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“Porta sempre aberta. Para o dia de uma nova era”: a “macintoxicação” de Augusto de Campos

english original

Canção noturna da baleia. Augusto de Campos

Em maio de 1992 — já faz trinta anos! — recebi uma carta de Augusto de Campos, cheia de entusiasmo, falando com detalhes sobre seu novo interesse pelo computador Macintosh e tudo o que a atividade digital poderia fazer por poetas e artistas:

Eu mesmo tenho uma pequena Macfamily “workstation” (computador, scanner e impressora) e estou ficando mais ou menos macintoxicado… Como você vê, estou cada dia mais envolvido com computadores. Na verdade, embora eu tenha certeza de que o conhecimento das novas tecnologias por si só não é garantia de boa arte, eu diria, invocando a bênção verbivocovisual de J[ames] J[oyce] (“Door always open. For a new era’s day”) que tenho o pressentimento do futuramento que — nessa pressão fin-de-siècle [do] presente — o futuro dos futurismos está aqui. Et tout le reste est littérature…

Meus ☀️☀️☀️ desejos,

Augusto

No fin de siècle da década de 1990, Augusto não poderia ter antecipado quão sombrias seriam as primeiras décadas do novo século, começando com o 11 de setembro de 2001 e culminando, em nosso próprio momento, no espectro da ditadura em ambos os nossos países. A tecnologia em si não é de fato “nenhuma garantia de boa arte”. Ainda assim… o imaginativo e inventivo Augusto se renova continuamente, trabalhando com todo o leque das novas mídias. Dos breves poemas concretos de Noigandres em 1953, aos Popcretos dos anos 1960 e a despoesia dos anos 1990, às surpreendentes performances — linguagem, música, filme, arte gráfica — dos anos 2000 e, mais recentemente, as belas miniaturas de tradução que ele chama de plaquettes, Augusto nunca deixou de inovar e olhar para o futuro.

Quero ilustrar a capacidade incrível que Augusto tem de se renovar analisando o que chamei de um texto “diferencial”, ou seja, um texto que se transforma de um meio ou gênero para outro, criando novas possibilidades semânticas. “Cidade” seria um exemplo, “Código” outro. Mas vejamos como o poema concreto minimalista de Augusto, “Canção noturna da baleia”,1 se tornou, mais de uma década após sua composição, o germe da peça visual-musical Call Me Moby, interpretada por Augusto com seu filho Cid Campos, inovador compositor-artista.2

Fishes Nachtgesang [“Canção noturna do peixe”], de Christian Morgenstern

“Canção noturna da baleia”, originalmente publicada em Despoesia, em 1994, alude ao famoso poema alemão Fishes Nachtgesang [“Canção noturna do peixe”], de Christian Morgenstern, alternando marcas de escansão de vogais longas e curtas, como na poesia latina e grega. O poema de Morgenstern é mimético: sua forma delineia o torso de um peixe, e as marcas de escansão já foram interpretadas como batimentos cardíacos, movimentos através da água etc.

A “canção noturna” de Augusto é bem diferente: ocupa uma única página quadrada e preta, com um grid formado por dezessete linhas horizontais, cada uma contendo 23 espaços. Em cada linha par (2, 4, …), os espaços contêm 23 m’s minúsculos de cor branca, enquanto nas nove linhas ímpares, começando com a linha 1, um conjunto de letras espaçadas formam palavras, incrustadas — e quase enterradas — em um mar de outros m’s brancos idênticos. As nove linhas de texto têm um total de 29 palavras consecutivas, com quebras de linha marcadas; as únicas palavras repetidas são “a” (“the”) e o pronome em primeira pessoa “me”.

À primeira vista, o grid geométrico de Augusto, que lembra os poemas conceituais de Carl Andre, parece um campo de m’s, muito econômico e mínimo. Musicalmente, o refrão visual de m’s cria um longo murmúrio — o pano de fundo contra o qual outros sons aparecem. Os m’s, como a última linha, que está em inglês, deixa claro, remetem a Moby Dick, a famosa baleia branca de Melville que Ahab, o capitão do navio, e sua tripulação estão caçando. “Call me moby”: o refrão de Augusto alinha “moby” com a letra “m” — “me” — e joga com a abertura do grande romance de Melville: “Trate-me por Ishmael. Há alguns anos — não importa quantos ao certo —, tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em especial que me interesse em terra firme, pensei em navegar um pouco e visitar o mundo das águas. É o meu jeito de afastar a melancolia e regular a circulação.”3

No romance, Ishmael (o nome no Antigo Testamento denota ilegitimidade) é o forasteiro por excelência, assim como Ahab, o desesperado caçador de baleias, representa o orgulho desmedido. Mas em seu texto, extraído do grid m, Augusto funde a história de Ahab com a história bíblica de Jonas e a baleia:

a brancura do branco
a negrura do negro
Rodchenko Malevich
o mar esquece
Jonas me conhece
só Ahab não soube
a noite que me coube
alvorece…

call me moby

the whiteness of white
the blackness of black
Rodchenko Malevich
the seas forget
Jonah does know me
yet Ahab’s not aware
of the night I must bear
dawn’s light everywhere

call me moby

A tradução em inglês é do próprio Augusto em um e-mail de 2018; observe que ele traduz as linhas cinco a oito muito livremente, de modo a replicar a rima do original. O poema de Augusto é uma estrofe de oito versos que emerge do mar de m’s, um pequeno poema enigmático com o esquema de rima aa(b)ccddc, seguido pelo refrão sem rima, “call me moby”. Em inglês, “moby” rima com “me” na linha 5 e o esquema de rima é um pouco diferente: abcdefffe.

O ritmo encantatório dessas linhas curtas, abruptas e fortemente marcadas invoca não a narrativa de Melville da caça às baleias, mas a dissecação, no quadragésimo segundo capítulo do romance, do significado da palavra branco. Em “A brancura da baleia” (“The Whiteness of the Whale”), o narrador Ishmael tenta explicar seu próprio medo irracional da baleia branca: a brancura é a “ausência visível de cor”, o “vazio estúpido” significa “o vazio sem coração da aniquilação”. Mas na versão de Augusto, a “brancura do branco” invoca não tanto terror, mas mistério, um mistério que ele encontra na relação com seu oposto, a negrura do negro. De fato, para Augusto a oposição entre branco e preto também tem uma dimensão estética: é, por exemplo, a relação de dois dos maiores artistas modernos, Rodchenko e Malevich. Rodchenko foi profundamente influenciado pelo famoso Quadrado negro de Malevich, de 1915. Mas ele logo trocaria a textura sensual e a profundidade “espiritualista” do Suprematismo de Malevich pela ênfase construtivista na materialidade da tinta, como no opaco “preto sobre preto” que expôs em Moscou em 1919, ao lado de cinco pinturas branco sobre branco de Malevich. E logo Rodchenko abandonou completamente a pintura “burguesa” pela nova arte da fotomontagem.

A questão da similaridade e da diferença, portanto, assombra o poema. Preto e branco, Rodchenko e Malevich e, então, Jonas contra Ahab. Em cada caso, as duas alternativas são necessárias: o profeta Jonas, tendo sido engolido por uma baleia, entende (“conhece”) a obsessão do poeta; Ahab não consegue: ele é o capitão do navio, mas um caçador de baleias fracassado. É o mar, entretanto, que esquece as coisas “boas” e as “más” que engoliu. Da mesma forma, diferentemente de Ahab ou Ishmael, o narrador de Augusto aceita a escuridão da noite como seu destino, enquanto olha para o amanhecer que se aproxima. Alvorece e, além disso, como a raiz do verbo é alvo, que também significa ponto de mira, a luz branca, longe de ser temida, é aqui o objetivo do poeta. O ciclo da natureza pode — e, afinal, deve — ser aceito em toda a sua estranheza. Daí a mudança abrupta para o inglês e a conclusão “Call me moby”. Eu sei, o poeta parece estar dizendo como é ser baleia.

Se Augusto tivesse colocado essas palavras em um breve poema linear, como digitei acima, seria uma espécie de lírica simbolista disjuntiva na tradição de Mallarmé. É o grid do poema original, junto com suas possibilidades sonoras, que o fazem ressoar. As palavras individuais, dos pronomes aos nomes próprios, têm o mesmo peso que os grupos contínuos de m’s brancos, de modo que mal as percebemos. Elas são trazidas pela maré, por assim dizer, e desaparecem novamente nas ondas do mar. No fim, o que resta é apenas um punhado de consoantes suaves e vogais abertas altamente sugestivas: moby.

“Canção noturna da baleia”: o canto minimalista da baleia, escrito por Augusto de Campos sob o signo de Morgenstern, Melville e Malevich — aí estão aqueles m’s de novo! — é um modelo do que Gertrude Stein, cuja poesia Augusto tão brilhantemente traduziu, chamou de “Using Everything”.4 Na poesia, lembra-nos Augusto, todo fonema e morfema, toda inscrição visual faz a diferença: não há, como é característico de Augusto, nenhum movimento desperdiçado, nenhum tapa-buraco. Lido em voz alta, seu Call Me Moby “pesca” 29 palavras na peneira geométrica em forma de grid jogada à água, palavras que a voz do poeta transforma em um redemoinho encantatório, culminando no comando dirigido ao público, repetido, mas curiosamente não resolvido: callmmmmmme-mmmmmmm-moby.

Agora, veja o que aconteceu quando Augusto, acompanhado de Cid, transformou “A canção noturna da baleia” numa performance “verbivocovisual”. Eu mesma assisti a uma apresentação de “Call Me Moby” no Festival Poetry is Risk [Poesia é Risco] no Museu de Arte Moderna de Nova York em 2012.5 E novamente em Budapeste, em 2016, quando Augusto e Cid a apresentaram no Festival Pannonius. No Moma, Augusto deu a seguinte introdução:

Quando Melville escreveu seu famoso Moby Dick, ele pensou que as baleias eram mudas. Hoje sabemos que são grandes cantoras. Me ocorreu fazer um poema do ponto de vista da baleia. O romance começa com as palavras do narrador sobrevivente: “Call me Ishmael”. Meu poema inverte suas palavras. É claro que aqui a baleia também é uma metáfora para o poeta, mas escrito mais do ponto de vista de Moby. E então temos, em Malevich, a brancura da pintura branca e a resposta negra de Rodchenko.

Apresentação de Call Me Moby no Festival Poetry is Risk [Poesia é Risco] no Museu de Arte Moderna de Nova York em 2012.

Os sons das baleias são cantados por Michiko Hirayaa. Eles criam um ruído de fundo minimalista contra o qual vemos e ouvimos Cid Campos dedilhando acordes em seu violão — acordes muito tonais e melódicos — enquanto Augusto canta os versos do poema como uma espécie de voice over para as imagens na tela — imagens de ondas azuis no oceano com corredeiras pesadas e, uma ou duas vezes, a forma branca do que parece ser uma baleia surgindo das ondas. A versão de Augusto para o inglês da “canção” é contraposta à versão em português de Cid em uma estrutura de pergunta e resposta. Enquanto isso, na tela, a água do oceano dá lugar ao grid de cubos brancos retangulares que rapidamente se transformam em m’s. Ou seriam ondas? Em seguida, os m’s desaparecem e fica o grid de cubos brancos (agora alternando com pequenas esferas e cilindros), que são novamente engolidos pelo oceano. E a peça culmina com Augusto e Cid alternadamente entoando “Call me Moby!”

Finda a canção principal, há um momento de silêncio e então Augusto canta a seguinte passagem da canção “It ain’t necessarily so” de Gershwin:

Oh Jonah, he lived in a whale
Oh Jonah, he lived in a whale
For he made his home in
That fish’s abdomen,
Oh Jonah, he lived in a whale.

É Jonas, não Ishmael, quem sabe o que é estar dentro da baleia, então a canção de Augusto é verdadeiramente “A canção da Baleia”, em todo o seu mistério e terror. O que começou em 1990 como uma despoesia — um grid minimalista e econômico, quase severo, cujas letras soletram as palavras que quase não conseguimos decifrar à primeira vista, torna-se, uma década depois, uma obra que funde música, cinema e poesia para dramatizar a dialética do preto e do branco, da noite e da madrugada, Ahab e Jonas, Ishmael e o próprio Augusto. Há, para retomar a citação de Augusto de Finnegans Wake, “a door always open. For a new era’s day”. Tout le reste, como ele também sabe, citando Mallarmé, est littérature.