Leite condensado
Preâmbulo

Sede Nacional do Partido dos Trabalhadores, São Paulo.
Quando as sombras iam ganhando a feição do dia, um tremendo arrepio cruzou a espinha do porteiro da sede do Partido dos Trabalhadores na cidade de São Paulo. Um forte barulho de compressão mecânica se espalhou a partir do teto. Assustado, ele correu pro sobrado e notou que o prédio havia sido sobreposto. Correu para saída e viu um prédio pousado sobre a sede. Esfregou os olhos num gesto involuntário e como não havia chegado ninguém, ele imaginou que talvez pudesse estar alucinando. O abalo da injunção provocou rachaduras estruturais. Alguns mendigos e trabalhadores começaram a se aglomerar em volta do edifício, eles esperavam o desfecho daquela bizarrice antes que chegasse à televisão, assim teriam o domínio do fato. Ironia à parte, de repente, com a chegada da Defesa Civil e o controle da algaravia, o povo começou a ouvir vozes indiscerníveis que vinham de cima. Embora abafadas pela distância, era possível notar que se tratava de uma discussão arbitrada por uma voz que às vezes soava solitária.
Do alto do edifício ao lado, algumas pessoas amontoadas em janelas gritavam “é o STF”. As equipes de telejornalismo matinal de todas as emissoras foram ao local e enviaram helicópteros. Em poucos minutos o Brasil acompanhava assombrado o acontecimento. “Com toda vênia deputado, não existe justiça possível”, foi a primeira frase a ecoar pelo sistema de alto-falantes do tribunal. “Concluam comigo” ― a voz prossegue. “Todos nós nascemos de um ventre em qualquer contexto a partir do qual nossa vida se desenvolve. Feito o aparte, prossiga, deputado.” Assim, aos poucos, os passantes iam conhecendo as personagens daquele insólito julgamento.
Do lado oposto da rua, uma outra movimentação disputava a atenção dos transeuntes e logo passava também a chamar atenção das equipes de reportagem. Tratava-se do Messias, não o Messias vulgar dos anais da política nacional, o que Freud explica, mas o verdadeiro Messias, o que veio colocar pai contra filho, filho contra mãe numa cadeia infinita de gerações inconciliáveis. O filho da humanidade que ultrapassou os limites de sua própria humanidade, aquele que disse, “somos todos”. Ali estava ele. Ponto final.
Ato 1
Como as imagens tomadas do alto pelas câmeras das equipes de TV eram as únicas que possibilitavam acompanhar em gestos e semblantes o que se passava acima da sede, parte da multidão se acotovelava em busca de espaço diante de uma vitrine da loja Magazine Luiza. As pessoas questionavam por que o Messias estava de máscara, se era o filho de deus pai todo poderoso, enquanto rogavam à misericórdia divina contra aquele que julgavam blasfemador. A balbúrdia seguia. Começou a chover. A multidão se abarrotou debaixo de alpendres e marquises. Como a chuva era muito forte, todos entraram dentro de lojas, prédios e restaurantes abertos. Logo todos começaram a boiar dentro dos estabelecimentos. As torres de TV no Sumaré foram atingidas por raios e caíram. A transmissão foi interrompida. A Defesa Civil se deslocou em botes para resgatar velhos e crianças.
Ato 2
O STF, lá estava ele, no alto da sede do Partido dos Trabalhadores, sobranceiro. Todos os ministros encharcados. Aos poucos, meio-fio, bueiros e hidrantes iam ressurgindo do dilúvio e as pessoas que não haviam sido levadas pela enchente iam retornando pro entorno da sede. Os alto-falantes voltaram a soar com eco na transmissão: “Nada da que e o o mundo do exige ge de e nós ós pode de resultar ar em m algo go que e seja ja contra a o mundo do. Nem m isso so, nem m outra a coisa a.” De súbito o defeito foi superado e a voz prosseguiu: “Eu imagino, caros magistrados. Por acaso vossas excelências não imaginam ― em suas mentes viris ― à falta de provas que consubstanciem um delito? Em verdade, vossas majestades sabem que não há prova suficiente. Não havendo prova suficiente, a justiça de Estado não está em condição de julgar suficientemente. Perguntem ao Messias.”
Ato 3
Durante a chuva, o Messias sumiu debaixo das águas, depois ressurgiu da drenagem, intacto, seco, como se houvesse sido pausado. Surpreso com aquele homem, a quem via de cima, saído ileso do dilúvio, o deputado intrometeu-lhe no imbróglio. As pessoas, que já haviam esquecido o Messias, agora davam-se conta aterrorizadas de sua messianidade. Destaque, entre a multidão, para um homem que gritava a poucos segundos de ser espancado: “o Messias não deixava morrer meio mundo na enxurrada para salvar-se, seco e tranquilo.” O Messias nem sequer olhou para o deputado, alguém apareceu com um teleprompter, as câmeras da TV se posicionaram ao lado dos celulares e ele começou o último discurso de todos os tempos. O discurso surgia no teleprompter e aos poucos o desconforto do Messias com o texto ia exaltando o povo como antes do dilúvio. “BASTA!”. O basta do Salvador ecoou tão forte nas paredes do edifício do Partido dos Trabalhadores, que fez ceder uma coluna levando uma parte do STF abaixo com os ministros Fux, Gilmar, Fachin e Lewandowski. A gritaria foi geral. Era possível ouvir os ministros pelo microfone de lapela, presos a vergalhões pela toga. O Salvador continuou: “vocês não estão em condição de rejeitar nenhum acordo. Agora ouçam-me bem.” De repente um estrondo seguido de uma densa fumaça tomou conta do prédio defronte ao tribunal sobreposto à sede do Partido dos Trabalhadores. Até os ministros dependurados se calaram.
“Estão vendo por quê?”, concluiu o Messias, dando início a um longo discurso de improviso.
Ato 4
“Filhes…” ― “filhes?!”, murmuravam os mais velhos. “A verdadeira abominação é o que vós fazeis contra vós. Vou vos contar uma história. Um varão muito rico habitava com sua família e descendentes fora dos muros da cidade de Roma. Um dia, numa armadilha de soldados romanos, seu filho mais novo foi preso acusado de cortejar a esposa de um oficial militar. Foi levado a Roma e condenado. Foi arremessado ao mais bárbaro gladiador, não morreu, tornou-se um gladiador imbatível. Sua família o julgava morto e havia inclusive realizado um enterro simbólico. Um dia, seu irmão mais velho foi até a cidade comprar lã e viu o gladiador, sabia que era seu irmão. Ele voltou e disse a seu pai. Eles então foram até o Coliseu. Ao cabo da luta, se aproximaram do gladiador e se apresentaram. O gladiador encarando o irmão mais velho, lhes indagou a todos: “por que me abandonaram?”
O pai interveio: “filho, para nós os romanos o haviam matado”. “E por que não foram tomar satisfação do meu corpo com os romanos, oferecer um enterro digno a um filho da terra?”, cortou o gladiador. O pai começou a chorar, “não julgue nossa fraqueza, bem sabes que estamos em desvantagem. Nossa gente concilia. No entanto, vejo que tua desvantagem o tornou mais forte e destemido que qualquer um. Tenha piedade, filho.” O gladiador voltou então o olhar na direção de seu pai e disse: “agora eu sou um romano, pai.”
Ato 5
“Viram como qualquer um pode ser gringo, basta começar a agir como gringo”, concluiu o Salvador.
A inundação baixara totalmente, ratos, baratas e muito lixo sobravam nas vias. Os ministros dependurados foram alvejados, resgatados com vida e levados ao Messias. O Messias os curou. “Eu não dou fé, mas não posso reprovar uma façanha dessas, afinal foram dois tiros no coração, um na cabeça e um no fígado”, disse Fux aparentemente contrariado com o milagre. O Messias então lhe fez flutuar até o tribunal egrégio e disse apenas no seu coração, telepaticamente: “faça por merecer.” Nunca mais a vida voltaria ao normal no país, especialmente pelo que estava para acontecer nas próximas horas. Muitos tanques de guerra e aviões foram deslocados para o palco surrealista da política nacional ― o STF pousado sobre a sede do Partido dos Trabalhadores. Um sistema de som poderoso soava os termos de rendição dos insurgentes. Dos falantes do STF, os ministros tentavam explicar que não se tratava de insurgência, mas de modos. Os militares foram cercando as ruas estreitas do entorno e começaram a metralhar a população embaixo.
Ato 6
Aterrorizados com aquela carnificina, os ministros tentaram fugir do prédio em pânico. Alguns se atiraram em cima de estagiários que foram deliberadamente empurrados para servir de colchão. Fux, que havia sido resgatado para a vida pelo Messias, foi até a beira do edifício e gritou para os militares: “seus covardes! Vocês não são o povo brasileiro, vocês são…”
Nesse momento o Messias que vira o povo ser brutalmente assassinado, se eleva sobre tanques e metralhadoras, atraindo para si a atenção de todos. O Messias exige que os militares o bombardeiem. Os militares então o agridem com tudo. Quando a fumaça se dissipa, o Messias está imóvel pairando sobre eles e ordena que lambam suas botas e andem de quatro. Os militares se recusam e tentam explodir Fux e os outros ministros. O Messias envolve todos numa bolha de proteção e exige que eles orem pela sua sobrevivência. Gilmar duvida e a bolha perde força. Um tiro atinge Fachin. O Messias transfere o sangramento para Gilmar. O povo é ressuscitado e imortalizado para lutar contra os militares. Os militares estão em desvantagem e não podem cumprir a missão. O Salvador destrói tanques e aviões, os militares recuam e dão início a um estranho ritual.
Ato 7
Quando os militares se viram em desvantagem, se agruparam em volta de uma grande fogueira feita de carros. O Messias extraiu dentre o povo da ressurreição os mais humildes. Dentre os mais humildes, pobres em periferias urbanas e rurais. Depois de separá-los dos que vivem acima da renda per capita, reuniu ladrões, assassinos, pais e mães de família e tirou as crianças de perto.
“Meus filhos, vocês trazem consigo a capacidade de julgar. Benefício por esmola, ou esmola por benefício?”.
“Meu Senhor, permita-me uma consideração”, interveio um dos assassinos. “Eu, meu Senhor, a mim nunca faltou disposição pra encarar a vida de frente, nem discernimento pra entender a frase de uma das excelências que ecoou hoje cedo, ‘não existe justiça, todos nós nascemos de um ventre em qualquer contexto a partir do qual nossa vida se desenvolve’. Enquanto tiver rico, vai ter pobre, a vida é relativamente curta pra todos, cês não acham que esse é o raciocínio de uma pessoa rica? Há algumas opções para os pobres, a maioria não é decente e as que são decentes dependem de uma inteligência ou habilidade superior inata e muita disposição pra engolir sapo. Mas além disso, a gente que é pobre, devia ser capaz de diferenciar políticos justamente pela esmola ou benefício, meu Senhor. Tem governante que vai estender benefício aos mais pobres apesar e muito além das capitanias hereditárias e outros que vão lhes fazer esmolar. Eu tive opção de trabalhar direitinho… os ricos… eu sempre quis o máximo de conforto realista, mas é preciso ser muito cruel pra acumular uma dezena de milhões e eu só mato em último caso, jamais em primeiro, essa é a diferença de um assassino como eu e… sei lá… os grandes acionistas da Coca-Cola, da Monsanto, da Exxon mobile.”
O Messias ouviu surpreso o discurso do assassino e lhe enviou numa bolha para negociar com os militares.
Ato 8
Ao longe, separado conforme ao Salvador conveio, o povo via os militares em volta da fogueira. Eles estavam dispostos em dois círculos concêntricos e giravam em direções opostas. No círculo de dentro, que girava no sentido leste-oeste, estavam os oficiais. A medida que o assassino se aproximava numa bolha, notava detalhes da cena. Os oficiais estavam nus. Constrangidos com a chegada do intruso em ritual tão secreto, os oficiais ordenaram aos praças que o surrassem. Mas logo perceberam que estava numa daquelas bolhas que o Messias havia feito.
Ato 9
Os ministros retomaram o julgamento que até aqui ninguém sabia do que se tratava. O Messias orientou o povo a acompanhar o julgamento fantasma.
“Agora estamos assistindo… esse negócio de Hong Kong querer se separar do continente… cês lembram quando o Sul quis se separar do Brasil? pois é', ouvimos Levandoswki.
A noite caiu de súbito como é comum no inverno.
“Estamos num ano par e vocês sabem o que significa um ano par numa democracia. Muitos idiotas vão onerar os cofres públicos. Nós sabemos que essa é uma visão míope do problema, mas quando olhamos mais de perto é ainda mais razoável a percepção que o povo tem dos políticos.”
“Ministro, permita-me discordar de vossa excelência”, interrompeu Carmem Lúcia. “A gente vive num paisinho de quinta, hein… só num paisinho de quinta um ministro da corte suprema depõe contra seu povo. Só num paisinho de quinta, esses idiotas a que vossa excelência se referiu, depõem contra seu povo. Só num paisinho de quinta o povo permite que um desequilibrado seja chefe da nação por ódio de si próprio. Só num paisinho de quinta quase metade da população vive com uma renda inferior à metade da renda per capita. Só aqui a vida não equilibra testosterona e oxitocina.”
A tensão escalava nos escombros do tribunal que agora já estava dependurado sobre a sede. O Messias, entre os populares, intervinha a cada discurso dos magistrados, procurando esclarecer ao povo os princípios e a finalidade daquele debate, muito embora ninguém conhecesse ainda réu, acusação e defesa.
Ato 10
O assassino gritou de dentro da bolha que vinha para negociar a paz. Mas ele não sabia que os militares estavam realizando o ritual da vergonha nacional. O ritual da vergonha nacional é muito antigo, praticado por militares de alta patente, em todos os países na esfera de influência da OTAN, toda vez que se projeta um futuro soberano. Os oficiais disseram ao assassino que ele era o primeiro fora do círculo militar a testemunhar esse importante rito de formação. Como não podiam simplesmente eliminá-lo, tentaram persuadi-lo a entregar o Messias em troca de uma pensão milionária. Mas o assassino queria mais pelo silêncio sobre o ritual e exigiu a presidência. Os oficiais aquiesceram. E assim que fecharam acordo, o Messias falou no coração do assassino: “permita-me”, e sua boca começou a espumar sangue e vísceras, os militares foram incendiados com os carros, a terra tremeu tão violentamente que derrubou todos os edifícios em volta esmagando todo povo selecionado pelo Senhor. E não ouviu-se nem viu-se depois, pois não havia ninguém que mesmo ouvindo ou vendo, pudesse perceber aquilo que jamais foi visto antes: tamanha façanha.
Ato 11
“O negacionismo campeia no mundo desde sempre. A novidade é a internet: negócio da mina: surto de reportagem. Burro de reportagem. Murro de reportagem: muro de reportagem. Curra de reportagem. Urro de reportagem: dieta de magnata.”
“Um cristão que tem que lidar com o perdão, já admitiu que a vontade é antinormativa, ‘atirai a primeira pedra quem nunca pecou’ é uma frase que ensina menos sobre perdão do que sobre liberdade e vontade em sentido absolutamente radical. A crença é a base da imaginação. Ninguém imagina algo que não tenha visto, que não possa acreditar. Por isso que é tão difícil descreditar os sentimentos de um mitômano, conferir um diagnóstico de esquizofrenia, conceber um réu confesso.”
‘Eu sou o Messias, eu vos disse”. De repente, os poucos que haviam restado do cataclismo foram levitados e colocados em uma nuvem tão macia que eles adormeceram. Depois o Messias ressuscitou todos que haviam morrido, sem exceção, e fez o tempo voltar para antes da injunção do tribunal sobre a sede do Partido dos Trabalhadores.
Ato 12
Inverno de 2016. O porteiro da sede do Partido dos Trabalhadores na cidade de São Paulo, acompanhava o noticiário quando quatro homens armados em duas motocicletas abriram fogo contra a fachada do edifício. Ninguém ficou ferido, a polícia imagina que foi um tipo de recado, o partido não tem dúvidas.
Primavera de 2018. O recado.
O Messias então avançou o tempo até o momento depois da ressurreição e perguntou ao assassino se ele tinha algo a dizer antes que o tempo parasse por uma longa eternidade em todo o universo. Todos pararam para ouvir o assassino, era afinal dele o último discurso de todos os tempos. O Messias fez o assassino falar ao coração de todos. Então o assassino, depois de uma enorme e deliberada hesitação, começou a provocar o Messias, forçando-o a admitir que toda destruição e reparação que causara foi por causa de sua armação com os militares.
“O recado estava dado. Canalha. A história estava escrita. Você deixou que inventassem o certo, o erro, a correção, a injustiça e a mágoa. Isso endureceu o coração da espécie. Eu queria viver os milhares de anos que os mitos vivem. Você queria viver antes e depois da árvore do conhecimento. Você deixou que eu falasse por último, porque eu sou o último covarde da terra. Você quis que eu tivesse a oportunidade de me humilhar diante de cada pessoa que abordei num ponto de ônibus, num caixa eletrônico, numa casa de campo, numa agência bancária, numa viela da quebrada, numa operação de rotina, num esculacho diário. Mas você me livrou dos Panama Papers, dos escândalos dos paraísos fiscais, da produção e lucro financeiro dos defensivos agrícolas, dos crimes contra a administração pública. Você me reconduziu às mãos do povo para ser julgado por meus irmãos e irmãs”, e soltando um grito forte que reverberou nos corações humanos, o assassino cometeu suicídio.
O Messias voltou-se para o povo e disse que não haveria jeito de trazer uniformidade aos seus corações e que não podia ser responsabilizado por seu tremendo senso de justiça. Disse ainda que a liberdade é nosso maior bem, mas que não devemos confundi-la com justiça.