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Montanha de fogo

Vulcão Eldfell, Islândia.

Clube.

Fui eu quem arrancou o tribunal daquele zoológico para extraterrestres e o trouxe para cá, este outro planeta dentro do planeta. Depositei o tribunal em cima do vulcão bem no dia do aniversário deste. Não era meu presente de aniversário para ele. Não sei se daria o tribunal de presente a um amigo. E é isso que o vulcão é: um amigo meu. O meu presente era a dança que improvisaria em cima da mesa do plenário, assim que o tribunal estivesse instalado. Trouxe o tribunal para cá porque havia lido no Natal que a ilha de Heimaey tem a forma barriguda do Brasil. Achei que comporia bem. Mas posso ter achado errado. Como eu, o vulcão estava fazendo 48 anos. Nasci exatamente treze horas e vinte e cinco minutos antes dele. Fui eu também quem fez o mapa astral do vulcão. Quer dizer, larguei os dados do vulcão num site que faz o que não sei. Tanto ele quanto eu somos aquarianos; ele é mais voluntarioso, eu mais entusiasmado, e ambos, além de cínicos, temos uma batelada de Capricórnio espalhada pelos astros. Não sei o que isso significa, mas não deve ser coisa boa. Quando nascemos, uma revista noticiava que as águas dos oceanos Pacífico e Atlântico se encontrariam um dia, fazendo desaparecer toda a América Central. Não conheço a América Central e acho que nunca vou conhecê-la. Não gosto de nada que seja central. Por isso, trouxe o tribunal para cá: ele é retangular. Mas trouxe só o plenário, sem as paredes e o teto. Queria que ele ficasse a céu aberto, com chuva e neve caindo sobre a mesa e as cadeiras. Queria ver o carpete ir paulatinamente se estragando, se rasgando, se decompondo, sofrendo o mesmo desgaste da malha justa de fauno que estou vestindo. Queria ver o tribunal perder sua pele. Tive o cuidado de deixar a carcaça do prédio no lugar onde estava. Para ninguém notar a ausência. Antes de partir, taquei fogo no crucifixo que estava numa das paredes do plenário. Que Cristo ardesse no inferno daquela cidade sem encruzilhada, daquela estrela espatifada. Quando as águas cobrirem a América Central, alguém perceberá que o tribunal foi sequestrado. Nesse dia, estarei dançando. Espero que ainda reste um pedaço de minha malha de fauno para cobrir meu corpo. Sinto frio apesar de estar morto. Morri em mil novecentos e dezenove quando me internaram na clínica. Mas ninguém ainda sabe. Eu sei, mas o russo não desconfia. Ele pensa que não o vejo, mas o vejo, sim. Eu durmo com ele. Partilhamos da mesma cama desde a clínica. Fui eu, aliás, quem o matou. Sem mim, ele jamais teria conseguido equilibrar o tribunal sobre a parte mais alta do vulcão, de onde se avista a cidade, o mar e, além dele, um horizonte sem fim. Se espichar bem o pescoço, avista-se até a piscina quase centenária em que batizamos o tribunal antes de trazê-lo para a ilha. Nas águas quentes, verdes e cheias de algas e cinzas daquele outro vulcão de nome impronunciável, mergulhamos o tribunal três vezes. Ele cabia direitinho ali. A piscina parecia ter sido construída para ele. O russo cogitou abandonar o tribunal submerso nas águas. Mas achei melhor não. Afinal, tínhamos uma missão a cumprir. Na clínica, não fazia frio como aqui. Deveria ter aceito o tapetinho de pele que o andaluz me ofereceu para cobrir os ombros e me aquecer. Mas não queria nada dele. Odeio o andaluz. Ele me excita. Por que não é ele que está morto? Se estivesse morto como eu, não estaria agora em cima da mesa do tribunal dançando a música que me consagrou. Que ousadia! Não há ninguém para tirá-lo dali? Onde estão todos? Onde estão os papagaios? Não escuto mais seus arrulhos. Até eles desapareceram. Quando trouxe o tribunal para cá, pensei que os papagaios pudessem cagá-lo todo. Queria ver aquelas cadeiras de couro, de espaldares tão altos, cobertas de merda. A longa mesa de madeira de lei besuntada de fezes. É algum tipo de ironia ser de lei a madeira dos móveis do tribunal? Eu sou a lei. Já fui deus, já fui pantera, já fui a sopa de couve que a minha mãe me preparava na infância na Rússia. Mas agora eu sou a lei. Sou Têmis e meu filho é o vulcão. Basta um fósforo só para mostrar a incógnita de pó em que todos os seres se resolvem. Risco o fósforo e sou o fósforo. Sou o fogo. Minha cabeça arde como uma cabeça de Medusa incandescente. Lanço labaredas ao céu do alto do meu crânio partido. Caem fagulhas sobre os trapos da minha malha de fauno e minha pele queima. Voo até a mesa do tribunal e empurro o andaluz. Sou o Pássaro de Fogo. Pássaro que caga no próprio ninho é ave de mau agouro. O andaluz rola vulcão abaixo e para sem se mexer. Talvez esteja morto. Eu me aproximo da bandeira que fica atrás da cadeira do presidente do tribunal e a incendeio. O verde das matas agora arde como minha cabeça. Arde como ardeu o Cristo crucificado da parede do tribunal. Disseram-me que o amarelo da bandeira era desespero. Seja o que for, ele queima também. As chamas já estão chegando às estrelas, e eu danço sozinho sobre a mesa do tribunal. Danço a dança da primavera, para que ela se antecipe e acabe com todo esse sofrimento. Não vou descer daqui para ver se o andaluz se mexe. Não me interessa saber. Odeio ele. Vou só espiar. Vejo que seu longo vestido preto está coberto da areia vermelha das costas do meu filho. Dorme, filhinho, dorme bem calminho. De noite, vai nevar. De dia, estarás mortinho. Eles pensam que estou hibernando, mas aqui ninguém dorme. Ninguém dorme. Ninguém dorme. Não há mais ninguém para dormir. Ninguém para cavar a terra vermelha das minhas costas e liberar o ar quente que guardo em mim. Pensam que estou morto, mas um mar de fogo se agita nas minhas entranhas. Um dia, cuspo esse fogo todo fora. Se o tribunal ainda estiver sobre minhas costas, será o primeiro a ir pelos ares: um retângulo em chamas. Pena que não há mais ninguém por perto. Sentirei falta do espetáculo dos corpos em fuga. Mas não há mais ninguém aqui. Ninguém para dormir comigo. Ninguém para ver o tribunal. Até os papagaios desapareceram. Não escuto mais seus arrulhos. Só restaram esses fantasmas com os rostos cobertos por máscaras. Seus olhos, os únicos órgãos à vista, perderam a expressão. Não dizem nada. Parecem estar cansados de vagar. Têmis tem os olhos bem abertos. Diké também. A Justiça não. A Justiça usa a máscara de maneira errada. Um dia, morrerá por conta desse descuido. Começou a chover. Achei que ia nevar, mas chove a cântaros. Não sei se o tribunal resistirá, ainda mais depois do mergulho na piscina. O couro das cadeiras já está se desgastando. Ah, não! A bandeira está deixando de arder! O fogo nem mesmo chegou até as cadeiras, até as mesas, até o púlpito e já arrefeceu. Não pegou nem mesmo no carpete! Chove muito. Minha cabeça deixou de ser um lança-chamas. Estou ensopado. Minha sapatilha está encharcada e tenho dificuldade para dançar. Quero pular com força sobre a mesa como fazia na juventude, mas não consigo. Meus pés pesam. Tento alçar o corpo para o alto, mas meus pés fixam-se na madeira da mesa, como se estivessem pregados a ela. Madeira de lei. Talvez seja a lei que me impeça de saltar. O russo ignora que eu não só o vejo, como também o ouço. E isso me cansa. Pássaro que muito canta caga no ninho. Sinto frio e, por isso, sei que não estou morto. Deveria ter posto nos ombros o tapetinho de pele que ofereci ao russo. O que me salva é este ar quente que sai do buraco no chão aberto pela pancada da minha cabeça. Não quero me levantar daqui. É reconfortante. Na verdade, não sei se conseguirei me levantar. Minhas pernas se recusam a obedecer meus comandos, e acho que quebrei os braços na queda. Maldito russo. Se houvesse alguém aqui, pediria socorro. Mas todos se foram. Até os papagaios desapareceram. Não escuto mais seus arrulhos. E eu preciso voltar ao tribunal. Ah, vulcão, meu irmão vulcão, tu que és tão forte, eu te imploro, estende-me tua língua de fogo e me lança até o tribunal. Aqui, ninguém dorme. Ninguém dorme. Pensam que estou morto, mas estou com os olhos bem abertos. Bem abertos. Montanha de fogo. Montanha de fogo. Antes fosse. Antes fosse. Renasci em mil novecentos e setenta e três e trouxe comigo o vulcão. Quando o andaluz nasceu, o vulcão havia cansado de tocar o terror e estava dormindo há exatamente duas semanas. O vulcão tampouco gosta do andaluz. Disse-me que acha o vestido preto dele meio déclassé. O vestido que agora está rasgado. A barra prendeu numa pedra durante a queda e abriu uma fenda até o quadril. Queria ser uma fenda nas costas do vulcão para liberar o gás quente que sai de dentro dele. Dorme, meu bebê, dorme até a primavera. O andaluz não vai sobreviver. E será enterrado sem choro nem vela. Ninguém dorme. Ninguém dorme. Quando as águas cobrirem a América Central, não haverá mais Yucatán, e os dinossauros morrerão pela segunda vez. Dorme, meu filhinho, dorme, meu vulcão. O tribunal não tem mais Cristo a quem dedicar uma oração. Sou Cristo e sou o tribunal. Sou a oração derradeira. Danço sobre a mesa do plenário com o que restou da minha malha justa de fauno. Branca e marrom é a minha malha, como o couro das vacas do Azerbaijão. O couro das cadeiras do plenário é ocre, como o pelo dos vira-latas brasileiros. O carpete também é vira-lata. Só as madeiras da mesa e do púlpito não são vira-latas. Essas são de lei, embora a lei, por vezes, seja vira-lata. Minha mãe tinha um cachorro vira-lata quando eu era pequeno. Eu mordi o cachorro enquanto brincávamos debaixo da cama. No plenário, não há cama. Não há bandeira também. A que tinha queimou. Só há mesa, púlpito e cadeiras. Deito-me sobre a mesa como se tirasse uma soneca depois do almoço. Mas não durmo. Ninguém dorme. Ninguém dorme. Pensam que estou morto, mas estou só descansando. Um mar de fogo se agita nas minhas entranhas. Um dia, cuspo esse fogo todo para fora. Parou de chover. Ah, vulcão, meu amigo vulcão, tu que és tão forte, eu te imploro, estende-me tua língua de fogo e seca minhas sapatilhas para que eu possa voltar a dançar. Minha dança é meu presente de aniversário para ti. O buraco é quente e aquece minha cabeça. Talvez eu consiga levantar. Um dia, antes de as águas cobrirem a América Central, uma onda baterá com força no Malecón de Havana e retornará ao mar aberto com violência redobrada, deslocando-se ― cada vez mais alta, cada vez mais rápida, cada vez mais potente ― em direção ao Atlântico Norte, chegando até a ilha de Heimaey, cobrindo-a quase que por inteiro, deixando apenas de fora o topo do vulcão. O tribunal então será levado pelas águas e ficará boiando por um período indeterminado, porque não haverá mais tempo a ser contado, até que, depois de errar sem rumo por boa parte do que havia sido o mundo, encontre o litoral chamado outrora Índia. Nada disso! Não será assim. Ergo-me e, num salto, estou em cima da mesa do plenário, ao lado do russo, que finge dormir. Com a vibração inesperada, ele abre os olhos. Ele tem os olhos bem abertos, como eu. Estendo-lhe a mão, que ele agarra com graça. Estamos de pé sobre a longa mesa do plenário. Seguindo a coreografia que havíamos combinado na clínica, raspo com força o salto de meu sapato de flamenco na superfície da mesa. Risco a madeira de lei, abrindo-lhe uma ferida. Sou o fósforo e sou o fogo. E o nosso filho é o vulcão.