3

Caderno de campo

Propriedade rural na região de Buritizeiro, norte de Minas Gerais.

Clube.

Finalmente encontrei uma pista do que pode ter sido tudo isso. É uma foto, na verdade uma montagem 3D, o que embaralha tudo um pouco mais. Não fosse uma teimosia que passou dos limites da razoabilidade, deveria abandonar tudo isso o quanto antes.

É uma foto de um pasto, possivelmente sem uso, rodeado por outros pastos, também possivelmente sem uso, todos eles de uma generalidade, monotonia e neutralidade quase idiotas. No centro, à meia distância entre o horizonte ao fundo e a superfície da imagem, foi inserida uma maquete 3D com uma mesa retangular vazada no centro, grande o suficiente para acolher doze poltronas de encosto largo e mantendo uma distância razoável entre elas. Uma dessas poltronas está caída, virada por um vento que, se soprou, não sopra mais ― nem capim nem árvores ao fundo farfalham. Tampouco tremula a bandeira (a antiga) do Brasil, também inserida artificialmente no canto direito da estrutura, em um mastro ligeiramente torto, como o pênis de um adolescente destro e entediado. À esquerda da bandeira, na outra ponta da cabeceira da mesa, há um arbusto seco, talvez morto, mas estranhamente luminoso e brilhante para ser matéria orgânica em decomposição. É um arbusto impostor, no lugar e na imagem, de contornos bem definidos, numa cena pontuada por vegetais lenhosos, genéricos, de contornos imprecisos e em baixa resolução (não consigo identificar as árvores); um sticker metálico plantado na foto. Nem ideia do porquê alguém incluiria uma árvore seca pareada com uma bandeira para fazer a guarda cerimoniosa de uma mesa destinada a assuntos dos mais sérios (já chego à mesa). Nasce capim por dentro da estrutura. Não fosse a imponência da bandeira e a presença das cadeiras seria possível confundi-la com um bebedouro abandonado e retomado por gramíneas nativas. É estranho que nasça capim ali: a estrutura está suspensa em uma plataforma amarela e seria necessário que parte dela apodrecesse para que o capim vingasse.

Não há qualquer indexação na imagem e os metadados retirados pela primeira análise forense são muito precários para sustentar qualquer hipótese mais concreta ― sei, por exemplo, que a imagem matriz foi feita antes de 2007, quando não havia sistema GPS nas câmeras, e que o 3D é posterior a 16. Não consigo saber ao certo se ela corresponde a um projeto de algo por ser feito ou uma reconstituição de algo que existiu e não existe mais. Mas estou mais inclinada ao segundo — como maquete 3D, a cena é um tanto estranha. Além da poltrona virada, as outras estão desarranjadas, como se acabassem de ter sido usadas e não houvesse tido tempo nem ninguém para arrumá-las. Por que alguém faria uma maquete de algo por ser construído com cadeiras desarrumadas é algo que não consigo entender. Além do mais, o capim ali no centro sugere abandono. Se for uma reconstituição, ela deve ter acontecido algum tempo depois da chegada da estrutura, tempo o suficiente para que tenha sido usada, abandonada e retomada pela entropia. Fato é que uma estrutura dessa num Brasil daquele viria, com certeza, com três arrumadeiras e um jardineiro, todos invisíveis. E sem um arbusto seco.

É possível que a imagem tenha sido produzida por uma das primeiras versões do google deep photo para reconstrução de memórias de usuários. Se for isso ― e as manchas em preto e magenta no estofado das cadeiras, típicas dos renders google daquela época, me fazem crer que sim ―, ela é anterior a 26, quando o app foi proibido.

Quanto à mesa, ela é similar a que fora utilizada no plenário do tribunal supremo, em Brasília, desde 1976. Talvez uma réplica.


As histórias dos retornados ainda são difíceis de entender. Nenhum deles viu diretamente a estrutura, mas muitos ouviram alguma história estranha relacionada a ela. Outros não se lembram de nada. O tempo ou os traumas sempre transformam testemunhas em esquecidos. Alguns falam que ela chegou depois da venda da única propriedade que ainda não havia sido destinada à reforma agrária; falam de grandes movimentações com caminhões de terra, pás escavadeiras, e muito ir e vir de gente.

Falam em “peregrinações”. Contam que em um momento começaram a aparecer peregrinos aos montes. Pessoas estranhas à região, adultos na faixa de 40 ou 50 anos, gente da cidade. Chegavam de carro, olhavam, tiravam fotos (onde estão essas fotos?) e iam embora antes do pôr do sol. Alguns ficavam por alguns dias, hospedados “nas antigas casas de colono”, as quais, me contaram, chamavam de “residência” ― e penso no sentido desse termo para aqueles que estavam acampados esperando um assentamento. Giram em torno desses residentes ou peregrinos as histórias mais estranhas. Participavam de rituais que podiam durar semanas e aos quais alguns dos assentados eram convidados a participar, mas não encontrei ninguém que o tenha feito. Também falam em teatro ao invés de ritual, e aparentemente havia dois tipos: os julgamentos e as terapias. Mas tudo começou com os julgamentos, dizem. Os convidados revezavam-se no papel de juiz, advogado e réu, e aparentemente gostavam em igual intensidade de serem réus, juízes e advogados de acusação. Apenas a posição de advogado de defesa era repelida por quase todos ― nesse caso pediam que os assentados fizessem esse papel. Os crimes pertenciam à classe inodora de adjetivos formados pelo sufixo ismo. Disseram-me que todos foram condenados e que havia certo prazer nisso. Os peregrinos sentiam que estavam cumprindo uma grande missão histórica em assumir a culpa. Acreditavam estar interrompendo o curso da modernidade e redimindo o futuro; falavam muito de futuro e que todo mundo se sentia “mártir” e “artesão do porvir” (usaram essa expressão mesmo). E também foi dito que eles se sentiam muito importantes, que amantes condenavam amantes; irmãos condenavam irmãos; irmãs, irmãs; e que os condenados aceitavam orgulhosamente sua pena. Em um momento não havia mais ninguém a ser julgado, todos haviam sido condenados.

Foi quando o tribunal virou um espaço terapêutico para, não conseguiam se lembrar bem o termo, desintoxicação, desprogramação ou descolonização do inconsciente. Tinham certeza sobre o “inconsciente”. Suspeito que quanto aos outros seja tudo a mesma coisa. Havia longos períodos de silêncio, em que todos precisavam se esforçar para escutar a mata, o rio, os animais e também os espíritos dos tombados. Dizem que eles gostavam desses momentos e que muitos ali escutavam sons e gritos “ancestrais” ou “magmáticos”. Falava-se em um enorme cemitério, mas eles, os retornados, não sabiam muito bem sobre isso nem entendiam quem poderia estar enterrado ali, se era bicho ou gente. Lembravam da primeira grande pandemia, claro, mas admirava-os que o cemitério pudesse ter algo a ver com aquelas mortes. Todo o Brasil tinha se convertido em um enorme cemitério na altura, e ninguém precisava peregrinar para o São Francisco, numa região razoavelmente subpovoada, onde nem o gado parecia gostar de pastar, para prestar qualquer tipo de honra aos mortos. Com certeza tinha mais corpo por enterrar lá de onde vinham do que aqui, disseram-me. Também havia momentos de muito falatório, parecidos com aula de uma língua estrangeira, só que em português. Os participantes retomavam as falas de acusação dos primeiros julgamentos e precisavam repeti-los até o esgotamento na frente dos outros participantes, os quais, de tempos em tempos, interrompiam o palestrante e pediam para que recomeçasse tudo. Primeiro eles achavam que era só um exercício de memorização, mas depois entenderam que era o contrário, que o esforço era para adaptar o texto, substituindo alguns termos específicos, jargões ou neologismos, por sinônimos ou expressões equivalentes. Uma palavra podia ser substituída por muitas outras ou poderia ser apresentada via exemplos. Às vezes os participantes descobriam que ela podia simplesmente ser suprimida, e esses momentos eram de quase alívio. Foi quando começaram a falar em “palavras muleta” e “palavras carimbo”, “palavras bandeiras” e “realidades ocas”. Não se lembram dos termos substituídos. Mas dizem que pareciam palavras novas, estranhas ou estrangeiras. Não eram palavras que usavam muito na região nem nos acampamentos, embora os peregrinos as usassem o tempo todo. Também dizem que havia uma diferença entre as “palavras muleta” e as “palavras carimbo”: as primeiras eram palavras bonitas, com muitos “eles” e “esses”, enunciadas com orgulho; as segundas eram fortes, com muitos “erres” e “dês” sequenciados, e eram quase sempre faladas em um tom de voz alto, muita segurança e pareciam acordar raiva em quem falava, mas também em quem ouvia. As palavras muletas viciavam e produziam esperança, e o temor era que parassem de fazer sentido; as palavras carimbo corriam o risco de bloquear o sentido e achatar a realidade (carimbo…). Sobre palavras bandeira não falaram mais, mas apostaria que eram parecidas com as carimbo.

Não consegui coletar muitas informações além disso. Mas penso que essa história possa ter algo a ver com os debates sobre jargões e neologismos, espessura da linguagem e da história, e moralização semântica ali dos anos 20 e 30. Naquela época falava-se muito sobre linguagem totalizante, literalidade.

Para além disso, nada foi dito sobre o porquê daquela tribuna nesse lugar. Nem como ela chegou aqui.


Deve ter algo a ver com a crise da justiça ali no início do século. A história é longa, mais ou menos conhecida, e ainda não sei se vale ir muito a fundo nela. Antes da unificação, o tribunal supremo era um dos três poderes do Brasil, e era o único que não tinha seus membros eleitos por voto direto. Acho que era uma espécie de conselho de sábios, com poderes e saberes para arbitrar sobre o que era justo quando ninguém mais parecia saber a quem recorrer. Eles também tinham a função de guardar a constituição; eram o que se chamava de “corte constituinte”. No entreditaduras, enquanto os sábios foram desconhecidos do povo, a justiça parecia um consenso, acreditava-se nela tanto quanto em seu atraso. As coisas começaram a mudar, parece, com a transmissão em rede aberta de alguns julgamentos de casos corrupção no alto escalão do poder executivo e legislativo e a transformação da justiça em espetáculo cotidiano televisionado ― uma espécie de novela. O tribunal, até então acostumado a uma plateia reduzida e seleta, em quem reconhecia e reafirmava sua própria sobriedade, distinção e altivez, viu-se de repente atuando em uma arena maior, para um público leigo, que compensava seu absoluto desinteresse pelos brios incompreensíveis e cafonas da retórica com decibéis, aplausos, um histrionismo cuja feiura ninguém negava mas que não deixava de ser sedutor. A performance da modéstia, da discrição e da transparência (não menos problemática ou performática que a seguinte, mas definitivamente distinta) com a qual direito e ciência moderna inventaram e sedimentaram suas figuras de autoridade e neutralidade cedeu ao narcisismo, ganhou em afetação e aproximou-se de um repertório popular povoado por super-heróis e justiceiros. Acrescente-se a isso todas as crises democráticas desde a chegada ao poder do Bolsonaro pai, com ora a corte sendo interpelada pelos outros poderes e pela sociedade civil a agir para manter a ordem democrática e conter os rompantes autoritários do regime, ora a corte agindo de modo autoritário e arbitrário para combater o mesmo autoritarismo que ela deseja conter, e foi o caos. Juízes e corte viram-se no centro de uma espiral de humores que ajudaram a alimentar: dormiam heróis e acordavam bandidos; dependendo do espectro político, dormiam golpistas e acordavam legalistas. Daí tem toda aquela história de gente pedindo cabeça de juiz; de gente defendendo acordão com juiz; gente defendendo fechamento do tribunal; até chegar ao assassinato do ministro Mendes e aos atentados falhados. Nada disso teve exatamente a ver com o fechamento do tribunal pouco tempo depois, mas não seria de se espantar que ali perto de 25 essa história estivesse no centro de qualquer reencenação de Deus e o Diabo na terra do Sol.

E, bom, isso já foi uma terra do sol, talvez de Deus. Mas por que reencenar essa história aqui, se é que se trata disso, não sei.

Mas não deixo de gostar da ideia de que um pedaço do cerrado de lá tenha pousado no cerrado daqui.


Olhando para o fundo da imagem, para a parte mais verde, tenho a sensação de que estamos próximos da zona alagada e do antigo leito do rio, e dentro do lote de prospecção de gás e petróleo adquirido e abandonado pela Petrobras no início do século. Mas o petróleo parece ser só mais uma das histórias de promessas de bonança abandonada da região, assim como o assentamento, esvaziado depois das enchentes de 24. Talvez a tribuna também.


Há um documento estranho no meio dos registros ligado à venda da parte da propriedade que não foi desapropriada. Ela foi vendida em 2020 para uma empresa de pecuária do Mato Grosso. Entre os documentos anexados ao processo de compra estava um pedido de financiamento ao Banco do Nordeste. Só que no lugar de planejamentos para exploração agrária ou agrícola, constava uma proposta para um museu de esculturas e land art, voltado para ações de educação ambiental. Há estudos para recuperação de mata nativa, croquis paisagísticos (muitos croquis) e uma espécie de plano diretor para um museu-parque, com ruas, pavilhões e estrutura de cabeamento para energia elétrica.

Não era incomum na época que herdeiros de grandes proprietários de terra tentassem dar um novo uso social para propriedades familiares através da arte. A elite, que no século anterior havia promovido um cosmopolitismo cultural cedendo coleções privadas ou fundando e apoiando o estabelecimento de museus, começou a se voltar para o interior, ou melhor, para suas fazendas no interior. A maioria dos projetos teve curta duração, era coordenada pelos próprios herdeiros, quase todos artistas ou diretamente envolvidos no campo da arte ― uma diferença dos projetos do século anterior, encabeçados por colecionadores ligados à indústria e que acreditavam no papel das elites (que sempre se manteriam elites) para a modernização do país. Não, essas novas gerações tomavam distância do discurso modernizador do progresso, reconheciam e acusavam suas violências e contradições, defendiam e desejavam dividir o futuro e o jogo do poder com novos sujeitos históricos, mas, por algum motivo, talvez por serem gerações intermediárias entre um projeto de futuro que não podia mais ser e um outro que não se sabia qual seria, acabavam voltando para a casa grande, renomeando-a como residência artística ou repaginando reforma agrária como agro-floresta.

Não os culpo. Mas talvez se culpassem muito. É a geração da minha mãe; uma geração melancólica. Voltaram o repúdio que tinham do passado de seus pais, avós, bisavós e tataravós contra si mesmos; puniam-se e julgavam-se uns aos outros e todos a si mesmos. Tinham-se em alta conta, para o bem e para o mal. Quando não eram culpados do passado, que não conseguiam enterrar nem chorar, queriam inventar o futuro, um novo futuro. Não viveram bem nem morreram bem. Não conseguiram fazer o luto do passado nem enterrar os mortos do presente, ativeram-se a contabilizá-los.


Talvez nada disso tenha existido. Talvez essa imagem seja um bug no sistema e não a memória de um usuário. Talvez esse usuário nunca tenha estado ali, talvez tenha ido apenas para remover aquela estrutura. Talvez a beira do São Francisco tenha sido só uma área de desmonte, um depósito de descarte para um mobiliário que serviu a um projeto utópico e não encontrou mais função desde o fechamento do tribunal. Talvez.

E eu aqui, falando da minha mãe, prisioneira deste tempo que não deveria ser o meu, buscando rastros de uma época de que não gosto, tentando escavar um pesadelo e me afundando nele.