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Cooperativismo de plataforma como alternativa à plataformização do trabalho

Vinícius Ribeiro

Em 2016, o professor e ativista Trebor Scholz, da New School, cunhou o termo “cooperativismo de plataforma” para designar uma tentativa de enfrentamento ao capitalismo de plataforma, que já àquela época se mascarava discursivamente de expressões como economia do compartilhamento. Essa retórica dominante capturava noções ligadas ao bem comum em prol de uma “cidadania sacrificial” — termo cunhado por Wendy Brown como um dos aspectos da racionalidade neoliberal.

A esse pacote corporativo juntam-se o gerenciamento algorítmico do trabalho, a crescente extração de dados como forma de capital, uma intensificação da vigilância sobre as pessoas trabalhadoras, entre outros mecanismos de extração de valor. Este é o cenário dominante do que denominamos de plataformização do trabalho, uma crescente dependência de plataformas digitais, com seus mecanismos e infraestruturas, para conseguir executar atividades de trabalho.

Pois quando Scholz definiu o cooperativismo de plataforma o fez na intenção de construir uma alternativa a toda essa lógica. De 2016 para cá, ficou ainda mais clara a necessidade de um movimento que lute por governança democrática no ambiente de trabalho, redistribuição de mais-valia e intercooperação (isto é, a cooperação entre cooperativas), reapropriando tecnologias digitais em prol de uma organização cooperativista. E se entregadores e motoristas construíssem suas próprias plataformas? Greves de trabalhadores por plataformas em várias partes do mundo e índices baixos de trabalho decente em plataformas digitais têm evidenciado que, além da regulação, é preciso construir alternativas desde baixo.

Isso não significa, porém, que elas substituirão, a médio prazo, as grandes plataformas de trabalho. Não se trata somente de substituir Uber por uma solução cooperativista. Há dificuldades devido ao efeito de rede, à forte pressão da concorrência das grandes plataformas. Estão envolvidas em novas formas de rentismo e financeirização — como demonstram autores como Jathan Sadowski — o que amplia seu poder em prol de uma oligopolização dos diferentes setores plataformizados. Isso faz com que as Big Tech possam oferecer promoções — como frete grátis — ad infinitum para minar a concorrência. Isso passa também por lobby e estratégias de relações públicas — com grande poder midiático — para minar possíveis alternativas. Além disso, as cooperativas correm riscos de autoexploração, algo já exposto pela longa história de fábricas recuperadas por trabalhadores. Contudo, essas dificuldades não significam deixar, de partida, de acreditar em um projeto ligado ao cooperativismo de plataforma. Na verdade, elas podem se colocar como precursoras de experiências de enfrentamento à plataformização do trabalho dominante, enquanto políticas prefigurativas.

Temos defendido que o trabalho por plataformas é um laboratório da luta de classes. Ou seja, se há novos mecanismos de controle por parte do capital, há também brechas e possibilidades para experimentações por parte da classe trabalhadora. O grau experimental e laboratorial do cooperativismo de plataforma significa, em um primeiro plano, que as iniciativas devem nascer de baixo, apoiadas localmente e pelas comunidades. Então, não devemos esperar que elas solucionem, a um só tempo, todos os problemas em relação ao mundo do trabalho. São processos em andamento, como políticas prefigurativas, ou seja, construindo localmente hoje o mundo que queremos amanhã. Atualmente, o Diretório do Cooperativismo de Plataforma (Platform Co-op Directory) apresenta 504 iniciativas de 33 países. Todos, arranjos produtivos recentes, aprendendo a lidar com os desafios de construir algo novo, sem fórmula pronta.

O caráter laboratorial desafia inclusive os limites do próprio termo cooperativismo de plataforma. As características apontadas por Scholz em 2016 são um ponto de partida, mas não de chegada. Não é uma cartilha. O trabalho intenso de universidades, trabalhadores e poder público ao longo dos anos tem mostrado que, a depender de legislação, mercados e outros contextos locais, as iniciativas podem tensionar o que seria uma plataforma ou uma cooperativa.

No primeiro caso, nem sempre uma plataforma será entendida da mesma forma que os grandes conglomerados tecnológicos. Isso pode significar reinventar a questão da escala a partir da capacidade de intercooperação, como o caso da federação de cooperativas CoopCycle, na Europa. E, também, ampliar os próprios sentidos de tecnologia — afinal, a plataforma ainda está muito ligada a imaginários e infraestruturas que remetem ao Vale do Silício. Para que essas iniciativas não recaiam em “solucionismos tecnológicos” — termo cunhado por Evgeny Morozov para designar ideologias que querem criar tecnologias (por exemplo, plataformas) para solucionar todos os problemas do mundo — ou que sejam elefantes brancos em seus contextos locais, a tecnologia deve servir à comunidade e não o contrário. Afinal, um aplicativo não soluciona a luta de classes. Desta forma, formulários automatizados, por exemplo, podem ser um produto tecnológico de uma plataforma cooperativa — sem ser exatamente uma plataforma no sentido convencional. Até porque já há acadêmicos debatendo que essa noção de plataforma digital que imaginamos tem fortes acentos eurocêntricos

Aliás, a noção de plataforma digital, ao contrário do que muita gente pensa, não é somente tecnológica. Envolve questões como governança, propriedade, organização do trabalho, política e modelos econômicos, além das próprias infraestruturas tecnológicas. Da mesma forma, as plataformas cooperativas são atravessadas por múltiplas dimensões, sendo a questão tecnológica o resultado final de um processo.

No segundo caso, há plataformas que podem se inspirar em princípios do cooperativismo de plataforma, mas que não são, elas mesmas, cooperativas. Nem sempre as legislações locais fomentam o cooperativismo como uma alternativa. No entanto, em vez de pensar a questão somente a partir da lógica da falta, podemos compreender uma série de arranjos alternativos aos conglomerados tecnológicos que vêm surgindo sob a forma de coletivos ou outros agrupamentos comunitários. Por exemplo, em nossas pesquisas sobre mídia alternativa e cooperativas de trabalhadores de comunicação, descobrimos que os países com mais cooperativas no setor são Argentina e Espanha. Há pouquíssimas iniciativas cooperativas no Brasil. Porém, há uma série de coletivos e outras formas de autogestão. Isso abre o leque dos desenhos institucionais e amplia o que se entende propriamente por cooperativismo de plataforma.

Essa ampliação dos termos cooperativismo e plataforma não quer dizer, em si, a negação do movimento. Pelo contrário, e até pelo nome ter feito sucesso, trata-se de partir do cooperativismo de plataforma para pensá-lo além da própria nomenclatura. Significa também abrir o leque para uma série de iniciativas que têm surgido no Brasil — como Contrate Quem Luta e Pedal Express — que não se encaixam exatamente na definição de cooperativismo de plataforma, mas são inspiradas por alguns de seus princípios e precisam ser observadas com atenção enquanto laboratórios da própria classe trabalhadora. Nessa ampliação conceitual, além do habitual cooperativismo de plataforma, podemos falar em termos como plataformas controladas por trabalhadores e arranjos alternativos aos conglomerados tecnológicos.

Quais seriam as características centrais dessas iniciativas? O acento forte está na autogestão, que pode ser de trabalhadores, consumidores ou pertencentes a várias partes interessadas. Aqui focaremos em iniciativas controladas por trabalhadores. A governança, então, precisa ser democrática, com processos de decisão e gerenciamento que coloquem as pessoas trabalhadoras no centro das decisões. Isso implica também em lutar por igualdade de gênero, raça e outros marcadores sociais da diferença no processo de autogestão das plataformas controladas por trabalhadores.

A noção de trabalho decente também é um ponto-chave para a construção da autogestão no trabalho por plataformas. Ela foi cunhada em 1999 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e faz parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Esta agenda tem sido protagonizada, no âmbito das plataformas digitais, pelo projeto de pesquisa-ação Fairwork, ligado à Universidade de Oxford, e presente em vinte países. A pesquisa tem pontuado as principais plataformas do mundo a partir de princípios de trabalho decente e também tem ressaltado a necessidade de plataformas alternativas já nascerem sob a égide do trabalho decente.

A luta por trabalho decente envolve princípios de remuneração, condições de trabalho, contratos, gestão e representação. Em síntese, as plataformas controladas por trabalhadores precisam garantir salário mínimo, condições de trabalho adequadas que proporcionem saúde e rede de segurança, contratos claros e acessíveis, processo de gestão que garanta equidade entre trabalhadores e combata desigualdades na plataforma, algoritmos que não prejudiquem trabalhadores. Além disso, as plataformas cooperativas de fato devem considerar os trabalhadores no centro dos processos decisórios.

As questões de saúde mental no trabalho também são aspectos essenciais para a garantia do trabalho decente em plataformas cooperativas. Este é um princípio levantado pela DiSCO, um movimento que busca impulsionar iniciativas cooperativas a partir de movimentos em prol do comum, deredes distribuídas e da economia digital feminista. Sigla para Distributed Cooperative Organisation, a DiSCO nasceu da cooperativa de tradutores Guerilla Media Translation. Um dos seus valores é a atenção ao trabalho de cuidados. Para eles, care work is the core, para que os integrantes, em suas próprias palavras, não recaiam em um burnout ativista. Desta forma, questões de cuidados devem ser também de responsabilidade coletiva. Aliás, as iniciativas DiSCO se diferenciam por buscar reimaginar origens e fluxos de valor a partir da responsabilidade coletiva em distintos níveis: produção de mercadorias para valores de mercado (livelihood), criação de bens comuns (para fazer circular o comum), e trabalho de cuidados.

Os aspectos tecnológicos também devem ser levados em consideração pelo movimento do cooperativismo de plataforma, utilizando-se do potencial de tokens comunitários e blockchain, mas sem recair em um tecnocentrismo. A utilização de tecnologias livres e abertas, com códigos abertos, e que priorizem a privacidade relaciona-se à busca por tecnologias não alinhadas — termo cunhado por Ulises Mejias e nome de movimento de enfrentamento ao colonialismo de dados —, sem que ocorra a dependência infraestrutural das plataformas. Isso evidencia que, muito além do aplicativo — que é somente a interface softwarizada e ponta do iceberg — trata-se de rever todo o ecossistema de plataformas. Não é possível criar uma alternativa sustentável a longo prazo em termos de softwares dos próprios trabalhadores que continue a depender das lógicas e infraestruturas de Google, Apple e Microsoft para conseguir sobreviver.

Isso passa também por rever o design das plataformas desde a sua construção a partir de uma perspectiva de uma justiça projetual, com base em elementos como os que Sasha Costanza-Chock propõe no livro Design Justice. Ela mostra como práticas de design universalistas apagam grupos de pessoas a partir de múltiplas dominações — incluindo branquitude, heteropatriarcado e colonialismo — e procura documentar uma série de processos em relação a um design que considere as comunidades marginalizadas no centro, indo além das perspectivas de design centrados no usuário e “design para o bem”. Os princípios de design justice, como utilizar o design para sustentar as comunidades e trabalhar para resultados liderados pelas comunidades, são, portanto, centrais, para a construção de plataformas controladas por trabalhadores. Não é possível projetar tais plataformas com a reprodução de racismo algorítmico e outras desigualdades incrustadas nas tecnologias. Pelo contrário, os valores do cooperativismo de plataforma — em sua forma ampliada — devem estar presente desde o início da construção das tecnologias.

Outras características importantes na construção de tais iniciativas são políticas e infraestruturas de dados que se liguem ao bem comum e não reproduzam práticas extrativistas e colonialistas em relação aos dados. Os dados devem ser de propriedade de trabalhadores, enquanto possibilidades de governança comunitária. As cooperativas de dados podem ser tanto um subtipo específico do cooperativismo de plataforma quanto uma característica central dessas iniciativas. No primeiro caso, há exemplos como a Driver’s Seat, em que trabalhadores coletam dados deles mesmos em suas atividades para as grandes empresas de tecnologias, e depois revendem para órgãos públicos, de modo que o setor público não sofra de dependência de tais conglomerados tecnológicos. Este é um passo decisivo rumo a tentativas de soberania tecnológica em um país como o Brasil. E no próprio país já há uma série de coletivos hacker fazendo um excelente trabalho em termos de busca por infraestruturas digitais autônomas, como a coletiva hackfeminista MariaLab.

Por fim, nos marcos deste texto e sem a intenção de encerrar as possibilidades, há os potenciais de intercooperação — um atributo-chave antigo do cooperativismo. Os potenciais de articulação do cooperativismo de plataforma são o ponto-chave para compreender a escalabilidade dessas tecnologias. No fundo, elas podem desafiar a perspectiva dominante de escala na economia de plataformas. Afinal, as plataformas cooperativas não se chamam de “unicórnios”, mas de “Pegasus”, isto é, toda uma constelação, em que a força reside no coletivo.

As plataformas podem até ser baseadas em um local, mas vão se articular com outros arranjos em diversos lugares, a partir do princípio de cooperação entre cooperativas. Elas podem se dar tanto dentro do mesmo ramo — por exemplo, cooperativas de entregadores de São Paulo, Recife e Porto Alegre compartilhando a mesma base tecnológica e conhecimentos de base —, quanto entre diferentes setores, por exemplo, cooperativas de entregadores que se relacionam com coletivos de programadores (produzindo software livre), agricultores, pequenos restaurantes, entre outros. Por exemplo, a Resto.Paris, na França, tem se colocado como uma política de incentivo ao trabalho decente e à alimentação saudável a partir da articulação entre CoopCycle e Olvo — a cooperativa de entregadores, e o selo de certificação de alimentação saudável do país.

Isso evidencia as ricas possibilidades de construção do cooperativismo de plataforma no Brasil, enquanto fomento a circuitos alternativos e locais de produção e consumo, e os múltiplos desenhos que podem nascer de forma experimental e laboratorial considerando os princípios acima. O importante é, para não reproduzir um efeito “economia do compartilhamento 4.0” — ou similar —, que se conceba realmente as construções de plataformas autogestionadas desde baixo, a partir das pessoas interessadas.

O combate à generalização da plataformização do trabalho envolve a luta pelas ressignificações da plataformização em prol da classe trabalhadora, articulando tecnologias livres, dados para o bem comum, trabalho decente, governança democrática e intercooperação, com as possibilidades de fomento de políticas públicas de mobilidade, melhorias de transporte público, serviços de cuidados, integração ao sistema de saúde, entre outras múltiplas experimentações que estão por vir.

No âmbito do Laboratório DigiLabour, acabamos de lançar o Observatório do Cooperativismo de Plataforma, que se propõe ser um hub das discussões sobre o tema no Brasil, compartilhando e fazendo circular princípios e práticas para inspirar trabalhadores, pesquisadores e formuladores de políticas a prefigurar outros futuros possíveis no âmbito do trabalho por plataformas no país. Entre as iniciativas, lançamos uma série de vídeos curtos explicando conceitos e exemplos do cooperativismo de plataforma. Falamos sobre intercooperação, trabalho decente, design justice, cooperativas de dados, e explicamos exemplos como Means TV, Driver’s Seat, Up and Go, entre outros. Até setembro, serão vinte vídeos no site e no Instagram. Nós também lançamos um documentário em curta-metragem contando as experiências das Señoritas Courier. Essas são possibilidades de ampliar e exemplificar alguns dos cenários explicados neste texto.