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George Orwell e o anti-imperialismo na Inglaterra

Isabella C. Reiche

Em julho de 1939, apenas dois meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, George Orwell publicou um artigo notável na Adelphi, uma revista literária britânica de esquerda. Neste artigo, provocadoramente intitulado “Not Counting Niggers”, Orwell argumentou que dois temas que emergem conjuntamente no final da década de 1930, o “antifascismo” e a “defesa dos interesses britânicos”, se revelaram como sendo idênticos. A classe dominante britânica havia sido forçada, contra sua vontade, a adotar uma posição antinazista, e até os Comunistas estavam “agitando a Bandeira”. O país estava se apressando inexoravelmente para uma guerra contra o fascismo e a favor da “democracia”. No entanto, alguns políticos e intelectuais mantinham a esperança de paz. No artigo, Orwell prestou atenção especial ao recente livro de Clarence Streit, Union Now. Streit foi um jornalista americano que defendeu a federação de quinze das principais democracias do mundo ― incluindo os Estados Unidos, várias potências do Norte e da Europa Ocidental, e os Domínios do Império Britânico ― de modo a garantir a pacífica continuação da ordem mundial liberal. Para Orwell, que havia servido como policial imperial na Birmânia durante os anos 1920, isto cheirava a “hipocrisia e presunção”. Ele observou que “Sr. Streit juntou com frieza os enormes impérios britânico e francês ― em essência nada mais que mecanismos para explorar a mão de obra negra barata ― sob o título de democracias!”. A “cláusula velada” da proposta de Streit era “não contar os negros”; no que diz respeito ao imperialismo, tinha “se tornado o primeiro dever de um ‘bom antifascista’ mentir sobre isso e ajudar a mantê-lo em existência”. Orwell tristemente concluiu que “provavelmente nada nos salvará, exceto o surgimento, nos próximos dois anos, de um verdadeiro partido das massas, cujas primeiras promessas seriam recusar a guerra e corrigir a injustiça imperial. Mas se tal partido existe atualmente, é apenas como uma possibilidade, em poucos pequenos germes que se encontram aqui e ali em solo não irrigado”.

Orwell não identificou explicitamente estes “poucos pequenos germes”, mas um deles era sem dúvida o Independent Labour Party (ILP), o partido do qual Orwell era membro. O ILP foi fundado em 1893 com o objetivo de alcançar o socialismo por meios eleitorais. Mais tarde, juntou-se ao recém-formado Labour Party, mas se desvinculou do partido maior em 1932 e passou por uma virada revolucionária. No final dos anos 1930, o ILP, influenciado pelos crescentes movimentos pan-africanistas e anti-imperialistas, declarou que o imperialismo era um mal tão grande quanto o fascismo, e desafiou formas de antifascismo que não visavam simultaneamente derrubar o capitalismo e o imperialismo. Orwell e o ILP ocuparam um espaço particular na complexa tapeçaria britânica e internacional da esquerda nos anos anteriores à irrupção da Segunda Guerra Mundial. A União Soviética, sob o domínio de Stalin, considerou a ascensão do Partido Nazista como uma ameaça existencial. O Partido Comunista da Grã-Bretanha, seguindo a posição de Moscou, declarou em 1935 que iria buscar uma “Frente Popular” de socialistas, sociais-democratas, liberais e inclusive conservadores antipacifistas, a fim de se opor ao fascismo. Devido a este imperativo de formar alianças antifascistas que incluíam elementos burgueses, os comunistas suspenderam a conversa sobre a revolução socialista e anticolonial. A Frente Popular teve um sucesso limitado na Grã-Bretanha, mas os governos da Frente Popular chegaram ao poder no Chile, na França e na Espanha.

Durante a segunda metade da década de 1930, a esquerda foi dividida de acordo com a forma como suas várias facções conceituavam as relações engrenadas entre o capitalismo, o colonialismo e o fascismo. Os críticos da Frente Popular acreditavam ser fútil e hipócrita separar a luta contra o fascismo dessas lutas mais amplas. George Padmore, um marxista de Trinidad, foi um dos críticos mais vociferantes da estratégia. Padmore havia se unido ao movimento comunista enquanto vivia nos Estados Unidos durante a década de 1920. Ele impressionou imediatamente seus camaradas, e rapidamente foi recrutado para Moscou para se tornar uma das figuras principais nas tentativas da Internacional Comunista de organizar os trabalhadores negros na África e na diáspora africana. Ele ajudou a organizar a Conferência Internacional dos Trabalhadores Negros, realizada em Hamburgo em 1930, e logo depois se mudou para essa mesma cidade de modo a liderar o Comitê Sindical Internacional dos Trabalhadores Negros e editar sua revista, o Negro Worker. Dado seu compromisso com as causas anti-imperialistas, Padmore ficou horrorizado quando o Comintern começou a moderar este aspecto de seu trabalho. Ele rompeu com o movimento e mudou-se para Londres. Em seu livro de 1937, África e paz mundial, Padmore argumentou que o “Imperialismo ‘Democrático’ e o ‘Fascista’ são simplesmente ideologias intercambiáveis que correspondem às condições econômicas e políticas do capitalismo dentro de um determinado país, por um lado, e o grau em que a luta de classes se desenvolveu, por outro”. De maneira importante, ele não apenas sugeriu uma equivalência entre fascismo e colonialismo, como também sugeriu uma relação causal entre os dois. O fascismo foi, em parte, o resultado das frustrações das potências europeias que haviam perdido ou às quais havia sido negada a pilhagem colonial. Além disso, o colonialismo agiu como uma válvula de escape contra o fascismo em casa, mas também como um suporte ao capitalismo, e como a principal causa da guerra. Portanto, a luta contra o colonialismo e pelo socialismo foi central para as lutas contra o fascismo e a guerra.

Padmore formulou estas ideias como a figura central do movimento pan-africanista britânico. Ele fazia parte de um pequeno grupo de ativistas africanos e caribenhos baseados em Londres, que incluía Amy Ashwood Garvey, C.L.R. James, Chris Jones, Jomo Kenyatta, Ras Makonnen e I.T.A. Wallace-Johnson. Estes ativistas-intelectuais trabalharam juntos inicialmente no International African Friends of Ethiopia, fundado em 1935, e posteriormente no International African Service Bureau, fundado em 1937, e lideraram um pan-africanismo socialista no qual o anticolonialismo se ligou à solidariedade proletária global. Eles não eram membros formais do ILP, mas trabalharam em estreita colaboração com o partido. Em conjunto com membros afins como Arthur Ballard e Fenner Brockway, foram os principais responsáveis por moldar seu militante anti-imperialismo. Em 1938, The New Leader ― o jornal semanal do ILP, editado pela Brockway ― declarou que “uma das piores características da Política da Frente Popular defendida pelo Partido Comunista é a traição dos trabalhadores coloniais que ela envolve”. Embora provavelmente fossem apenas os socialistas mais inclinados à teoria os que lidaram com a complexa relação entre colonialismo e fascismo, postulada por pessoas como C.L.R. James e George Padmore, muitos mais poderiam ao menos reconhecer a hipocrisia de ignorar uma forma de governo autoritário racialmente estratificado (colonialismo) para se opor a uma forma diferente de governo autoritário racialmente estratificado (fascismo). Foi esta hipocrisia que Orwell, cuja política foi quase invariavelmente instruída pela indignação moral e não pela teoria marxista, tão incisivamente observou em “Not Counting Niggers”. Em setembro de 1938, Brockway, Orwell, Padmore e vários outros socialistas e pacifistas britânicos foram cosignatários de um manifesto intitulado “If War Comes, We Should Resist”, que em larga medida culpava a política imperialista do governo britânico pela atual crise. Para alcançar uma paz duradoura, “uma nova ordem mundial baseada na fraternidade e na justiça” teria que ser construída.

Enquanto lutava na Guerra Civil Espanhola de 1936–39, Orwell estivera particularmente interessado pela estratégia da Frente Popular. A estratégia não implicava apenas a cessação das atividades anticoloniais militantes ― envolvia também um compromisso mais fundamental com o capital. Para os socialistas revolucionários, o comunista que traiu a luta anticolonial em nome da Frente Popular traiu a revolução socialista na Europa pela mesma razão. Durante a greve geral francesa de 1936, o Partido Comunista Francês buscou uma resolução veloz entre os trabalhadores e o governo da Frente Popular, subjugando assim o potencial revolucionário da greve. Estas tendências contrarrevolucionárias se revelaram mais espetaculares durante a Guerra Civil Espanhola. Os comunistas argumentaram que a prioridade era a defesa da República Espanhola e que a questão da revolução socialista deveria ser adiada. Sobre este assunto, entraram em conflito com as organizações anarquistas espanholas e com o Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM), um partido quase trostkista que era uma filial internacional do ILP. Durante os Dias de Maio de 1937, forças comunistas e governamentais reprimiram brutalmente grupos revolucionários anarquistas e socialistas em Barcelona. Bob Smillie, um jovem membro do ILP que lutava ao lado do POUM, foi preso e enviado a uma prisão em Valência. Pouco tempo depois, Smillie morreu em circunstâncias suspeitas, pelas quais Orwell e o ILP culparam os Comunistas.

Orwell esteve em Barcelona durante os Dias de Maio, e nenhum outro evento teve um impacto tão profundo e duradouro em sua filosofia política. O anti-Stalinista Orwell que escreveu Animal Farm e 1984 nasceu em La Rambla. Ele havia viajado para a Espanha simplesmente para combater o fascismo, e se juntou ao POUM em vez das Brigadas Internacionais alinhadas com os Comunistas pelo acaso e a oportunidade, em vez do compromisso ideológico. Seus olhos logo se abriram para o facciosismo da esquerda europeia e para as tendências contrarrevolucionárias e autoritárias do stalinismo. Em seu clássico relato pessoal da guerra, Homenagem à Catalunha, Orwell descreveu o que ele havia testemunhado em Barcelona como “o antagonismo entre aqueles que desejavam que a revolução avançasse e aqueles que desejavam verificá-la ou impedi-la”. Suas simpatias foram com os primeiros, embora nunca tenha ficado totalmente convencido pelo programa político do POUM e do ILP.

Foi quando ainda estava se recuperando de sua experiência espanhola que Orwell se juntou ao ILP. Como escreveu no New Leader em junho de 1938, “as coisas que vi na Espanha trouxeram para casa o perigo fatal de um mero ‘antifascismo’ negativo. Uma vez que eu compreendi o essencial da situação na Espanha, percebi que o I.L.P. era o único partido britânico ao qual eu tinha vontade de me filiar ― e também o único partido ao qual eu poderia me filiar com pelo menos a certeza de que eu nunca seria conduzido pelo caminho da perdição em nome da democracia capitalista”. Neste contexto, ele adotou a corrente de anticolonialismo do partido que se encaixava tão bem com seu desprezo pela Frente Popular. De fato, a própria Guerra Civil Espanhola não poderia ser separada da questão do colonialismo. Muitos colonos do norte da África lutaram pelos nacionalistas de Francisco Franco, e assim atraíram a ira dos partidários da Frente Popular. Padmore interveio nestes debates em seu artigo “Porque os mouros ajudam Franco”, publicado no New Leader em maio de 1938. Ele argumentou que o governo republicano, que havia tentado “dar continuidade à política do imperialismo espanhol”, deveria, de fato, ser responsabilizado. Qualquer movimento socialista na Europa que não estendesse suas solidariedades aos povos coloniais não deveria esperar nada em troca.

Orwell canalizou o anti-imperialismo de Padmore e do ILP em “Not Counting Niggers”. Em seu romance de 1934, Burmese Days, e em seu ensaio de 1936, “Shooting an Elephant”, ambos inspirados por suas experiências pessoais na Birmânia, o anticolonialismo de Orwell se articulou principalmente por meio da exposição dos efeitos brutalizantes do colonialismo em seus executores. “Not Counting Niggers” não representou uma ruptura total com esses textos anticoloniais anteriores — o apelo de Orwell ainda era, no seu núcleo, moral e, ao contrário de seus camaradas, ele continuou mostrando um reconhecimento limitado do potencial revolucionário dos povos coloniais ―, mas em 1939 ele identificou a luta anticolonial como parte de um movimento socialista global de uma forma que seus trabalhos anteriores não tinham. Em sua conferência anual naquele ano, o ILP declarou que um dever imediato dos trabalhadores britânicos, mesmo em caso de guerra, era “auxiliar as organizações de trabalhadores coloniais em sua luta contra o Imperialismo, o Feudalismo e o Capitalismo”.

A filiação de Orwell ao ILP e seu flerte com o anti-imperialismo revolucionário foram de curta duração. Ele deixou o partido logo após a erupção da guerra em setembro de 1939, pois não podia mais se reconciliar com a posição antiguerra do ILP. Orwell não estava sozinho. Em 1941, o presidente do ILP, C.A. Smith, criticou “o míope ‘revolucionário’, que ‘não vê diferença’ entre o atual sistema alemão e o atual sistema social e político britânico”. Acusado de ignorar os trabalhadores coloniais, ele rebateu: “política e culturalmente (embora nem sempre economicamente), os africanos e indianos estariam em pior situação sob Hitler do que estão hoje”. Smith renunciou ao ILP logo depois e se juntou ao recém-formado Common Wealth Party.

O próprio Orwell expôs sua nova posição mais claramente em “The Lion and the Unicorn”, um ensaio publicado em 1941 no qual tentou esboçar como seria uma forma patriótica de socialismo Inglês. Ele argumentou que a classe dominante britânica era decadente, mas, ao contrário de seus vizinhos continentais, eles não eram propensos ao fascismo: “Por mais injusta que possa ser a organização da sociedade inglesa, ela não está de forma alguma dilacerada pela guerra de classes ou assombrada pela polícia secreta. O Império era pacífico como nenhuma área de tamanho comparável jamais foi. […] de um ponto de vista estritamente liberal e negativo, estar sob o jugo da classe dominante britânica tinha suas vantagens. Elas eram preferíveis aos homens verdadeiramente modernos, os nazistas e fascistas”. Devido a um profundo senso de solidariedade nacional, a Inglaterra era simplesmente “uma família com os membros errados no controle”. Em resposta, uma “revolução” era necessária. Por “revolução”, Orwell queria dizer “uma mudança fundamental no poder”, que podia acontecer “com ou sem derramamento de sangue” e não significava “a ditadura de uma única classe”. Qualquer um que pudesse “compreender as mudanças necessárias” poderia desempenhar um papel nesta “revolução”; a “revolução proletária” era, em concordância, “uma impossibilidade”. A militância de seus dias de ILP havia se dissipado rapidamente.

O apoio de Orwell ao esforço de guerra britânico significava, necessariamente, comprometer seu anti-imperialismo. Em agosto de 1941, Orwell juntou-se à BBC para transmitir propaganda britânica para a Índia, a fim de fortalecer o apoio ao esforço de guerra. Entretanto, Orwell em “The Lion and the Unicorn” reteve um grau de anti-imperialismo. Um programa de seis pontos incluía o “imediato status de domínio para a Índia, com poder para se separar quando a guerra acabar”; e a “formação de um Conselho Geral Imperial, no qual os povos de cor deveriam estar representados”. Parece razoável concluir que o anti-imperialismo de Orwell era contingente, e sua militância fugaz. Ele nunca abandonou totalmente seu paternalismo e, em larga medida, não foi capaz de reconhecer as grandes massas de povos coloniais como agentes históricos. No entanto, por um breve momento no final dos anos 30, ele esteve envolvido com a política revolucionária do Pan-Africanismo e do ILP. Seu ódio ao stalinismo e à Frente Popular permitiu-lhe rejeitar formas de antifascismo que impediram a liberdade colonial, mesmo que o antifascismo se tornasse sua principal preocupação política durante a Segunda Guerra Mundial, às custas das lutas anticoloniais. Ele criticou o imperialismo antes do final de 1930, e continuou a criticá-lo mesmo depois de abandonar sua posição antiguerra, mas sempre de forma parcial e condicional. O legado de Orwell continua a ser profundamente controvertido. Ao discutirmos Orwell hoje, devemos nos lembrar do alcance e complexidade de suas ideias políticas, incluindo suas contradições e limitações.