em marcha artifícios comunicacionais e de mobilização que tem efeitos semelhantes.

Quando se faz escândalo, retrocedem. Depois, recomeçam. O “golpe” de Trump consistiu em pressionar as instituições — primeiro as juntas apuradoras e depois o Congresso — a reconhecer que tinha havido fraude e ele era o real vencedor. Não conseguindo, cedeu terreno, mas mesmo fora da presidência não desistiu.

O autoritarismo furtivo, bem descrito por Adam Prezeworski, vai erodindo a democracia aos poucos, sem rupturas definitivas. É um processo “devagar e sempre”, em que a erosão, conduzida por governantes eleitos, ocorre bastante por dentro das leis e é cheia de vaivéns. Usa as brechas disponíveis para restringir a liberdade de expressão, mudar a composição de organismos judiciários, alterar regras do sistema eleitoral, desorganizar o Estado, proibir ou dificultar associações, atemorizar oposicionistas, vigiá-los, processá-los, prendê-los, agredi-los fisicamente etc.

O impeachment é viável ou só nos resta esperar as eleições?

No Brasil, o melhor meio de barrar o autocratismo de viés fascista seria o impeachment. Mas Bolsonaro possui forças auxiliares poderosas. Elas ajudam a abafar a “consciência do mundo” e naturalizar a corrosão democrática. Em geral, os aliados ocasionais pensam estar diante de algo bizarro e, portanto, passageiro, do qual podem se utilizar e, depois, descartar.

Talvez seja o caso dos militares, os quais mantém uma assustadora ambiguidade para com o ocupante do Planalto. De um lado, participam ativa e abertamente do mandato, a ponto de não se ter certeza se este é do presidente ou dos fardados. De outro, parecem avalizar nos bastidores que os grupos mais enlouquecidos da galeria manicomial bolsonarista sejam reprimidos pelo STF. Para maior “tranquilidade” do establishment civilizado, sempre que consultados em off, oficiais da ativa mandam dizer que não aderem a aventuras.

A mesma dubiedade pode ser observada por parte do Centrão, parcela decisiva do Congresso Nacional. De uma parte, sustenta Bolsonaro, com o presidente da Câmara dos Deputados bloqueando de maneira decidida os pedidos de impeachment contra ele. De outra, recusam a aprovação do voto impresso, que instrumentaria o mandatário a melar o pleito de 2022. Lembram, nisso, o Partido Republicano dos EUA, que derrotou o impeachment de Trump no Senado, mas não aceitou participar do putsch viking contra a diplomação de Biden.

Sem o Centrão, não haverá impeachment. O mais lógico seria a oposição democrática continuar tentando, embora as chances de sucesso, hoje, sejam incertas.

Deve-se apostar numa frente ampla (esquerda + direita)?

A oposição democrática precisa emparedar e isolar o autocratismo de viés fascista, até reduzi-lo a uma franja lunática da sociedade. A frente ampla depende de como avaliamos a força relativa do adversário. Caso a consideremos alta, é indispensável criar uma unidade ativa entre forças de esquerda, de centro e de direita, que de resto possuem visões antagônicas a respeito de para onde dirigir a nação, para defender a democracia.

Se viesse a acontecer, de imediato, o passo necessário seria o mútuo reconhecimento das profundas diferenças que dividem essa possível frente democrática, sobretudo no que diz respeito ao programa econômico. Sem legitimar as distinções, a confiança recíproca não se estabelece e o entusiasmo se esvai. O segundo momento seria determinar com clareza quais são os pontos unificadores, fora dos quais é garantida a todas as correntes a liberdade de seguir com os respectivos pontos de vista, a serem disputados democraticamente nas eleições.

Deixo claro, portanto, que falo da possível necessidade de uma frente democrática, que nada tem a ver com uma frente eleitoral. No que diz respeito às eleições, creio que a esquerda não deve abrir mão de seus pontos de vista, sobretudo no que diz respeito ao programa econômico.