Quando não houver sombra é meio-dia

Retrasados, Frederico Filippi
— Chegaram na América por engano, achavam que estavam na Índia…
— Engano de grandiosas consequências, do descobrimento da América, “nascia um novo mundo”. Fico imaginando o espanto de ver essa imensidão verde pela primeira vez.
— Dizem que as pessoas enlouqueciam na selva… A natureza enlouquece as pessoas, desorienta mesmo, provoca equívocos. Há uma sacanagem nisso que me interessa muito. Tem muita coisa oculta lá dentro. É como um mundo paralelo, invertido, como um rio na cheia que reflete a floresta ao contrário. Como um espantalho… parece, mas não é.
— Interessante essa ideia de desorientação, equívoco, confusão. Há também uma espécie de cegueira humana, uma incapacidade de compreensão… Nossa realidade é um universo simbólico coletivo, uma fantasia social.
— Eu penso que há um mal-entendido de que seria possível “destruir a natureza”, ou “dominá-la”. Ela não se rende, ela nos destrói antes de a destruirmos, transforma tudo, cresce em volta. Há uma certa arrogância na ideia de Antropoceno, o homem criou uma era para chamar de sua… Gosto do pensamento tentacular de Haraway, das interações interespécies, dos encontros criativos e das construções coletivas… Gosto quando ela fala em Chthuluceno: “Somos húmus, não Homo, nem Antropos; somos adubo, não pós-humanos”. Abaixo as loucuras da busca pela imortalidade! Somos húmus e ao húmus voltaremos.
— Por um mundo de Camilles, filhes do composto! Personagens de Haraway que habitam um novo tempo, humanos em simbiose com borboletas-monarca… E eu tô do lado de Potosí, “a ferida aberta do sistema colonial na América”.
— “Vale um Potosi”, dizia Quixote. Dizem que toda aquela prata foi parar na China. A América era um negócio europeu. Agora a corrida é pelo lítio, e, acredite se quiser, a Bolívia possui a maior concentração do planeta. É o delírio dos Trópicos.
— É o Princípio Potosí. É a pulsão de morte do sistema capitalista, formado sob os auspícios da religião e da ciência ocidental, sempre ávidas por colocar a natureza a serviço do homem. O mecanicismo, o universo-máquina… São “os comedores de terra”, diz Kopenawa. Em Potosí, “a montanha de veias de prata” é “comedora de gente”.
— E não há nada na tradição judaico-cristã-muçulmana que chegue perto da valorização da natureza na tradição dos povos ameríndios ou da tradição hindu-budista-jaina. “Submetei-a”, ordena o Criador no Gênesis. Na cosmovisão andina, a deidade máxima é a própria Natureza. Precisávamos mudar, ampliar a perspectiva.
— Precisávamos… Mas nossa relação “espontânea” com o mundo já é tão naturalizada, que sequer questionamos a ideologia delirante em que vivemos. Um delírio que sustenta e acoberta um sistema político-social suicida, marcado por noções hegemônicas insustentáveis e ultrapassadas de humanidade. Mas a história muda… Nenhum sistema é permanente, nunca foi.
— Sabia que Todorov relaciona a introdução da perspectiva à descoberta da América? As esculturas astecas, por exemplo, são trabalhadas de todos os lados, o espectador do objeto não é individualizado. Já a perspectiva linear europeia torna-se símbolo de um ponto de vista único.
— Isso me faz pensar no perspectivismo ameríndio, uma concepção de mundo que não reduz seus contextos a uma distinção ontológica entre natureza e cultura, que considera o espaço entre humanos e não humanos como um espaço socializado. A cultura como fundo comum de uma multiplicidade de naturezas que se desdobram dos corpos. Gosto quando Viveiros de Castro fala dos pronomes cosmológicos…
— São muitas relações… Tô relendo o Smithson agora, ele pensava, já nos anos 1960, sobre o artista como um agente capaz de propor uma dialética possível entre os discursos ecológicos e industriais, de cruzar esses discursos e quebrar a abstração do pensamento econômico, cego aos processos naturais. Ando pensando muito nisso…
— Bruno Latour aborda essa questão de maneira interessante quando escreve sobre o Teatro de Negociações. Em 2015, foi encenada uma peça de teatro em Paris como exercício para pensar um acordo global possível para a redução das mudanças climáticas. Ele fala, justamente, sobre o elo fascinante entre a arte, o princípio da simulação política e o da modelagem científica para trabalhar negociações de paz entre territórios em conflito. “A política é a arte do possível”, ele escreve, e diz que aprendeu mais com os atores improvisando do que com muitos textos teóricos.
— Modelos como ficção, ficção como exercício de imaginação… Você conhece o discurso do Guaicaipuro Cuatemoc, “A verdadeira dívida externa”? Ele cobra da Europa todo esse saque, segundo a própria lógica do Banco Central… Mas, sabe, eu fico mesmo pensando nos sistemas de orientação, nos equívocos da navegação… Na confusão como nosso mito fundador. Eu gosto da ideia de voltar a me orientar pelo Sol, o grande Deus das culturas ancestrais de nossas terras.
— Tata Inti… E foi justo em 1500, quando inventaram o primeiro relógio de bolso, que as pessoas passaram a não se mover mais pelo ritmo do Sol, mas pelo tique-taque contínuo, regular e exato dos relógios. Tempo e espaço se separaram, o tempo virou outra coisa. No mesmo ano que invadiram o Brasil… O próprio tempo é um dos principais artigos do mercado na lógica capitalista.
— Tem um relógio solar lindo em Jujuy, na Argentina, reza a lenda que ele marca a hora errada. O Sol deve marcar a hora errada nos trópicos. A América Latina está deslocada no tempo…
Recorte de diálogos realizados entre Frederico Filippi e Juliana Caffé, em 2020 e 2021.