3

O sonho dos sonháticos

Comentário à Prosa com Marina Silva

A vida é mais antiga que nosso corpo, Manuela Eichner

Durante as eleições de 2014, os eleitores de Marina se intitulavam “sonháticos”, termo cunhado pela própria senadora em seu discurso de desfiliação do Partido Verde, em 2011. Na ocasião, Marina disse: “Não é hora de ser pragmático, é hora de ser sonhático e de agir pelos nossos sonhos”. Esse sonho desperto era o de uma política renovada, que colocaria um ponto final à polarização entre PT e PSDB, pavimentando uma terceira via com toques ecológicos. Tratava-se, já como em sua candidatura à presidência em 2010, de uma proposta político-eleitoral aliada a um projeto idealizado de sociedade ― articulada a uma retórica contrária às estruturas partidárias habituais. Considerando que a política brasileira padece de um personalismo acentuado, com iniciativas idiossincráticas que ficam quase todas pelo meio do caminho, parecia salutar que tivéssemos uma candidata com visão ampla sobre o futuro. Entretanto, nesse encontro desarmonioso entre uma plataforma eleitoral e uma perspectiva utópica, o primeiro termo parece ter sido eclipsado. O pragmatismo necessário em qualquer campanha ― pragmatismo que não se confunde com vale-tudo ― deu lugar a um wishful thinking.

Se em sentido político ele ganha conotação utópica, em psicanálise o sonho pode ser entendido como acesso privilegiado ao inconsciente. Os conteúdos rejeitados pelo Eu, forçado a lidar com o princípio de realidade, ficam estocados para além da consciência. Nessa definição, o sonho dos sonháticos tem uma outra dimensão: trabalha com um material recalcado que surge da sua impotência real, sendo sintomático das dificuldades que encontra em se articular como perspectiva concreta. A política em seu sentido prático clama por uma mediação social, cuja primazia parece ter sido escamoteada pelo sonho de Marina e de seus apoiadores.

Tem-se, digamos, uma política sem meios. Idealiza-se um belo futuro, mas ignorando que para que ele se realize é preciso endosso eleitoral. Pode-se ficar admirado pela capacidade que Marina tem em pintar um futuro diverso, tolerante e ecológico, mas qual o apoio para que esse projeto saia do papel, ou melhor, dos sonhos? Em pleitos passados, ele teria que se basear naqueles eleitores que não estavam mais dispostos a votar nem no PSDB, nem no PT. De partida, já seria uma plataforma difícil, pois ela teria que satisfazer simultaneamente um eleitorado de centro-direita e um de centro-esquerda. Sem sucesso, Marina tentou compatibilizar uma bandeira historicamente vinculada à esquerda libertária (ecologismo) com um plano econômico que contemporiza com a centro-direita (um liberalismo social).

De onde partiu esse imbróglio ideológico? Não estamos em desacordo com parte do diagnóstico de Marina. De fato, é possível falar sobre o mundo contemporâneo em termos de uma crise de civilização. Como ela bem enfatiza, essa crise de civilização envolve, especialmente, mas não só, uma crise ecológica. Mas o passo seguinte, que ela não dá, seria evidenciar o principal fator dessa crise ecológica planetária: o funcionamento a plenos vapores de um sistema econômico que até agora se provou incompatível com o equilíbrio ambiental. Isso significa que o capitalismo é antiecológico por definição? Ou ele poderia ser capaz de resolver o problema? Pode ser que sim, mas dentro de uma perspectiva muito limitada: uma pseudossolução que consiste em privilegiar uma classe minoritária às expensas e, em detrimento, do restante da humanidade. Essa seria a ecologia de direita: um programa sustentável mas que mantenha, e talvez aprofunde, a desigualdade social. Isso parece estar na cabeça de parte da elite econômica: salvar o planeta sem salvar os pobres.

É essa a solução que Marina oferece? A julgar por suas declarações, não nos parece que sua visão utópica seja a de uma ecologia para os que podem pagar por ela. Então o que seria seu programa social de uma ecologia à esquerda? Marina se define como parte de um “sustentabilismo progressista”, mas não fica claro qual é o conteúdo ideológico desse “progressismo”. Nesse campo da ecologia de esquerda, Marina acerta em criticar as insuficiências, excessos e contradições do ideário desenvolvimentista, especialmente em relação às pautas ambientais e indígenas, mas é ilusório imaginar um programa ecológico robusto que possa ser efetivado sem que haja enfrentamento claro do neoliberalismo. Se a ecologia não quer ser apenas o mote publicitário de empresas supostamente amigas do meio-ambiente, é preciso ir além: não basta mobilizar um tipo de humanismo abstrato, que se recusa a falar em termos de classe e de estruturas sociais. Em suma, seu plano econômico de sua plataforma não parece romper com as diretrizes básicas do neoliberalismo e, dessa forma, está em conflito profundo com seu projeto social-ecológico.

O problema não se encerra aí. Além de uma diretriz econômica pouco condizente com o valor central de seu projeto político, a trajetória errática de Marina durante e após a campanha de 2014 parece ter sido central para inviabilizar sua candidatura. O que explica que de 2014 para 2018 sua popularidade tenha se esvanecido? Marina diz que as pessoas nem sempre escolhem o melhor. Ora, a resposta é tanto verdadeira quanto insatisfatória. O que houve foi um grande erro de cálculo por parte da senadora. Contra os candidatos tradicionais, Marina foi capaz de falar verdades tanto para o PT, quanto para o PSDB. Foi derrotada no pleito presidencial, mas com artimanhas desleais de seus adversários, marcadamente do então marqueteiro de Dilma. Marina poderia ter saído engrandecida, mas, no segundo turno, decidiu apoiar Aécio Neves, no que seria um primeiro aceno para a centro-direita e uma possível entrada num eventual governo do PSDB. A estratégia se revelou equivocada: não só Aécio perdeu, como, posteriormente, o então senador ficou completamente desmoralizado com o avanço da Operação Lava-Jato.

Marina ainda repetiu a dose. Já durante o segundo mandato de Dilma, a senadora resolveu, no último minuto, embarcar na canoa furada do impeachment. Ela esclarece que era a favor da cassação da chapa, mas à época a escolha era ser a favor ou contra o impeachment. A decisão foi controversa, mesmo dentro de seu partido. Além da debandada de nomes importantes, esse movimento parece ter sido central para esvaziar sua candidatura. Pois o programa ecológico de Marina, e mesmo sua retórica política, parecem ter mais apelo para um eleitorado de centro-esquerda do que para a direita. Como seria possível que ela apoiasse Aécio, depois o impeachment e mesmo assim saísse ilesa diante desses eleitores? Depois de queimar pontes com o eleitorado tradicional de esquerda, Marina teria que disputar os votos de eleitores psdbistas desiludidos. Acontece que quase todos eles foram parar nos braços de Bolsonaro ― como se sabe, liberais assustados se parecem bastante com fascistas. A situação ficou insustentável porque Marina não parece de esquerda aos eleitores de esquerda e não parece de direita aos eleitores de direita ― hoje, contudo, o centro é um lugar inexistente.

Para finalizar, Marina e seus apoiadores parecem lidar mal com a ideia da forma-partido. São críticos da lógica dos partidos tradicionais, que, com o tempo, se engessaram e se tornaram agremiações comandadas ou por líderes incontestes ou por uma cúpula burocrática, dificultando qualquer processo de democracia interna. Ora, essa observação é válida em muitos sentidos. No entanto, saltar dessa crítica ao formato atual da organização interna para uma crítica da forma-partido enquanto tal é temerário. Por trás de uma retórica favorável à horizontalidade, o que se encontra é uma organização tão verticalizada e personalista quanto as outras, criando hierarquias não explicitadas. Os partidos se renovam, lentamente, mas se renovam. Já a ojeriza à lógica partidária, em vez de ajudar nessa renovação, acaba reforçando antigos vícios e debilitando ainda mais as possibilidades eleitorais de qualquer projeto político. Agora, Marina aparece, novamente, como nome isolado, sem uma legenda forte o suficiente para servir de base a uma possível candidatura.

Se ela não participar das próximas eleições, perde-se uma grande figura na defesa do meio-ambiente e dos povos indígenas. Se ela participar, corre o risco de amargar o destino recente da terceira via (e que parece ser o inglório futuro de um outro candidato): levantar uma bandeira de esquerda para uma base de direita. Como projeto utópico, o ideário de Marina ainda mantém seu potencial crítico, e é indispensável que alguém com sua autoridade e biografia possa levar adiante esse conjunto de pautas. Mas, se não equacionar suas contradições, o sonho sonhático continuará sendo apenas a simbolização de um impossível.