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Roda grande vai queimar

Cidade Marina (MG).

Clube.

A coisa mais estranha naquela semana nem foi o STF baixando no ponto de ônibus escolar. Foi depois, quando aquele homem agitado de toga quase se afogou no riacho. O povo ficou naquilo de não saber muito bem se ria ou não. A verdade é que aquela capa preta encharcada é que estava dificultando o movimento naquele riacho raso de mês de agosto. Não vou dizer que foi medo que eu senti. Por falta de palavra melhor vou chamar de espanto. Aqui é tanta história de aparição que a gente não costuma sair se emocionando à toa. Quando o STF baixou aqui de uma hora para outra, eu até achei estranho, mas com essa história de que isso aqui vai virar cidade cenográfica, com potencial turístico e aquelas pessoas que andam pra todo lado de mochila, eu pensei que era mais uma perturbação nesse sentido. O pessoal inventa muita coisa. Estava escuro, ainda amanhecia, me levantei cedo como de costume. Meu cachorro estava lá na pista latindo e fui ver o que estava acontecendo, ele estava muito agitado. Eu fui chegando perto, reconheci a silhueta dele ali e, dando mais alguns passos, vi a estrutura. Pisei no tablado de madeira, não rangeu. O cachorro, que tinha parado de latir, veio junto. Na escuridão não dava muito bem para distinguir os contornos das coisas. De repente escutei uma voz grossa falando que eles ainda não estavam prontos; para eu voltar mais tarde e ter a gentileza de tirar o cachorro dali. Eles queriam ainda algumas horas de sono para se prepararem pro longo dia de trabalho a seguir. Vai ser o que aqui?, eu perguntei. Uma outra voz, de mulher, respondeu que ali ia ser o STF, que eles iam passar o dia ali, pra eu voltar depois e vir participar. Junto da voz dela subiu um cheiro de coisa guardada, o odor na escuridão me fez sentir como se tivesse ido parar dentro de um gaveteiro velho. Voltei para a casa, passei o café, prendi o cachorro para ele não atrapalhar mais e fui começar o dia. Eu não fiquei muito interessada, não pensava em voltar lá.

Um pouco antes do almoço passou o velho Abílio. Eu sou velha também, mas ele é muito mais. Desde que ficou viúvo ele vai passando na casa das pessoas para fazer as refeições. E muitas vezes ele até chega com comida pronta, o que ele não gosta é de comer sozinho. Naquele dia chegou apenas com a bengala na mão, o assunto era um só, o STF instalado ali, entre a minha casa e a dele, no meio da estrada. O Abílio chegou se divertindo com a situação: quando ele tinha passado lá, os ministros estavam quase implorando para que as pessoas entrassem. Os meninos travavam contra eles uma guerra de mamona e estilingue. Eu entrei, ele disse, fui dar minha contribuição. De pé ali na tribuna, ele contou uma história que todo mundo aqui já ouviu pelo menos uma vez. Há muito tempo, mais ou menos quando eu cheguei por aqui, o pessoal do Incra tinha dado para ele umas sementes específicas, as que segundo eles eram as certas para serem plantadas nesse clima e nessa terra. Ele plantou as sementes recomendadas em um pedaço da terra, mas plantou também uma lavoura com as suas próprias sementes. Depois da colheita ele chamou todo mundo, inclusive os técnicos do Incra, para ir lá comer e comemorar a fartura dos grãos. Quando ele serviu o milho, todo mundo elogiando a delícia que estava, a beleza, e os técnicos com aquela cara de quem dormiu de luz acesa, sem entender nada. É que ele tinha servido para eles só a palha, porque tinha sido mesmo só palha que as sementes deles tinham dado. Parece que enquanto ele falava os ministros fingiam tomar nota, faziam uns rabiscos e desviavam das mamonas. Ao final, em agradecimento, entregaram a ele um número de protocolo adornado com canetinhas coloridas.

Eu ainda não entendi se eles eram atores ou não, essa parte ninguém veio explicar, nem a equipe de resgate quando chegou aqui, nem os jornalistas, que só sabem fazer perguntas. Ninguém sabe muito bem a cara deles, dos ministros e ministras, tem algumas mais marcantes, mas a maioria parece de fantasma, aquela coisa que você vê e depois já logo precisa desver. Guardar rosto de fantasma é uma das piores coisas que existem. E assim a gente foi emendando conversa, eu e Abílio, que também achava que todo mundo ali tinha cara de assombração. As minhas netinhas, que estavam passando pelo quintal, falaram que era uma convenção de bruxos e bruxas, que elas estavam indo atrás de uma poção para se livrar deles, que lá tinha um livrinho de poções contra Constipação que elas haviam tomado de empréstimo. Elas ainda estão aprendendo a ler. Saímos para o fundo do terreno, as meninas desapareceram no meio dos arbustos para alguma aventura e nós fomos ver a tela que ele tinha colocado na horta por causa dos passarinhos. Enquanto se certificava de que a tela continuava firme, Abílio contou que tinha sonhado à noite com um pivô central que se movia por vontade própria. Ele rodava e andava para a frente ao mesmo tempo, disse, não sei se para transformar tudo em soja ou se para fugir dela. Dei risada, falei que era a bebida, mas sozinha comigo pensei que na verdade isso era tão ou mais plausível que a aparição do STF por esses lados. Ele resmungou uma coisa que eu não entendi e desceu para ir ver se estava tudo bem com o cano que trazia água lá de baixo.

Enquanto eu voltava para a cozinha para terminar a louça com aquele fluxo de água intermitente, comecei a ouvir uma barulheira vinda da direção em que estava o STF. Eram os jovens que vinham chegando da escola. Desciam do ônibus em meio a uma nuvem gigante de pó, ocasionada pela curva fechada que o veículo teve que fazer para não causar nenhum acidente. Eles tinham pegado o globo do antigo cassino e estavam começando a montar um bingo. Aqui de início era para ser uma cidade que ia atrair famílias abastadas. Se chamaria Cidade Marina, seria uma meia-irmã de Brasília. Foi o Niemeyer que projetou; aquele pedaço ali depois da descida, à esquerda, é o que sobrou. Logo que eu vim pra cá, eu morei ali. Eu era ali de Paracatu, vim contratada para ser professora dos primeiros habitantes de Cidade Marina. Tinha até cinema. Vinha gente do Rio de Janeiro, de São Paulo, até de fora. Mas nunca chegou muita gente. O dono disso tudo era um alemão, ninguém sabe direito como esse mundo de terra foi parar na mão dele. Mas já vivia muita gente aqui, o Abílio, por exemplo. Depois o empreendimento não deu certo, interditaram a cidade modelo e eu vim aqui pra cima, mais pra perto das pessoas. Antes de lacrarem tudo, a gente pegou um monte de coisa pra gente. Eu peguei para mim o relógio da escola velha, que fica ali no canto da sala. Tenho a cópia do plano diretor em algum lugar por aqui também. Olha aí, “procurando estabelecer um sistema de vida humano e feliz, integrado na natureza que aproveita e enriquece”. Projetada para 100 mil habitantes! Se chegou a 200 foi muito. A briga mesmo foi com as terras destinadas à área da colônia agrícola, vieram tomando tudo no correntão.

O Abílio voltou, falou que era a bomba que tinha parado de novo, mas ele tinha dado um jeito com uns arames. Praticamente tudo na vida ele resolvia no arame. A gente foi subindo em direção ao STF, o bingo estava instalado e transcorria a discussão para se decidir quais seriam os prêmios. Os ministros e ministras pareciam felizes de finalmente ver alguma coisa acontecendo naquele espaço. Eles aguardavam ansiosos por instruções. Pegavam suas cartelas e eram convidados a se sentarem nos banquinhos que os meninos, em um raro momento de cessar-fogo, haviam trazido das casas. Colocavam também os chapéus ofertados para prevenir o que já pareciam ser sinais iniciais de insolação. O carequinha estava besuntado de protetor solar que, com o calor, escorria pelo pescoço, manchando as suas vestes pretas. Diante da bandeira, na ponta daquela mesa angular (e agora terrivelmente empoeirada), estava a Dona Cremilda, a mais velha de todas aqui. É sempre a ela que cabe o sorteio dos números. Sua cegueira era vista pela comunidade como sinal de integridade e imparcialidade absoluta. Ao lado, estava a sua filha, que sempre realiza em voz alta a leitura dos números. Do outro lado, no outro assento, um pato que anda o dia inteiro atrás da Cremilda. Esse pato só falta falar. A gente se sentou nas duas cadeiras amarelas da ponta, o cheiro de guardado permanecia, mesmo com aquele sol que tinha feito o dia todo. Eu gosto do bingo, gosto de ficar na expectativa do número, gosto que a gente se reúne, se diverte um pouco. Eu não sou das mais sortudas. O Tico, esse sim. A casa dele é praticamente um museu de Cidade Marina. Tico é irmão de Cremilda, foi ele que tirou a bandeira do Brasil e substituiu pela do Festejo do Divino, mais apropriada ao clima festivo, embora fora de data. Naquela mesa contínua estava sentado todo o pessoal de idade, estávamos bonitos ali naquela disposição. Os ministros começaram a querer opinar nos prêmios, diziam que a gente deveria talvez pensar em algo que beneficiasse a todos, que a gente desse mostra de comunidade. Com isso, eu tive quase certeza de que eles estavam tentando transformar aquilo ali em algum tipo de programa de auditório com final feliz e revigorante. Se bobear, tinha até câmera escondida lá.

Na prática o bingo é uma desculpa para ficarmos trocando entre a gente os mesmos objetos de sempre, quinquilharias e cacarecos de Cidade Marina. Nesse dia, a gente decidiu colocar como prêmio de terceiro lugar a estatueta egípcia que ficava na sala do engenheiro que ia cuidar da irrigação disso tudo, diziam que ele tinha endireitado o Rio Nilo. O prêmio de segundo lugar ia ser a maquete da cidade, que parecia também uma nave espacial em miniatura. E para quem completasse primeiro a cartela, uma caixa de madeira bonita que tinha pertencido ao alemão. Era a primeira vez que essa caixa entrava no circuito do bingo, ela tinha um tamanho estranho, como se fosse um cofre de algum tipo, um lugar para guardar documentos. Dava para ver as iniciais enormes dele talhadas perfeitamente na caixa. A Dona Cremilda foi a primeira professora aqui, antes disso de inventarem uma cidade, antes de eu chegar. Foi o Abílio que a convidou para vir para cá, para ela dar aula para os filhos dele e dos outros posseiros. O alemão concordou. Eles ficaram muito amigos, Cremilda e o alemão. Eu nunca soube muito bem o que pensar dele, ele ficava citando o Riobaldo pra cima e pra baixo. Como Riobaldo, eu virei um grande fazendeiro — era o que ele falava, e ria. Só que ele também era comunista, quer dizer, dava o dinheiro dele para os comunistas. E tinha muita conversa de que andava guerrilheiro por aqui; o Tico conta de um homem de perna muito comprida que andava mato adentro e dizia ser madeireiro, mas não conhecia o nome de nenhum tipo de madeira. É um pouco como os ministros sentados ali nos banquinhos, fingindo saber de justiça, mas ao contrário.

É que eu acho que na verdade a Dona Cremilda planejou tudo isso. O bingo. A caixa de madeira, que exalava o mesmo cheiro do STF. As iniciais do alemão. O ataque feroz e impiedoso dos grilos, que emergiam da caixa e saltitavam para dentro dos ministros e ministras pelas suas bocas e ouvidos, cantando ininterruptamente. A juventude acompanhando, em coro, com uma tradução não autorizada e muito livre da internacional comunista. Os rasantes do pato, com a bandeira vermelha do Divino flamulando ao fundo. O olhar fulminante da pomba branca bordada com esmero pelas fiandeiras do povoado vizinho. As bolas do bingo finalmente libertas do globo, propulsionadas pelos estilingues. Os movimentos de morcegões atordoados daquelas pessoas que no fim talvez não fossem mesmo atores. Elas se debatiam contra si mesmas, corriam primeiro em círculos e depois desatavam sem rumo, dispersando o ruído dos grilos pelo cerrado. O Brasil é um grande grilo, por toda parte se podia escutar. O Abílio deve ter ajudado também, porque quando eu achei que a situação já estava saindo um pouco do controle, veio vindo um pivô central alucinando pela beira da estrada. As minhas netas acham que foi a garrafada que fizeram de barbatimão com araticum. Mas vai lá ver depois os relatórios do SNI sobre a perseguição à Dona Cremilda, as operações que os militares fizeram por aqui — está escrito que ela provavelmente não sabia de nada mesmo. Ninguém de nós sabia. Parece que ela já tinha ido muitas vezes atrás de conseguir as reparações, eu só sei que no dia seguinte quando eu a encontrei de manhã, ela estava toda sorrisos — é sempre a montanha que vem a Maomé, ela falou, e depois gesticulou para eu tomar cuidado para não tropeçar na pedra. Essa mulher só é cega para poder comandar o bingo.