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O tribunal fora do lugar

Aeroporto de uma cidade na fronteira de Mato Grosso e Goiás.

Clube.

No exato lugar ao lado da pista de pouso onde permaneceu durante anos a fuselagem carbonizada de um avião, uma sombra esquecida, fantasma de uma tentativa de golpe militar por um bando de oficiais insurgentes, em 1959; no mesmo local onde a sedição foi abortada em menos de 24 horas, frustrando a expectativa dos amotinados de conseguir a adesão nacional dos colegas ao plano de derrubar o presidente da República e suspender as eleições; exatamente ali, anos depois de ter sido removida a carcaça do avião militar, e mais de cinquenta depois de outro golpe, dessa vez bem-sucedido, mas cujo espectro insepulto continuou vagando como uma promessa interrompida por seu enterro, materializou-se, da noite para o dia, sem explicação para além da ação divina, uma réplica em escala natural da Corte Suprema, o plenário do Superior Tribunal Federal.

Percebido ainda de madrugada por um ou outro passante a caminho do trabalho, o palco sem atores, objeto incongruente pousado ao lado da antiga pista, logo despertou a cidade com o rumor de um acontecimento extraordinário. Em poucas horas o velho aeroporto estava cercado de curiosos que, hesitando em se aproximar num primeiro momento, não demoraram a ocupar as cadeiras dos juízes, passando a deliberar e proferir sentenças sobre assuntos que lhes diziam respeito diretamente. Um acerto de contas, uma vaca roubada, um aluguel em atraso, um amigo em dificuldades, uma dívida, uma disputa com o vizinho, tudo o que estivera pendente durante meses ou anos foi resolvido em minutos, com ações justiceiras a favor dos interessados.

Apesar do calor e do sol na cabeça, só a chegada das autoridades foi capaz de remover do plenário a céu aberto os neófitos que se aferravam às cadeiras e ao encargo de proferir sentenças como verdadeiros juízes. Esvaziado, cercado pela polícia, o tribunal perdeu o sentido de ser. E diante do risco daquele vazio simbólico, aberto às mais desvairadas interpretações, líderes das diversas denominações religiosas representadas na cidade se apressaram a adotar a tese unificadora de que o vazio e a incongruência são a maior manifestação divina.

Em poucas horas, a população estava de volta à pista do antigo aeroporto, agora investindo como hordas pagãs contra a polícia e o cenário, na sanha e na esperança de guardar em altares privados, em casa, relíquias das quais pudessem auferir, com vênias e beijinhos matinais, os melhores resultados. Em um instante destruíram quase tudo, como formigas à volta de um torrão de açúcar. Os primeiros a chegar, os mais fortes e mais espertos, em seguida considerados eleitos e abençoados, voltaram para casa com pedaços da mesa e das cadeiras disputadas a socos e pontapés. Os retardatários tiveram de se contentar com as chamadas partes inferiores, retalhos do carpete mostarda, às vezes rasgados no dente, mas que nem por isso perdiam suas propriedades sagradas.

A exemplo da carcaça do avião militar carbonizado, fantasma do destino nacional, o que restou do plenário da Corte Suprema em ruínas também foi esquecido num canto da pista de pouso até ser removido, sem explicações, da noite para o dia, da mesma forma como se materializara.