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Às margens do Vivonne — apropriações de Proust pelo moderno romance brasileiro

Daniel Nasser

Após desembarcar no Brasil no início dos anos 1920, impulsionado mundo afora pela polêmica vitória do prêmio Goncourt em 1919, À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, não apenas se tornou assunto dileto de críticos de jornal como também passou a ser incorporada com notável frequência a vários de nossos romances. A partir de temas familiares aos leitores de Proust — como a memória involuntária, o ciúme patológico e a vitória da vocação artística sobre a vida de celibatário da arte —, escritores buscaram elaborar uma visão criativa e original de um tempo perdido sob os trópicos.

Um tempo perdido que foi tão plural quanto as próprias correntes estéticas que compuseram o modernismo brasileiro. Um tempo perdido cujo conteúdo variou não apenas segundo a evolução do processo histórico, mas também em função da geografia complexa e continental desse país. Entre narrativas mais estimulantes e bem acabadas e outras experiências menos felizes e problemáticas, não seria exagero dizer que a literatura brasileira acolheu com fervor a Recherche de Proust e dela logrou produzir buscas que lhe são próprias.

Nossos primeiros proustianos foram figuras importantes da literatura católica, em sua maior parte oriundos de estados do nordeste e de passagem por grandes capitais. O crítico Tristão de Ataíde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, morava em Paris quando do lançamento de Du côté de chez Swann e teria sido um dos primeiros brasileiros a ter contato com o romance de Proust. É possível, por sinal, que a Primeira Grande Guerra tenha precipitado a chegada ao Brasil dos primeiros volumes da Recherche dado o grande número de filhos de nossa elite que habitavam a França no início do século e que acudiram ao lar após a eclosão do conflito.2

Sobre Proust, Tristão de Ataíde escreveu um longo ensaio, no qual explica que a Recherche “falou gravemente das cousas vulgares” e “estudou sem repugnância os ‘bas-fonds’ mais monstruosos da sociedade contemporanea, dessa sociedade em dissolução que vai arrastando em sua quéda, em seu suicidio, tudo o que resta de nobre em nossa civilização arruinada”.3

Esse argumento se tornou a espinha dorsal da leitura católica de Proust no Brasil. Acabou retomado logo no ano seguinte por Jorge de Lima, outro grande candidato a primeiro leitor da Recherche em nossas terras. “Poeta em movimento”, nas palavras de Alfredo Bosi, “religioso, cristão e bíblico” antes do “surrealista sui generis, entre barroco e simbolista”,4 que lemos em A invenção de Orfeu, Jorge de Lima publicou um longo ensaio no qual afirma que Proust “foi tambem subindo o seu calvario”, feito um “Christo, quasi a expirar”.5 Confundindo com frequência o autor e seu narrador, leu na Recherche, acima de tudo, uma “tragedia de sentimento”, uma “luta accêsa e tremenda” que se esconde sob a “apparencia decorativa de vida burguesa”.6

Esses vícios contra os quais o herói Marcel hipoteticamente se insurgiu ao tomar a decisão de escrever seu livro teriam sido principalmente dois. Primeiro, a “moléstia” da homossexualidade: “o homem infantil com tendencias feminis estreitamente pegado à avó, com um ‘transfert’ identico para a mamãe não soffreu a libertação que a Igreja exerce em todos nós como fonte para a masculinização”.7 Depois, a ascendência judia de Proust, que, “apezar da educação catholica, ficou um indifferente e um amoral, com dois terços da tara judia materna, na physionomia de oriental, na mobilidade judia, na acuidade, na intelligencia, nessa especie de fatalismo israelita tão sensível em toda a sua obra: e até com algumas taras semitas, como a asthma nervosa frequentissima entre os judeus sedentarios”.8

A demonstração das várias falhas — críticas e éticas — dessa leitura que Jorge de Lima fez de Proust mereceria um longo artigo à parte. Por ora, interessa-nos mais recordar que, a partir dessas premissas problemáticas de seu ensaio, o médico alagoano elaborou o romance de memórias A mulher obscura, de 1939, no qual temas da Recherche são frequentemente invocados. Seu grande modelo é um “judeu de gênio”, um “grande memorialista” que passou a vida “procurando o tempo perdido e o achando por via do que se podia sacar do subconsciente”.9

O narrador de A mulher obscura é um jovem estudante chamado Fernando, que regressa a sua cidade natal, a provinciana Vila de Santa Maria Madalena, para inventariar o espólio de seu falecido pai. Como Marcel, Fernando também inicia suas rememorações deitado sobre o leito, dominado por uma insônia que aturde sua consciência e que faz renascer um misterioso passado perdido: “há muito tempo me deitei para dormir. Apenas minha lâmpada esmorece, meus olhos se fecham tão depressa que não posso definir esta sensação agradável”.10 A cópia do inaugural “longtemps, je me suis couché de bonne heure”11 é flagrante e auxilia o leitor a compreender por que o crítico Ruy Coelho julgava esse romance um verdadeiro pastiche de Proust.12

Há ainda outras passagens dignas de nota. “Depois de ter dormido em milhares de quartos do mundo”, ele revê a casta Constança, que, diz ele, “encheu de suavidade os dias de minha meninice”.13 Mas também frequenta voluptuosas mulheres da elite local, Hilda e Irina. Nessas três damas, de maneira desastrada e hesitante, Fernando procura a face obscura, misteriosa e ideal de seu amor, que é o que dá título ao livro.14 O amor por Constança, sobrinha de um padre, seu preceptor moral, é evocado por um angustiante leitmotiv. Um “minueto” sobre o qual o narrador imprime “a figura distante de Constança aparecendo na penumbra do quarto”15 tanto quanto Swann inscreve o nome de Odette de Crécy na “melancólica, incessante e doce” pequena frase da sonata de Vinteuil.16

A frágil Constança adoece e morre desprezada em um sanatório para tísicos. Nas suas “intermitências do coração”, o narrador dirige seu desejo a Hilda, mulher cultivada, rica, leitora de Shakespeare, símbolo do mundo de prestígio e bom gosto no qual Fernando deseja penetrar. É em suas janelas, tarde da noite, que Fernando irá bater: “somente numa janela havia luz, e era a janela do quarto de Hilda. […] Num momento, como se houvesse sido levado por fôrças obsessoras pulei a varanda, e ví-me dentro do quarto de Hilda. Fiquei surprezo de meu impulso e de minha irreflexão me haverem arremessado alí onde nunca pensára estar”.17

Essas forças obsessoras que são, como tudo em A mulher obscura, como a insônia de Fernando, como o minueto de Constança, o exato correspondente dos temas e episódios mais afamados do Côté de chez Swann. Invasão do quarto de Hilda, que é tão próxima em sua forma e tão distante em seu sentido, da invasão estabanada da janela de Odette de Crécy: “ele se ergueu sobre a ponta dos pés. Bateu. Não ouviram, ele bateu com mais força e a conversa se silenciou. Uma voz masculina, que ele tentava distinguir a qual dos amigos de Odette que ele conhecia poderia pertencer, perguntou: — Quem está aí?”.18

Swann segue batendo na janela até que dois velhos cavalheiros a abrem com uma lâmpada à mão, e ele não consegue reconhecer o quarto que jurava pertencer a Odette. Já Fernando não erra a varanda. Toma sua adormecida “pelo tronco”, “nos braços”, “docemente… Brutalmente… Ferozmente”, até que “Hilda abriu os olhos desvairada”, e “puxou os lençois para si, pôs-se de pé, sobressaltada, os olhos tremendo de indignação”.19 “Retire-se!”, ela grita, e Fernando pula a janela, correndo de vultos que o perseguem, refugiando-se exausto em um canavial, até ser expulso de Madalena.20

Outro caso de pastiche de Proust é o romance Sob o olhar malicioso dos trópicos, publicado em 1929 pelo sergipano Barreto Filho. Segundo Etienne Sauthier, essa teria sido a primeira obra de ficção no Brasil a incorporar temas da Recherche, o que fez com que, por conseguinte, “a recepção brasileira de Proust saísse pela primeira vez do ambiente puramente crítico”.21 O livro, narrado na terceira pessoa, se estrutura sobre o mesmo dilema moral católico que lemos em Jorge de Lima. Em outras palavras, uma vez mais nos deparamos com um narrador que mobiliza a memória e uma espécie de psicologismo moral não para recuperar um tempo perdido, mas, antes, para salvar-se de um tempo de perdição. O herói de Barreto Filho, um talentoso jovem identificado como André Lins, esgota-se na vida mundana do Rio de Janeiro, anda “todos os caminhos”, vive “todas as caricias”, mas reencontra a virtude, a “obra piedosa de sua cura moral”, somente após retornar a sua terra de origem, no nordeste brasileiro, “à sombra das árvores, e dos coqueiros erectos”.22

Em um liceu tradicional do Rio de Janeiro, esse boêmio herói sofre de um “encanto confuso” por “duas pequenas collegiaes”.23 Seus “grandes chapeus de palha e uniformes azues; cordões multicôres nas cinturas flexíveis” o introduzem ao “mundo mysterioso dos collegios”.24 Como a petite bande de Balbec, “conjunto maravilhoso porque nele se avizinhavam os aspectos mais diferentes”, cujos membros o herói de Proust tem tanta dificuldade em individualizar,25 André Lins percebe que, nessas moças, “o que elle amava não eram as suas qualidades individuaes, mas uma espécie de permanente mathematica, coexistindo em ambas, aquelle caracter de familia que as identificava”.26

Feito a Albertine de À l’ombre des jeunes filles en fleurs, que se destaca do conjunto uniforme de “virgens helênicas”27 por seus olhos negros e seu rosto ovalado, André Lins isola do conjunto familiar a irmã mais nova, cujo “labio inferior ligeiramente cahido trahia preciosamente a origem”.28 Ele a apelida “pequena marabá” devido à miscigenação do pai branco europeu com a mãe de ascendência negra, que “transmittira à filha mais moça aquelles olhinhos vivos e maliciosos, e aquella sensibilidade cutanea, que não chega a ser volupia, e fica apenas na malicia”.29

No aniversário de 17 anos da “pequena marabá”, André Lins “enviou-lhe algumas orchideas”, “orchideas mollengas e caprichosas”.30 Sua mãe, sarcástica, se assusta com o presente: “— que bichinhos horriveis! Não pegue não, que elles estão vivos!”.31 Qual não é a decepção desse narrador ao notar que a amada “não conhecia a flôr de Odette Swann”!32 Essa Albertine carioca, “pequena medusa, sob o chapeu de palha desabado, pedalando a sua bicycletta, enigmatica, fim de raça, ficou na memoria de André como uma cousa sem sentido”.33

Mais adiante, de La Prisonnière, Barreto Filho extraiu o início do conhecido tema do cri de Paris. Transformou-o em bruits de Rio. Após uma noite de amor com Frida, outra de suas várias amantes, André Lins, “pella janela aberta, embebia os dois olhos quentes na atmosphera doce, cheia da claridade do sol matinal”.34 Mas essa “é uma atmosphera artificial”.35 O herói se sente “possuido de desejos sadios, limpos como o seu corpo” somente até o instante em que abre a porta do quarto, adentra no apartamento e é dominado por uma “atmosphera cumplice”, uma “atmosphera pejada de vida moral confusa, que ia do maior escrupulo ao maior inescrupulo”.36 O ar é dominado por um “cheiro activo de cigarros inglezes”, que intoxicavam “umas orchideas longas, cochilando sobre o piano”.37 Novamente nos deparamos com as orquídeas de Odette de Crécy e, agora, com seu piano, que André Lins, filho de uma vida infrutífera na cidade grande, lamenta não saber tocar.

Será preciso seu retorno à terra natal, onde reina “uma collecção de paysagens repousadas e mansas”, onde “o mundo das sensações era exíguo”, para que se recupere “de uma vida intensa e frenetica”.38 O herói agora pode viver uma “ralentação da actividade”, experimentar “uma actividade menor dos seus sentidos acostumados às sensações instantaneas e breves”.39 Lá, ele conhecerá uma cândida moça, chamada, não por acaso, Clara, que lhe ensinará algo que chama de “prazer moral”.40 Para trás, no Rio de Janeiro, deixará o tempo de perdição, “a vida gloriosa dos que chegaram à fortuna e ao poder”.41

A essa primeira forma de apropriação de Proust se sucedeu uma outra, bastante comum a partir do final dos anos quarenta, e que elegeu como ângulo privilegiado de leitura não o dogma religioso, mas, antes, a dicotomia entre o campo e a cidade. Trata-se de uma visão que conserva a ideia de degradação da modernidade, mas sobretudo em perspectiva sociológica e geográfica. Com a expansão acelerada de nossos centros urbanos, o tempo perdido brasileiro passa a ser aquele dos espaços interioranos da infância, hoje destruídos, agora recuperáveis tão somente pelo artifício poético. Também o pastiche se torna mais raro. Em consonância com as tendências regionalistas desse período, nossos proustianos passaram a se interessar pela busca de uma recôndita Combray sob os trópicos e permitiram a seus heróis experiências mais autênticas e locais do fenômeno de memória involuntária.

Os livros mais representativos desse segundo momento da circulação de Proust na literatura brasileira vieram da pena do folclorista gaúcho Augusto Meyer. Conhecemos dois romances memorialistas de sua autoria: Segredos da infância (1949) e No tempo da flor (1966). É possível ainda que Meyer preparasse outras narrativas de memórias, consagradas à idade adulta de seu herói, haja vista que as edições O Cruzeiro anunciavam esses dois volumes como parte de uma série maior, intitulada tanto quanto banalmente Augusto Meyer, menino e moço.

Trataremos aqui do primeiro livro. Segredos da infância é composto de onze capítulos que atravessam a meninice do narrador. Partem da tenra idade em Cerro d’Árvore, a estância da família na cidade de Encruzilhada, e se desfecham nos meses de férias em São Leopoldo. O narrador a descreve como “uma cidade pacata, com ares de vilarejo”, onde, “em estradas de areia ou terra fôfa”, “à sombra dos plátanos”, vive o tempo de uma “maciota idílica”.42 Cidade semelhante a Combray, com seus “caminhos desertos”, seu “riacho vivaz e branco”, seu “céu esparso” e suas “nuvens preguiçosas”.43

O romance se abre com uma frase bastante proustiana e categórica, que prenuncia a jornada pelo espaço de esquecimento: “a MEMÓRIA da infância é uma ilha perdida”.44 Rumo a essa ilha seu narrador promete navegar, antevendo, após a “incerteza dos compassos iniciais”, um verdadeiro “clarão de descobrimentos imprevistos”.45 A primeira dessas descobertas inusitadas é a recordação de “um muro velho, no quintal de uma casa indefinível”.46 Esse muro “tinha várias feridas no rebôco e veludos de musgo”.47 Ao tocá-lo, o narrador brada: “milagrosa aquela mancha verde e úmida, macia ao contacto, quase irreal na sua beleza livre. Fecho os olhos, e ela me enche de luz, como um aviso da vida teimosa”.48

Por seu caráter “milagroso”, seus efeitos “irreais”, e a faculdade de produzir uma “beleza livre”, que anuncia uma “vida teimosa”, isto é, uma existência que acreditávamos perdida, mas que persiste e insiste sob a consciência, o narrador de Meyer deseja transformar o muro velho e seus veludos de musgo em agentes desencadeadores da memória. Assim como as madeleines que o narrador proustiano mergulha na xícara de chá e que produzem “prazer delicioso”, revelador de uma “essência preciosa”.49 Em Meyer, a recordação do muro velho “enche de luz” a escuridão interior dos olhos fechados; em Proust, os bolinhos revelam que “ele, o pesquisador, é todo inteiro a região obscura onde deve pesquisar”, para então acessar “sua luz”.50

Um caso notável de estímulo sensorial em Segredos da infância é o do vento minuano. Onde o católico Jorge de Lima inscreveu o minueto de Constança, o folclorista Augusto Meyer preferiu esse vento forte, frio e seco que é característico do inverno da região sul do Brasil. “Vento da campanha”, uma “voz tão grave que metia mêdo”, e que, quando o narrador volta a “atravessar os campos da fronteira”, como um “toque de mágica”, restabelece uma “cadeia entre o homem e a criança”.51 Paulo Bungart viu na recordação do minuano “uma espécie de madeleine meyeriana, ocorrência capital que irá nortear o relato de suas memórias e conferir sentido aos demais acessos”.52 De fato, a imagem do vento minuano se faz onipresente, ainda que constitua mais uma alegoria, um leitmotiv dos tempos da infância do que propriamente uma memória inesperada, marcada por surpresa.

Distante dos pampas gaúchos, sobre dunas nordestinas, o potiguar Octacílio Alecrim cultivou outro exemplo do esforço regionalista de apropriação do estilo de Proust. Esse autor, que então presidia o Proust-Club do Rio de Janeiro, publicou em 1957 o romance de memórias Província submersa, que hoje só conhecemos graças a uma reedição de 2008 subsidiada pelo Senado Federal. Do fundo da alma, no nível da inconsciência, seu narrador busca sacar a Macaíba de sua juventude. Descreve com notável minúcia as paisagens, os costumes e os personagens de uma campanha brasileira que, já em seu tempo, se mostrava em vias de extinção. Talvez Em busca da província perdida, título de um dos vários escritos de Octacílio Alecrim sobre Proust, seja a melhor síntese das ambições literárias e críticas desse escritor.

Não seria exagero ler no tempo perdido de Província submersa as anotações de campo de um vasto estudo etnográfico. Adentramos a casa da infância do narrador, a “casa com gradil” da rua da Conceição, e somos informados de cada pormenor de sua arquitetura e mobília: do “teto de madeira de onde pendia o sóbrio lustre de bronze doirado” ao “grupo austero de sofá, cadeiras de braço e mais cadeiras de palhinha sobre o chão aveludado de um lindo tapete persa”; dos “consolos de jacarandá e mármore onde descansavam dois antigos tulipeiros” ao “piano alemão coberto com pesado e custoso pano de belbute vermelho com franjas”.53 Sabemos que era casa térrea, “mas tinha sótão”; que, “de um lado, corria barrento riacho nos dias de chuva”; que, ao fundo, embalado por uma “rede de dormir”, alongava-se “um grande quintal com plantação de banana, sapoti, mamão, romã e limão doce”.54

Daniel Nasser

Também somos introduzidos às tradições da ancestral Macaíba em um simpático passeio por sua feira popular. A longa enumeração dos produtos que lá são vendidos poderia constar tanto de uma antologia folclórica de Câmara Cascudo, conterrâneo e amigo de Alecrim, quanto do belo episódio do cri de Paris, que lemos em La prisonnière. Em Alecrim, o “espetáculo da imaginação” se encanta com “o vendedor de berimbau, os cavalinhos de barro, as miniaturas de joão-galamastro, o alfenim, a pipoca, o caldo de cana ‘picado’ tomado em cuia, o imbu, a quixaba, o camboim, a manga matuta, o jambo branco, o ponche de maracujá com sequilho”55 et cetera. Em Proust, após uma noite de amor ao lado de Albertine, o herói ouve com alegria pela janela as cantigas e ladainhas dos vendedores de rua, verdadeira “abertura para um dia de festa”: “ah mariscos, dois contos os mariscos”; “os escargots, todos frescos, todos belos”; “roupas, vendedor de roupas, rou… pas”; “alcachofras, gordas e belas”; “facas, tesouras, navalhas”.56

Há ainda um discreto episódio de memória involuntária em Província submersa — mas, mesmo ele, acaba se fundamentando naquilo que pode haver de típico ou de característico na antiga sociedade nordestina. O herói visita uma livraria na tradicional rua Junqueira Aires, em Natal. Ele abre um “portãozinho de ferro escancarado para os batentes da escada de pedra” e se recorda, de supetão, “como no episódio proustiano”, de que “ali já estivera várias vezes quando menino acompanhando minha mãe nas suas visitas à Dona Sinhá Freire, a senhoril dona de casa, sempre espartilhada e metida no frufru da seda preta”.57

Nos anos 1970, os esforços de apropriação da poética de Marcel Proust vivem aquilo que poderíamos chamar de um momento de dispersão e de diversificação. Dispersão porque mais numerosos do que no passado os livros que se propõem, qualquer que seja sua natureza particular, a uma busca do tempo perdido sob os trópicos. E diversificação porque, após a experiência primária do pastiche e a posterior aclimatação das alusões a Proust, esses mesmos livros revelaram-se capazes de desenvolver estéticas próprias e variadas, que manipulam o estilo da Recherche com maior riqueza e em maior profundidade.

O exemplo mais notório são as memórias de Pedro Nava, como um todo, e o Baú de ossos de 1972, em específico. Pouco tempo após seu lançamento, o livro foi saudado pelo ensaísta Pedro Dantas como um documento sem equivalentes na literatura brasileira, um esforço “confessadamente proustiano” de reconquistar a história social do país “graças à memória involuntária”.58 O narrador desse romance se recorda, de fato, já nas primeiras páginas, de uma receita tradicional da família, a “batida de minha avó Nanoca”, que é “para mim coisa à parte e funciona no meu sistema de paladar e evocação, talqualmente a madeleine da tante Leonie”.59

A alusão a Proust fala por si mesma. Ao estímulo físico inusitado, um sabor sobre o paladar, se sucedem inúmeras sensações secundárias na consciência do narrador: “cheiro de mato, ar de chuva, ranger de porta, farfalhar de galhos ao vento noturno, chiar de resina na lenha dos fogões, gosto d’água de moringa nova”.60 Com relação aos demais autores que vimos, nada disso é novo. A diferença é a percepção sistemática e geral que Nava desenvolve para o fenômeno. Segundo ele, o fato importante é que “todos têm a sua madeleine”,61 mas “ninguém a tinha explicado como Proust”, isto é, “desarmando implacavelmente, peça por peça, a mecânica lancinante desse processo mental”.62

Consciente desse método, o narrador de Nava deseja produzir sua própria recherche e tentará dissecar — médico que é — cada uma das peças de seus processos de memória. Sendo assim, a receita da avó, que não é como “qualquer doce”,63 que é sobretudo uma “viagem no tempo”,64 acaba descrita com enorme minúcia, mas sempre a partir de uma perspectiva subjetiva. Seu efeito sobre cada um dos órgãos dos sentidos é levado em conta, são as sensações corpóreas o que mais lhe interessa. “Libro-me na sua forma, no seu cheiro, no seu sabor”,65 ele nos diz, transmitindo a ideia de que a memória se equilibra fisiologicamente sobre os alicerces do tato, do olfato, do paladar.

A mordida da batida suscita primeiro a constituição material do prato. O doce se assemelha a “pequenas pirâmides truncadas”, com linhas “mais compridas do que largas” e texturas “lisas na parte de cima, que veio polida das paredes da forma, e mais áspera na de baixo, que esteve invertida e secando ao ar, protegida por palha de milho”.66 Depois, encontramos seus aromas, um cheiro que é “intenso e expansivo, duma doçura penetrante, viva como um hálito”.67 O sabor, finalmente, é “untuoso” e se “difere do de todos os outros açúcares, pela variedade de gama do mesmo torrão, ora mais denso, ora mais espumoso, ora meio seco, ora melando”.68 Essas dimensões da percepção dominam “todo o sentido da língua”,69 mas não se limitam a ele. O sabor se amplia “pela garganta, ao nariz”, até culminar nos ouvidos, onde se transforma, graças a uma notável sinestesia, em “impressão melódica”.70

Somente seis anos após Nava, outro livro proustiano chamou grande atenção. Em 1978, o dramaturgo Jorge Andrade publicou Labirinto. Em seu prefácio, o crítico Sábato Magaldi mostrou-se admirado com a “arquitetura catedralesca” e com os “amplos contornos” da narrativa, que deveria a seu ver carregar o subtítulo de “em busca do pai perdido” pelos traumas familiares que exprime.71

O Labirinto de Jorge Andrade é justamente uma alegoria para esse drama íntimo do narrador. O tempo perdido, aqui, ganha contornos catárticos. Como ele próprio afirma, “a longa caminhada, em busca do tempo que será perdido, começa em labirintos sem fim”.72 O pai do narrador de Andrade, um decadente cafeicultor paulista, recusa com violência o talento artístico do filho, que sonha com uma vida sobre palcos de teatro. Homem rústico e tradicional, afeito à caça e à pesca, ele associa a vida teatral à homossexualidade e à libertinagem.

Aquilo que dá acesso a esse “precipício” da tragédia individual, a esse “lugar onde tudo pode acontecer”, e que o narrador chama de “brincadeira na crista da memória”, é o artifício da memória involuntária.73 O narrador visita o ateliê do pintor Wesley Duke Lee, transformado em espécie de Elstir. Diz sentir naquele espaço “um encantamento que não descobri de onde vinha”.74 O estúdio, que lhe parece “o caos completo”, faz brotar espontaneamente “impressões profundas” graças a uma enorme gama de estímulos sensoriais: “o universo das cores, a infinidade de objetos de todos os tamanhos e feitios, os milhares de enfeites, as dezenas de telas e quadros emparedando o estúdio imenso, haviam me confundido, perdendo-me no reino de recordações guardadas em cores, formas e objetos”.75

Logo sucede uma “sensação estranha”76 que provoca a todo momento dúvidas e hesitações no narrador. Pouco a pouco, essa sensação estranha que o dominou quando chegou ao estúdio “começa a ter sentido”.77 A lembrança morta ressurge, provocada por, nada mais, nada menos, que “magia” e “encantamento”:78 “meu mundo perdido está contido em suas cores. Ao lado da bandeira, a cabeça de cervo com chifres de oito pontas é recado do passado. Distancio-me alguns passos de Wesley, mas as visões que vêm de mim estão a centenas de quilômetros, milhares de dias”.79

Em 1979, o prêmio Jabuti contava com a categoria Memórias e seu vencedor foi A menina do sobrado, de Cyro dos Anjos. Nas palavras do escritor Josué Montello, tratava-se de uma importante “reconquista do tempo perdido”.80 O crítico Hélio Lopes enxergou ali ainda uma possível evidência de que o “tranquilo pomar” do memorialismo brasileiro, na maior parte das vezes escasso e pobre perto da “boa estirpe” e da “alta fortuna” em “alheias terras”, havia finalmente conseguido amadurecer seus frutos.81

Pomar de árvores maduras, mais abundantes, com espécies variadas, e fatalmente fecundadas por um polinizador comum — a Recherche de Proust. A prova está, dentre vários outros, em um interessante incidente do capítulo XIX de A menina do sobrado. O narrador, já adulto e lotado em alta patente da diplomacia brasileira, viaja a Haia com sua família para visitar o Mauritshuis. Ele deseja “conhecer o original da Vista de Delft, de Vermeer, que muitas vezes examinara em reproduções, tentando captar o mesmo sentimento que o petit pan de mur jaune despertou em Bergotte”.82

Ele deixa, no entanto, o Mauritshuis decepcionado, “sem haver progredido nessa prospecção”.83 Sabe que a contemplação da Vista de Delft, produto de uma vontade consciente, não é capaz de provocar o mesmo encantamento surpreendente que antecede a morte de Bergotte. Um outro compromisso, no entanto, aguarda logo em seguida o diplomata na cidade. E, então, contra todas as suas expectativas, a experiência da memória involuntária se processará de modo completamente inusitado. Ele visita a pianista brasileira Gilda Oswaldo Cruz após caminhar por “duas ou três horas, na cidade varrida de chuva e vendaval”.84 A pianista o recebe ao lado das duas filhas em uma grande sala, na qual o narrador nota, com seu habitual preciosismo, que “conspícuo, descansava o seu Steinway”.85

Para “indenizar daquele extravio”, ele “pleiteia” um pouco de música.86 Atendendo a seu pedido, Gilda interpreta o terceiro dos Moments Musicaux de Schubert, que o narrador, em um tropeço de sua erudição, chama equivocadamente de “opereta”.87 Diferente da tela de Vermeer, a música inesperada de Schubert reverbera em seus sentidos e agita sua consciência. Na casa das três mulheres — a pianista e suas filhas —, outras três moças ressurgem sob a forma de espectros. A longínqua Haia se transforma na cidade de Belo Horizonte e o apartamento de sua anfitriã se converte no palco de um teatro. “Lea, sua irmã Amata e Iolanda Vernati, a gazelinha”, bailam sobre ele, feito fantasmas, “naquele recuado 1926”.88

Daniel Nasser

O narrador, absorto pelas imagens vivas que a música acaba de ressuscitar do fundo de sua consciência, logo percebe que vive uma experiência de rememoração e se apressa em esclarecê-la: “se o petit pan de mur jaune não me deu a chave das emoções de Bergotte, um milagre proustiano repetiu-se, para mim, ao evadir-se do teclado a melodia alegre, vivaz, que, apoiada num staccato da mão esquerda, torna, insistente, e vencendo o acorde que duas vezes a detém, se entrega, depois a um pensamento nostálgico”.89

Como qualquer panorama em literatura, esse nosso leque de obras se concentra sobre os aspectos mais centrais da apropriação de Proust por cada geração de escritores. Em favor de uma visão de conjunto, nos vemos fadados a ignorar hesitações e zonas de ambiguidade. O moralismo católico de Jorge de Lima e de Barreto Filho se imbui por vezes de traços regionalistas, da mesma maneira com que o regionalismo quase etnográfico de Augusto Meyer e de Octacílio Alecrim não sacrifica por completo a magia de um fenômeno como a memória involuntária. Aliás, mesmo Nava, Andrade e Anjos, que dão prova de grande domínio da interioridade proustiana, não resistem em louvar aquilo que pode haver de mais típico e característico em seus passados campesinos em Juiz de Fora, Barretos ou Santana do Rio Verde, suas Combrays tropicais.

Para além, contudo, dessas regiões de incerteza entre uma obra e seu momento, o que parece mais interessante é notar o movimento fundamental de apropriação do estilo de Marcel Proust pelo romance brasileiro ao longo do século XX. Uma dinâmica que revela não uma absorção uniforme do tempo perdido, mas, antes, uma multiplicação de tempos perdidos. Nessas sucessivas passagens de pastiches religiosos a realismos antropológicos e a narrativas psicológicas mais aprofundadas e complexas, o que se percebe é uma tendência de gradual subjetivação do romance brasileiro. Tendência cujo importante patrocinador — de modo quase sempre original e surpreendente — é À la recherche du temps perdu de Marcel Proust.