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Orwell, distopia e o século XXI

I. Orwell e distopia

Isabella C. Reiche

A contribuição de George Orwell para a nossa concepção do que é uma distopia é única e insuperável. Nineteen Eighty-Four e Animal Farm venderam cerca de 20 milhões de cópias, mais do que todo o resto das distopias já escritas juntas. Para muitos, a lamentável história de submissão de Winston Smith ao Big Brother constitui o modelo clássico para o gênero como tal. O indivíduo confronta o déspota todo-poderoso e perde. Quando pensamos em distopia, pensamos em Orwell.

Dito isso, parecia, desde a década de 1980, que o medo do totalitarismo estava diminuindo substancialmente e que as inquietações de Orwell poderiam finalmente ser colocadas de lado. Na era pós-stalinista, muitos afirmavam que a URSS não era mais totalitária, mas apenas autoritária. Os críticos às vezes ainda eram presos e expulsos, mas raramente assassinados. Depois do famoso discurso de Khrushchev denunciando o culto a Stalin, a liderança foi exercida mais coletivamente pelo Politburo e menos centrada em uma só pessoa. A URSS dificilmente tinha liberdade de expressão ou mecanismos democráticos em funcionamento. Mas a caricatura do retrato de Orwell não se adequava mais à realidade atual. Isso deslocou em certa medida o ímpeto da sátira distópica de meados do século XX.

O maior texto do período entre guerras, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932), que foca não o despotismo do poder bruto, mas a manipulação psicológica endêmica da sociedade capitalista, agora parecia ter se consolidado. No futuro, o despotismo brando da ditadura corporativa e um estilo de vida baseado no hedonismo consumista parecia a alternativa mais plausível à visão de Orwell. O próprio Huxley pensava que “no contexto de 1948, 1984 parecia terrivelmente convincente. Mas os tiranos, afinal, são mortais e as circunstâncias mudam. Desenvolvimentos recentes na Rússia e avanços recentes na ciência e tecnologia roubaram do livro de Orwell um pouco de sua macabra verossimilhança”.

No próprio ano de 1984, grande parte da aplicação de “Orwellian” era para sistemas de vigilância recém-introduzidos, notavelmente câmeras de circuito fechado de TV. Mas isso sugeria mais um Estado-Babá do que um stalinismo rastejante dentro do capitalismo. As angústias quanto à guerra nuclear, à IA e robôs, e à civilização das máquinas em geral, pareciam ultrapassar o foco mais político de Orwell. Quando a URSS e seus estados-satélites do Leste Europeu finalmente entraram em colapso entre 1989–91, essa profecia parecia mantida. O “fim da história” e o “fim da utopia” foram proclamados. O capitalismo e a democracia liberal pareciam triunfantes.

Podemos olhar para trás com ternura e saudade da ingenuidade desta época. A ditadura não terminou na Rússia, apenas mudou de mãos. O resultado foi uma maior exploração de seu povo do que aquela do período comunista, e o custo em mortes e diminuição da expectativa de vida por conta da transferência de ativos para uma elite criminosa foi considerável. Menos onipresente do que Stalin, o rosto de Vladimir Putin ainda assim nos encara em canecas, calendários e camisetas. E o uso de terrorismo e assassinato contra oponentes políticos está aumentando. O número de pessoas que vivem sob regimes ditatoriais aumentou significativamente desde 2000, com cerca de dois terços dos povos agora nesta categoria. Mas é o mais clássico dos temas orwellianos, a vigilância, o que talvez mais de perto desperte nossa percepção dos paralelos entre o presente e 1984.

II. Orwell e a vigilância hoje1

Se George Orwell chegasse à estação ferroviária de St. Pancras em Londres hoje, como tantos visitantes continentais fazem, ele teria de andar apenas alguns metros até King’s Cross, onde testemunharia com consternação e espanto a primeira experiência em tecnologia de reconhecimento facial sendo introduzida no Reino Unido. Essas câmeras, cujos algoritmos usam sensores 3D para medir o rosto, estão sendo contestadas, mas até agora foram usadas em várias ocasiões para repassar fotos à polícia. Muito mais alarmante, essas câmeras estão agora instaladas na China em bancos, hotéis e até banheiros públicos. Eles podem escolher um único rosto humano em um banco de dados de dois bilhões de imagens. Na China, eles também registram automaticamente infrações civis menores, como atravessar a rua quando o semáforo está vermelho, e depois penalizam o infrator, usando uma pontuação de “Crédito Social” que avalia a confiabilidade de cada pessoa. Essa pontuação agora está incluída em alguns perfis de namoro e pode levar as pessoas a perderem o emprego ou privá-las do transporte público. Aqueles com alta pontuação, no entanto, podem obter acesso mais rápido a viagens ao exterior ou descontos em contas. (Os fãs do brilhante episódio “Nosedive” de Black Mirror reconhecerão o cenário imediatamente.) A polícia chinesa também usa óculos de sol de reconhecimento facial para identificar suspeitos. O projeto “Sharp Eyes”, do qual esses componentes fazem parte, visa vincular todas as formas de dados em um único banco de dados, o “Police Cloud”, que incluirá registros médicos, transações com cartão de crédito e muito mais. Este é o Big Data com força total e veio para ficar.

“Orwelliano”? Ou muito pior? O dispositivo imaginário chamado Telescreen que fica nos apartamentos dos membros do Partido em Nineteen Eighty-Four, que provavelmente foi inspirado pela câmera do chefe observando os trabalhadores no chão da fábrica em Tempos Modernos de Charlie Chaplin, parece, em comparação, completamente amador. O Big Data faz o Big Brother parecer os Keystone Cops, mesmo que os exercícios matinais obrigatórios ainda não façam parte de suas atribuições. Embora outros países ainda não tenham seguido os movimentos da China nessa direção, essa tecnologia também é quase imparável. Na Grã-Bretanha, as câmeras CCTV são onipresentes há cerca de trinta anos, e pouca consternação pública foi expressa a respeito delas, embora se diga que é possível cruzar Londres sem estar fora da vista da CCTV. Mas a tendência atual é muito mais ameaçadora e provavelmente muito mais usada do que foi relatado. Certamente terá um efeito assustador sobre o direito de manifestação e protesto, particularmente em conjunção com uma maior repressão estatal da atividade de oposição. E não há, no momento, nenhuma restrição à retenção de imagens faciais.

A ameaça, no entanto, está menos na tecnologia em si do que no movimento crescente em direção a políticas autoritárias em muitos países. Nas mãos erradas, essas tecnologias fornecerão meios de controle político com os quais o NKVD e a KGB só poderiam sonhar. Em breve, também, os novos sistemas de vigilância serão ligados a tecnologias “inteligentes” em geladeiras, TVs, telefones, sistemas de aquecimento e muitos outros dispositivos. Sabemos que muitos desses dispositivos já podem ser operados remotamente: algumas TVs podem assistir você, alguns telefones podem ouvir sua conversa e capturar imagens mesmo quando estão desligados. Siri e Alexa certamente podem dizer a seus mestres muito sobre você. Não estamos longe, então ― talvez menos de dez anos ― de estar potencialmente sob vigilância total, por praticamente toda a nossa vida, e com a miniaturização de drones, em qualquer lugar e em todos os lugares. Alguém que queira saber, talvez grandes corporações mais do que Estado, verá o que você está lendo, onde e quando se desloca, o que você diz e para quem, e terá uma boa ideia do que você está pensando e por quê.

Vivendo sob “democracias liberais”, podemos supor que não há nenhum problema real aqui. Ainda somos “livres”, não somos? Mas tais governos, com suas constituições arcaicas e estranhas restrições judiciais, estão sob ameaça por toda parte. Nenhum fator deu às vendas do melhor trabalho de Orwell um impulso maior do que a eleição de Donald Trump em 2016 ― o romance disparou para o topo da lista de best-sellers do New York Times. Quem mais senão o Grande Mentiroso, que agora tem alguma competição mais perto de casa, poderia dar um novo alento a “Novilíngua” e “Orwelliano”, quando a reescrita da história com “Alternative Facts” já se desencadeava com a disputa quanto ao número de pessoas comparecendo à inauguração de Trump? Mesmo aqueles para quem a Guerra Fria era uma história distante agora reconheciam as sementes de uma ordem racista e protofascista sendo plantadas. Três anos depois, a colheita já começa a parecer abundante, com grupos populistas de direita e anti-imigrantes mais ousados do que nunca.

Então voltamos a Orwell agora para entender quais paralelos esses cenários de pesadelo tiveram no século XX. Ler Nineteen Eighty-Four hoje, como todos deveríamos fazer, é ser inexoravelmente atraído para o mundo do medo que o totalitarismo do século XX, e particularmente o stalinismo, criou. Orwell foi um dos mais poderosos estilistas da prosa em língua inglesa. Morrendo de tuberculose, atormentado pelo pensamento de que agentes soviéticos queriam matá-lo (ele manteve uma pistola carregada por perto durante os meses na isolada ilha escocesa de Jura, onde o romance foi concluído), deprimido com a possibilidade de uma guerra nuclear, a perspectiva sombria de Orwell permeia todos os aspectos do trabalho. Sentimos que Winston Smith, o anti-herói de Orwell, está perdido no momento em que começa a escrever um diário. Quando seu caso com Julia começa, e no esconderijo secreto acima da loja de antiguidades do Sr. Charrington, sentimos o nó se apertar ao redor dele. A cada passo, ele parece uma figura condenada, e sua prisão e confissão são quase um alívio. Sentimos a dor da tortura, principalmente o medo ― do próprio Orwell ― de ratos, o terror de que esta seja a manobra definitiva que quebrará a vontade de Winston. O indivíduo contra o sistema, o indivíduo contra o grupo (como o próprio Orwell finalmente entendeu o problema de como manter a liberdade intelectual), continuam sendo temas grandes e duradouros muito depois do fim da Guerra Fria.

III. Orwell amanhã: natureza

Deixe-me seguir então para o meu segundo tema, um tanto relacionado com o anterior, ou melhor, outra recomendação para manter Orwell perto de nós. Refiro-me à sua relação com a natureza e sua relutância em abraçar grande parte do mundo moderno. Orwell não se encaixava bem no que hoje se denomina com frequência e de forma desdenhosa como elite liberal metropolitana. Como seu famoso predecessor socialista Robert Blatchford, que também tentou casar o socialismo com o patriotismo, Orwell detestava o luxo excessivo. Ele não gostava de multidões, frequentemente as temia, e muitas vezes desprezava a cultura urbana. Mais à vontade no campo do que na cidade, e a despeito de suas sátiras sobre o uso de sandálias e os excessos nudistas, em muitos aspectos Orwell defendia aquele retorno à “vida simples” que atraíra uma geração de reformadores da década de 1890 em diante.2 Sempre que podia, fugia dos excessos burgueses e do congestionamento da cidade. Ele também tinha uma profunda e similar suspeita com relação a muitas formas modernas de diversão e entretenimento, e uma aversão permanente pelas inovações mais extremas da modernidade, incluindo alimentos processados, propagandas distrativas semelhantes a música ambiente, estímulos e ruído, e muito do que consideramos inevitável ou essencial na vida urbana moderna. Como Thoreau, John Stuart Mill e alguns outros antecessores ilustres, Orwell apreciava a solidão e, especialmente, o retiro rural. Como escreve George Woodcock, seus prazeres nunca foram maiores do que quando estava cercado por uma “simplicidade árcade”.3 Ele nunca ficava tão feliz quanto quando mexia com plantas, jardins e animais. Sabemos, entretanto, que isso refletia uma atitude mais profunda em relação à vida, e é isso que gostaria de destacar aqui.

Muito da ambivalência de Orwell em relação à modernidade veio de sua reação forte, negativa e quase instintiva ao que ele via como a americanização da vida cotidiana na Grã-Bretanha do final da década de 1920 em diante, que ele considerava a variante mais extrema da ideia moderna de progresso. Já em seu relato selvagem sobre o colonialismo britânico nos Dias na Birmânia (1935), encontramos esta visão do futuro: “Tudo isso irá embora ― florestas, mosteiros, templos, todos desaparecerão. E, em vez disso, vilas rosa a cinquenta metros de distância… com todos os gramofones tocando a mesma melodia. E todas as florestas aplainadas, mastigadas em polpa de madeira para o News of the World ou serradas em caixas de gramofone”.4 A polpa da madeira hoje pode muito bem ser o Daily Mail ― um jornal que Orwell detestava por sua propaganda pró-fascista ―, como os tempos mudaram! The Road to Wigan Pier (1937) adverte que o físico das pessoas está em declínio por causa da “técnica industrial moderna que fornece substitutos baratos para tudo”, acrescentando que “podemos descobrir a longo prazo que a comida enlatada é uma arma mais mortal do que a metralhadora”.5 E em Coming Up for Air (1939) encontramos a passagem maravilhosa, quando o narrador entra em um milk-bar:

Há uma espécie de atmosfera nesses lugares que me deixa para baixo. Tudo liso e brilhante e aerodinâmico; espelhos, esmalte e prato de cromo em qualquer direção para a qual você olhe. Tudo gasto com a decoração e nada com a comida. Nenhuma comida de verdade. Apenas listas de coisas com nomes americanos, uma espécie de coisa fantasma que você não pode provar e nem sequer pode acreditar que existe… Uma espécie de propaganda flutuando pelo ar, misturada com o barulho do rádio, como se a comida não importasse, o conforto não importasse, nada importasse a não ser a maciez e o brilho e a aerodinâmica.6

Isso era “progresso”, e Orwell não gostou. O que ele gostava era de comida de verdade, de preferência cultivada localmente. O que ele gostava era o ar do campo e a sensação do solo. Ele amava árvores, plantas e animais, e gostava de trabalhar com as mãos. Ele reconheceu, quase inconscientemente, que o “progresso” estava destruindo a natureza, e o detestou. Ele também reconheceu que muito do que se passava sob o nome de “felicidade” ― o mantra invocado por todos os modernos ― era uma pálida imitação disso.

Deixe-me ilustrar isso recorrendo a uma passagem escrita em 1946 condenando “a ideia de prazer do homem civilizado moderno”. Aqui Orwell perguntou:

O que é o homem? Quais são suas necessidades? Como ele pode se expressar melhor? Pode-se descobrir que simplesmente ter o poder de evitar o trabalho e viver a vida toda, desde o nascimento até a morte, com luz elétrica e ao som de música enlatada não é um motivo para fazer isso. O homem precisa de calor, sociedade, lazer, conforto e segurança: ele também precisa de solidão, trabalho criativo e admiração. Se ele reconhecesse isso, poderia usar os produtos da ciência e do industrialismo de forma eclética, aplicando sempre o mesmo teste: isso me torna mais ou menos humano? Ele então aprenderia que a maior felicidade não consiste em relaxar, descansar, jogar pôquer, beber e fazer amor ao mesmo tempo. E o horror instintivo que todas as pessoas sensíveis sentem com relação à mecanização progressiva da vida não seria visto como um mero arcaísmo sentimental, mas como totalmente justificado. Pois o homem só permanece humano preservando grandes manchas de simplicidade em sua vida, enquanto a tendência de muitas invenções modernas ― em particular o filme, o rádio e o avião ― é enfraquecer sua consciência, embotar sua curiosidade e, em geral, torná-lo mais semelhante a um animal.7

A relevância dessa visão hoje deveria ser óbvia para todos nós. A distopia totalitária de Nineteen Eighty-Four pode muito bem ser um componente do cenário que enfrentamos no século XXI. Mas o que vai nos destruir é um colapso ambiental catastrófico que agora surge no horizonte. A maioria das pessoas aqui sem dúvida estará ciente de que a narrativa reconfortante sobre um “aquecimento global” ou “mudança climática”, “sustentável” de 1,5 a 2 °C, que dominou o discurso internacional sobre o meio ambiente desde o início da década de 1990 até mais ou menos um ano atrás, agora foi totalmente superado. Em vez disso, enfrentamos um cenário de juízo final de cerca de 4–5 °C já em 2050, e uma perspectiva apocalíptica de um planeta queimando, com a resultante aniquilação da maioria das espécies na Terra, incluindo a nossa própria. Nossa maior e mais urgente distopia é a catástrofe ambiental que se aproxima de nós. Com um aquecimento global ligeiramente superior a 1 °C, estamos perdendo os polos, as geleiras e a tundra siberiana. Perdemos cerca de 60% de todas as espécies da Terra nos últimos setenta anos. Isso implica a necessidade de uma ação imediata, direta e extremamente radical para evitar um colapso ambiental catastrófico. Em particular, o uso de combustível fóssil deve ser praticamente eliminado em apenas alguns anos e substituído por fontes de energia renováveis.

No entanto, a nova narrativa vai além disso, e é aqui que Orwell se prova mais uma vez uma inspiração. Orwell não era exatamente um antimodernista automático como às vezes é retratado. Mas ele certamente não acreditava que todo “progresso” fosse inevitavelmente uma coisa boa, e a destruição da natureza o alarmava excessivamente. Isso estava associado à sua preocupação de que a cultura moderna resultasse em pouco valor humano genuíno. Orwell reconheceu que um componente fundamental do valor da vida não está na estimulação pulsante das máquinas, pelas quais somos muito propensos a ser hipnotizados, mas nos ritmos e nas delícias da natureza. Isso combinava tanto com seus instintos quanto com sua profissão. Para escrever livros, ele nos lembra em The Road to Wigan Pier, “você não precisa apenas de conforto e solidão… você também precisa de paz de espírito”.8 O retiro em Jura não foi apenas uma fuga dos chekistas e da bomba atômica. Ele também refletia um amor profundo pela natureza e um movimento que hoje associamos à frase “simplicidade voluntária”. Precisamos muito desse sentimento hoje. Aqui também, então, está outro Orwell que podemos admirar, um Orwell para nossos tempos e um Orwell que podemos celebrar, mesmo que a premissa de recuar para a natureza não retenha mais a validade que tinha para Orwell.

Então, finalmente, um momento de transmissão partidária: se Orwell estivesse vivo hoje, ele estaria nas ruas com nossos camaradas da Extinction Rebellion. Esta é a grande causa de nossos tempos, e ele não teria vacilado em seu dever de apoiá-la.