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Contra a Hidra capitalista: a imaginação como prática

Resenha do livro do Subcomandante Insurgente Galeano

Em 2 de outubro de 1992, data em que se comemorariam os 500 anos do “descobrimento” das Américas, 15 mil indígenas marcharam por San Cristóbal de las Casas. Em meio à multidão se encontrava o EZLN que, ainda operando na clandestinidade, aparecia publicamente como Anciez (Alianza Nacional Campesina Independiente Emiliano Zapata). Suas fileiras — as mais organizadas, parecendo já ensaiar uma coreografia específica — derrubaram com uma marreta a estátua de bronze do fundador da cidade, Diego de Mazariegos, e o decapitaram. No ano de 1992, o governo mexicano, em plena guinada neoliberal, havia aprovado uma emenda constitucional que na prática abolia a reforma agrária, pois possibilitava a transformação do ejido — a forma de titulação coletiva da terra determinada para fundamentar as leis de reforma agrária que foram esboçadas por Emiliano Zapata na revolução mexicana e implementadas por Lázaro Cárdenas na segunda metade dos anos 1930 — em propriedade particular. Em sua grande maioria, os indígenas de todo o território mexicano se opuseram a essa emenda, compreendendo que ela visava pulverizar sua organização social coletiva em prol da monocultura (agrícola, linguística, política e econômica). Em Chiapas, particularmente para os tojolabal, tseltal, tsotsil, zoque, mame e chol, a reforma agrária havia sido uma conquista recente, obtida sobretudo nos anos 1970 e 1980, resultado de um verdadeiro êxodo nas décadas anteriores: muitos haviam descido de outras regiões do estado, dominadas pela cultura finquera e seu regime de trabalho servil e degradante, às cañadas da Selva Lacandona. O terreno desconhecido, o isolamento, a necessidade de obter o reconhecimento legal de seus novos ejidos, a organização em grandes cooperativas e organizações sindicais no enfrentamento das políticas agrícolas de endividamento do estado, sem contar o trabalho das eclesiais de base, sob o comando do bispo Samuel Ruiz, são todos elementos pregressos mais do que conhecidos, em grande parte devido ao imenso volume de pesquisa realizada por inúmeros/as sociólogos/as e antropólogos/as mexicanos/as — infelizmente não traduzidos no Brasil —, no surgimento daquilo que o mundo conheceu em 1º de janeiro de 1994 como o Ejército Zapatista de Liberación Nacional.

Em 1º de janeiro de 1994, quando entrava em vigor o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio, conhecido pela sua sigla em inglês, NAFTA — o mesmo que transformaria Ciudad Juárez, no extremo norte fronteiriço do país, na capital do emprego e, simultaneamente, na capital do estupro —, as forças zapatistas tomaram de assalto as sedes municipais de Las Margaritas, Altamirano, Ocosingo e San Cristóbal de las Casas. Naquele momento o mundo tomou conhecimento da Primera Declaración de la Selva Lacandona, disseminada pelas rádios na voz do Subcomandante Marcos (agora Galeano), que começava com um notório “Hoje dizemos basta!” e, ainda que possuísse um horizonte claramente nacional, visava à dissolução do poder central, convocando a “Avançar à capital do país vencendo o exército federal mexicano, protegendo em seu avanço libertador à população civil e permitindo aos pueblos liberados eleger, livre e democraticamente, suas próprias autoridades administrativas”. No final de 1993, já circulava pela Universidad Autónoma de México, na Cidade do México, o jornal El despertador mexicano, que trazia, além da declaração, uma descrição de todas as leis revolucionárias que seriam implementadas: a lei de impostos de guerra, a lei de direitos e obrigações dos povos em luta, a lei agrária revolucionária, a lei da reforma urbana, a lei do trabalho, a lei de indústria e comércio, a lei de seguridade social, a lei de justiça e, notoriamente, a lei revolucionária das mulheres, demonstrando, evidentemente não uma revolta que surgia do nada, mas anos de trabalho organizativo, com amplas estruturas de consulta e deliberação democráticas. Ranajit Guha, em The Prose of Counter-Insurgency, pensando no contexto indiano, afirma que:

a historiografia sempre lida com o rebelde camponês meramente como uma pessoa empírica ou como membro de uma classe, mas não como uma entidade cujo desejo e razão constituíram a práxis chamada de rebelião. Essa omissão é constituída na maior parte das narrativas por meio de metáforas que assimilam as revoltas camponesas à fenômenos naturais: então elas explodem como tempestades, balançam como terremotos, se espalham como incêndios, infectam como epidemias. Em outras palavras, a história insurgente é comumente explicada nos termos de uma história natural.

Quase três décadas depois do levante zapatista, há pouco de extraordinário em sua origem, ainda que a implosão das guerrilhas na América Central e a perseguição sangrenta de indígenas maias no Petén guatemalteco, muitos dos quais se refugiaram em Chiapas, apontavam para o encerramento do ciclo revolucionário na América Latina — a queda da União Soviética, o famoso anúncio do “fim da história”. O que é realmente extraordinário é que o EZLN siga existindo ainda hoje, tendo ampliado, inclusive, a presença de seus territórios autônomos que, embora não sejam contíguos e constantes, ocupam uma parte significativa do estado de Chiapas, e tendo ultrapassado, em muito, a duração da Comuna de Paris e a Morelos autônoma de Emiliano Zapata. Atualmente, não custa mencionar, a guerra contra os zapatistas se dá em outros termos, raramente na ponta do fuzil, e frequentemente por meio de chamativos programas de incentivos governamentais (geralmente parcerias público-privadas), despejadas sobre as comunidades não zapatistas situadas no entorno das comunidades zapatistas que recusam qualquer relação com o governo mexicano e, portanto, constituem seus próprios sistemas de saúde, educação, produção e governo.1

Não à toa, Contra a Hidra capitalista, com comunicados lidos pelo subcomandante Galeano (antes Marcos) em um evento de 2015, publicada pela n-1, com excelente tradução e notas de Camila de Moura, mas que é apenas uma parte do volume 1 de El pensamiento crítico diante de la Hidra capitalista,2 publicado no México, tem como foco o enfrentamento, a partir da autonomia, do capitalismo ultraliberal que se imprime não apenas materialmente como terra arrasada, mas também subjetivamente como crise da imaginação. Em Contra a Hidra capitalista, como em qualquer comunicado assinado por Marcos/Galeano, estamos diante de uma máquina discursiva muito particular, dirigida não aos zapatistas, mas a nós, não zapatistas e não indígenas; uma arma singular, que na virada do milênio foi exaltada ou criticada por deflagrar a primeira “guerrilha cibernética”, o primeiro “movimento pós-moderno” e, que, no entanto, não deixou de continuar surpreendendo: muitas pessoas assistimos atônitas à morte de Subcomandante Marcos e ao nascimento, por uma voz em off, de Subcomandante Galeano em maio de 2014, um jogo de permutas de nomes próprios que se coletivizavam em nome de uma sobrevida, a de Galeano, professor zapatista assassinado por paramilitares, e também uma teoria da luta como aquilo que deve produzir, principalmente, vida. A luta até a morte, diz, não é uma exigência que possa ser feita de fora, a luta até a morte, diz, não pode configurar uma causa, uma demanda, assim como o poder.

E tampouco a felicidade, como podemos ler, um ano depois disso, no primeiro texto de Contra a Hidra capitalista, que é também o primeiro comunicado de subcomandante Galeano (antes Marcos); a leitura em voz alta de alguém que ainda está aprendendo a falar. Embora não seja anunciado exatamente assim, é uma espécie de novo ciclo zapatista; pelas suas idades, as gerações zapatistas que começam a assumir responsabilidades importantes dentro da organização não têm memória do levante e nem da vida de exploração das fincas, com os regimes de servidão impostos pelos sistemas de aviamento e barracão. Muitos da mesma geração, no entanto, como mostra Mariana Mora em sua brilhante etnografia, Política kuxlejal,3 são forçados, em função das consequências daquilo que o mercado determina como economicamente viável, a abandonar os territórios zapatistas e migrar a Cancun para trabalhar na construção civil.

Galeano começa se dirigindo aos familiares dos 43 estudantes desaparecidos da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, alguns dos quais presentes no evento, seus filhos mortos brutalmente pelo narcoestado — mais uma corporação capitalista. A Hidra, nesse sentido, diz respeito à dimensão monstruosa do capitalismo e, mais do que isso, à impossibilidade de reforma: imaginar o fim do capitalismo é, em certo sentido, imaginar o fim do mundo, como também nos lembraram os zapatistas quando marcharam por San Cristóbal em silêncio sepulcral em 21 de dezembro de 2012, data em que o calendário maia havia previsto o fim do mundo, tendo após isso publicado um comunicado dizendo: “ESCUTARAM? É o barulho do seu mundo se desmoronando. É o barulho do nosso ressurgindo. O dia que foi o dia, era noite. A noite que foi o dia, era noite. E noite será o dia que será o dia. DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA! Desde as montanhas do sudeste mexicano. Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena — Comandância Geral EZLN. Subcomandante Insurgente Marcos”. E depois do comunicado escrito, um link para a música, cantada pela Mercedes Sosa, Como la Cigarra.

Contra a Hidra capitalista, no entanto, nos ensina a conviver com a Hidra pelo combate e pelo pensamento crítico: o muro e a fenda do primeiro texto, ou a dinâmica entre ambos, configuram uma teoria do adiamento, que é também uma teoria da duração, no sentido de algo que pode perdurar contra o capitalismo financeiro colonial. A imaginação não é algo que pertence exclusivamente ao reino das ideias de uma cabeça genial, mas a uma prática diária e coletiva contra o muro da história, um muro que não cessa de reconstituir os próprios termos de sua integridade: o encerramento da história. No final da década de 1990, quando se falava em hiper-realidade, em simulacro, o centro da vida zapatista era um lugar chamado, simplesmente, de La Realidad. Mais do que os inúmeros outros comunicados do subcomandante Marcos/Galeano no decorrer dos anos, os presentes em Contra a Hidra capitalista dialogam diretamente com a tradição marxista, embora mantendo sua habitual iconoclastia: Karl Marx se transforma em Karla Marx, por exemplo, sem, no entanto, deixar de afirmar expressamente que o antimarxismo progressista é tão dogmático quanto o marxismo de certos setores da esquerda. A primeira tarefa parece ser a manutenção permanente da lembrança de que esta figura que se apresenta agora como mítica — a Hidra capitalista —, tem origem histórica. Diferente, no entanto, da Hidra mítica, como lemos no segundo texto, a Hidra capitalista se assemelha mais a outra Hidra, um pequeníssimo animal aquático “que não apenas reconstrói seus tentáculos destruídos, mas também se adapta, muda de forma e é capaz de se regenerar completamente a partir de uma de suas partes”, o que também demonstra que o capitalismo produz sua própria história, cada vez mais evidente nos inúmeros trabalhos que hoje se dedicam a pensar sua nova conformação.

Em um dos comunicados que ficou de fora da edição brasileira, fala-se em uma “síndrome do vigia”: de tanto ficar olhando para a mesma paisagem, não é possível observar qualquer alteração, pois o/a vigia “reproduz em sua percepção consciente, seguidamente, a mesma imagem, como se nada se alterasse, ou como se as modificações fossem parte da mesma normalidade”. O que os comunicados publicados em Contra a Hidra capitalista mostram é que, assim como um drone de guerra, a financeirização não promove uma guerra mais limpa, pelo contrário, continua dependendo da assim chamada acumulação primitiva; o angelus novos de Klee também é retomado, via Benjamin; o aparente anacronismo radical que é constitutivo daquilo que parece mais contemporâneo. Pode-se dizer, então, que há uma disputa de radicalidades no que diz respeito à disjunção temporal (do era uma vez ao será uma vez) e uma reivindicação, pelos zapatistas, de algo que não é exatamente nem o freio de emergência, nem o motor da história, mas uma fenda. E a fenda, aqui, não é um elogio da precariedade, mas demonstração de força, uma força que é medida nos termos daquilo que ela abre como possibilidade, não apenas para o futuro, mas para o hoje. Como diz Joelson Ferreira, mestre da Teia dos Povos, retomando Paulo Freire, trata-se de uma esperança sem espera.

A menina Defensa Zapatista — sempre abaixo e à esquerda, personagem que surge no primeiro texto e depois ocupa alguns dos “cadernos de notas do gato-perro”, outra personagem entre tantas outras que habitaram os inúmeros comunicados de Subcomandante Marcos (agora Galeano), como o viejo Antonio ou o escaravelho Don Durito — não consegue alcançar a fenda para olhar o outro lado do muro. Isso, no entanto, parece menos importante do que a vida que constitui o lado de cá do muro, com as partidas de futebol do comando antimuro, as escuelitas e as sopas de abóbora, bem como um livro que se encontra nas entranhas do muro, um livro de “matemática demente”, que reconfigura os termos do cálculo: ao modificar os parâmetros de descrição da realidade, é outra coisa que se entrevê. Quando estive em Chiapas, fotografei um bordado que poderia resumir o Contra a Hidra capitalista: o subcomandante Galeano (antes Marcos) montado sobre uma tartaruga gigante — a que velocidade avança o sonho?, pergunta, a que velocidade avança o pesadelo? Se é verdade que parte da riqueza dos comunicados do subcomandante Marcos tem origem em sua formulação fabular, é preciso mencionar que a moral que a segue é sempre alguma outra pergunta. Para um conjunto de textos que se apresenta, ao mesmo tempo, como um agradecimento e uma provocação a toda a pesquisa acadêmica em torno do EZLN, isso não é pouca coisa. Quais perguntas seguem trazendo as mesmas respostas e quais podem fazer a conversa andar? No Manifesto comunista, Karla Marx diz que é preciso inventar a poética do futuro; e a poética, nos lembram os zapatistas, não é outra coisa que um fazer.