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Resenha de República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso

Decór, Tom Vieira

Para as pessoas que, em outros estados ou países, leem o noticiário sobre o Rio de Janeiro, a cidade, mesmo maravilhosa, é certamente uma Sodoma ou uma Gomorra tropical. Tiroteios, balas perdidas, mortes de crianças em operações policiais, fuzis, milícia, narcotráfico, jogo do bicho, governadores presos um após o outro, empresários, deputados e membros do TCE envolvidos em corrupção. Pareceria que não há no Rio um único político ou policial honesto. Eles existem, sim, mas não capturam as manchetes.

Bruno Paes Manso convida o Rio a se deitar no divã para contar seus traumas infantis e suas histórias de violência, sempre vinculada à corrupção, pois a primeira é basicamente uma ferramenta para a segunda. Essas histórias podem nos ajudar a entender o presente não só do Rio, mas do Brasil, na medida em que um político que fez carreira no Rio de Janeiro, defendendo a morte dos criminosos, chegou em 2018 à presidência da República. O Brasil, nos alerta o autor, corre o risco de “se tornar uma enorme Rio das Pedras”, comunidade da Zona Oeste considerada um dos berços da milícia.

Bruno tem se dedicado há muitos anos a tentar responder uma pergunta simples: por que as pessoas apoiam a violência e a morte como mecanismo de controle social no Brasil? Por que as pessoas se matam tanto no país e legitimam a morte dos outros? Ele começou em São Paulo e continuou a indagação em outros lugares.

República das milícias pretende contar a história da violência no Rio nas últimas décadas, apresentando personagens centrais dessa tragédia e relatando com luxo de detalhes suas trajetórias. São histórias que puxam inúmeros fios que se entrecruzam, desde a repressão da ditadura ao assassinato da nossa companheira Marielle Franco, passando pelo surgimento dos grupos de extermínio, o poder dos bicheiros e a sua relação com políticos e policiais, o crescimento e a crise do varejo do narcotráfico, as UPPs ou a expansão das milícias. O foco é justamente a interseção desses fenômenos diversos a partir do percurso dos seus personagens. Entre todos os grupos criminosos, as milícias recebem justo destaque entre outras coisas por serem um fenômeno tipicamente carioca e porque elas surgem do coração do aparelho do Estado, o que as torna mais ameaçadoras. Embora as atuações das milícias tenham raízes que nasceram há muito tempo, o termo em si é relativamente novo e o fenômeno que representam tem se expandido significativamente nas duas últimas décadas até desenvolver um modelo que disputa a hegemonia com os outros grupos criminosos.

Bruno apresenta a singularidade de, como jornalista e cientista social ao mesmo tempo, usar registros de natureza diversa: pesquisas acadêmicas, relatos jornalísticos e, neste livro, também processos penais e documentos oficiais. Conta também com entrevistas confidenciais a alguns personagens que fazem parte da engrenagem da violência. É preciso coragem metodológica para abordar esse material, pois esses relatos de pessoas envolvidas na criminalidade costumam misturar mito e realidade, e as suas versões são sempre parciais, interessadas e suspeitas. O caso das pessoas acusadas inicialmente pela morte de Marielle é emblemático, pois nenhuma delas disse a verdade completa, mas cada revelação, mesmo parcial, fez avançar as investigações, tal como o livro descreve.

Se as fontes são diversas, a narrativa do autor é jornalística, accessível e pedagógica para qualquer leitor, misturando histórias pessoais com análises mais abrangentes. Quem desconhece o Rio, encontrará um relato fácil de ler e farta informação para tentar entender o que parece incompreensível. E mesmo o leitor carioca familiarizado com o assunto se deparará com detalhes que desconhecia. De fato, os detalhes são tantos e os meandros pessoais tão complexos que não raro é preciso voltar atrás na leitura para recuperar o histórico de um determinado indivíduo.

A maior contribuição do texto é trazer luz sobre o papel dos bicheiros por trás das outras redes criminosas, como o tráfico e, sobretudo, a milícia e os grupos de extermínio. Especificamente, mostra a vinculação dos bicheiros com os integrantes do chamado “escritório do crime”, grupo de matadores de aluguel de alto nível, cujos integrantes possuem também conexões com a milícia. Os acusados de serem os autores materiais da morte de Marielle são integrantes desse grupo. O nome “escritório do crime” exemplifica melhor do que nenhum outro a tragédia carioca, tragédia com poucos heróis. Os criminosos trabalham num “escritório” onde podem ser contratados entre nove da manhã e cinco da tarde, e a morte das pessoas por encomenda tornou-se uma atividade burocrática e eficiente, de dar inveja ao mesmíssimo Max Weber. Como deveria ser óbvio e como apontam as investigações, tal escritório só poderia existir com a cumplicidade de setores das polícias que têm como missão investigar os homicídios.

As conexões entre as diversas redes do crime organizado são esperadas, pois todas elas dependem da cumplicidade do Estado para funcionar. Há um fio que une o AK-47 da favela com o político que faz campanha nesse território e com o juiz que vende sentenças. O livro mostra as caras e as dinâmicas desses vínculos. Resta ainda a dúvida de se essas conexões entre os diversos tipos de crime organizado são o resultado natural da convivência nos mesmos espaços ou se, em algum momento, houve algum tipo de estratégia articulada entre eles. E o problema é que a palavra dos protagonistas não vale grande coisa sobre estes assuntos, pois há sempre uma intenção por trás dela.

O livro tem um certo tom etnográfico, quando o paulista Bruno adentra a floresta selvagem do Rio para conhecer suas feras, quase pedindo perdão pela sua origem paulista e pela falta de malandragem carioca, e faz o esforço de aprender as gírias locais e explicá-las. Dificilmente o leitor de fora do Rio encontrará outro trabalho sobre segurança pública fluminense tão didático quanto esse.

República das milícias contém outra pergunta implícita, que ninguém conseguiu responder ainda plenamente: qual é a relação do clã Bolsonaro com a morte de Marielle? A pergunta passa pelas milícias e pela simpatia que os Bolsonaro mostraram historicamente por elas. Por um lado, não há nenhuma prova penal de conexão da família presidencial com o crime e, na verdade, não faria sentido político que eles apadrinhassem um assassinato como esse. Por outro lado, os Bolsonaro condecoraram milicianos e policiais envolvidos em crimes, empregando familiares deles em seus gabinetes. O caldo de cultura em que Bolsonaro se criou é o mesmo em que nasceram as milícias, o “bandido bom é bandido morto” e a decomposição do Estado em que cada um se toma a (in)justiça pelas próprias mãos e pelas próprias armas. Esse tipo de pessoas odeia os direitos humanos e o feminismo, tudo o que Marielle simbolizava. Os deputados que melhor representavam o projeto bolsonarista quebraram uma placa com o nome dela, num gesto de violência simbólica extrema que nunca será esquecido. Assim, simbolicamente, a família presidencial encarna o inimigo frontal de Marielle e do seu legado, o que faz com que a pergunta citada retorne de forma recorrente.

Do ponto de vista prático, das políticas públicas, a tentativa de Bolsonaro de evitar investigar as mortes cometidas por policiais ― o chamado “excludente de ilicitude” ―, para assumir a versão policial automaticamente como verdadeira, é música aos ouvidos da milícia. Da mesma forma, a medida tomada pelo governador Witzel, eleito com o apoio do clã Bolsonaro, que aboliu a Secretaria de Segurança e devolveu a cada polícia o status de Secretaria de Estado, avança na direção de autonomizar as polícias e os policiais, algo que beneficia os setores criminosos dentro das corporações.

Não sabemos se a milícia conseguirá ou não moldar a República à sua imagem e semelhança, mas é claro que o contexto político atual favorece seus interesses. Ninguém que conheça minimamente o Rio de Janeiro tem a menor dúvida sobre qual foi o candidato presidencial em que os milicianos votaram em 2018.