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Carlos Fajardo: a generosidade da vida

Cinema mudo, Carlos Fajardo

Carlos Fajardo tem 80 anos. Mal acreditei ao fazer a conta. Braguinha — um compositor de marchinhas sutil, sábio, bem-humorado e longevo que viveu 99 anos — disse certa vez que “a vida só gostava de quem gosta da vida”. Batata!

Conheci-o em 1985 na casa do escultor e amigo comum José Resende. Fajardo tinha então 45 anos. Os cabelos ralearam um pouco, o corpo talvez tenha ganhado alguns gramas. No mais, sempre o porte de toureiro com traços de espadachim francês dos tempos da monarquia.

E um incorrigível otimismo, mesmo nas épocas de aperto financeiro ou de problemas de saúde. Seus gestos meio geométricos, suavemente angulosos — ao pôr a mão nas costas de um amigo, ao apoiar a ponta do sapato no chão e ao caminhar — parecem ter sido desenhados por Saul Steinberg, não tivessem sido traçados por ele mesmo.

Nosso artista é nomeado de diferentes formas, dependendo do grau de intimidade ou da época em que se conheceram: Fafá, Carlos, Fajardo, Carlos Fajardo, Don Carlos ou mesmo Carlos Alberto, exclusivo de sua mãe, quando zangada com o filho. Ele corresponde a todos. Desde o mais íntimo ao mais impessoal.

Não gosta da ideia de trabalho de arte, embora seja um trabalhador incansável. Lecionou por treze anos no Departamento de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da USP. Desde 1965 dá aulas particulares. Em 1985, fui convidado pelo professor e amigo José Arthur Giannotti para editar a revista Novos Estudos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Logo no segundo número que realizei (o 19, se não me engano), convidei-o a desenhar as capas da publicação. Trabalhamos juntos até 1998, quando decidi me dedicar apenas ao curso livre de história da arte a que me dedico até hoje.

E foi Fajardo o grande responsável pela ideia e pela reunião do primeiro grupo de alunos para que lecionei, ainda em meu apartamento de então na Rua Pelotas, em 1989 Um dia, ao levá-lo até a saída do Cebrap, reclamei de não poder viver do que então já era meu principal interesse, a história da arte.

Ele colocou o braço em meu ombro e disse: “Vamos resolver isso”. Não é que algumas semanas depois já lecionava para umas dez pessoas?



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Fajardo pertence a uma geração de artistas que, como José Resende e Cássio Michalany, aprendeu muito com os minimalistas norte-americanos. Para essa importante vertente da arte contemporânea, importava sobretudo encontrar uma formalização muito simples dos trabalhos de arte. “Uma coisa depois da outra”, nas palavras do seu principal representante, Donald Judd.

Uma forma de disposição dos componentes da obra — lâmpadas fluorescentes (no caso de Dan Flavin, barrotes de madeira, no de Carl Andre) — que correspondesse mais à democracia de massas, à produção em série e à quase extinção do artesanato no mundo de hoje.

No entanto o primeiro amor do artista foi mesmo Marcel Duchamp. Lançar desafios complexos e humorados ao observador, pondo em xeque sua soberania, é algo que o mobiliza. Muitas de suas peças se fazem por si mesmas. Uma esfera de glicerina que aos poucos perde água e vai se transformando. A longa cauda de argila que parte à medida que seca. As placas de vidro laminado sobrepostas meio ao acaso, produzindo as mais diferentes tonalidades e assim por diante.

A relação entre um artista e sua obra é extremamente complexa. Matisse possivelmente realizou a obra mais alegre de todos os modernos. No entanto era um homem intranquilo e angustiado, que muitas vezes precisava de que sua primeira esposa, Amélie, lesse em voz alta até o amanhecer para que ele conseguisse conciliar o sono.

No caso de Fajardo, acredito que sua obra o influenciou mais do que vice-versa. Ele é uma pessoa solidária, mas avessa a arroubos emotivos. Pode-se contar com ele para quase tudo, mas penso que não gostaria de ouvir confidências. Nem cria situações que propiciem tais intimidades. Ele também não as faz. Sua vida íntima talvez tenha compartilhado com Renata Ribeiro da Luz — a primeira esposa, que não cheguei a conhecer — com Raquel de Almeida Magalhães, sua segunda mulher, ou com Vânia Chene, sua atual companheira.

Num país que valorize as artes visuais muito possivelmente alguma fundação já lhe teria garantido uma vida menos dura e um futuro mais tranquilo pela enorme contribuição que prestou às artes com sua obra e seu ensino. Felizmente nosso jovem ancião ainda tem saúde e, como Braguinha, muita alegria de viver.