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Nem forte nem fraco, violento: o poder de Bolsonaro

Batalha, Renata Pedrosa

Há pelo menos uma premissa para a compreensão da ascensão do ex-deputado Jair Messias Bolsonaro ao poder, qual seja, a de que sua candidatura só se expandiu para além dos tradicionais 15% a 20% de votos usualmente destinados à extrema direita em eleições ― com os quais ele fez uma tão longa quanto inexpressiva carreira como parlamentar carioca ― por ter conquistado adesões à direita e ao centro, no mercado, nos quartéis e na grande imprensa, apresentando-se como alternativa única ao eleitorado que repudiava o governo do PT e a sua associação com crimes de corrupção exaustivamente investigados pela finada Lava-Jato. Assim, a candidatura de Bolsonaro nasce do paradoxo de, autoidentificando-se como antissistema, passar a receber o apoio de todo o sistema de poder estabelecido.

O resumo simplificado tem como objetivo informar o argumento principal: nem uma dessas forças que aportaram apoio ao Bolsonaro depois, aderiram e avalizaram sua vitória, formam o núcleo duro de poder do atual governo. Todos os que pretendiam vir a tutelar um homem que, é evidente, não teria as condições mínimas necessárias para o exercício das responsabilidades esperadas do cargo que ocupa, já estão fora do jogo (à exceção do ministro Paulo Guedes, que novamente tem manifestado, aqui e ali, intenção de deixar o cargo se “não puder trabalhar”).

Jamais se saberá o que seria o governo se o mandato não houvesse sido atravessado pela pandemia que abala o mundo desde dezembro de 2019 e o Brasil a partir de fevereiro de 2020. Só se sabe que hoje o país experimenta uma catástrofe em todos os setores de combate à covid-19: a política internacional deixou o Brasil de fora dos grandes acordos de vacinação; a falta de capacidade logística de distribuição de insumos básicos, como oxigênio; a defesa permanente de um falso “tratamento precoce”, ao qual o presidente é um garoto-propaganda; a contestação de medidas preventivas; a ausência de políticas econômicas mais robustas que apoiem a população mais vulnerável. Tudo isso nos trouxe, em pouco mais de um ano, ao indizível recorde de número de casos e de mortes diárias.

É a partir desse enquadramento que estão sendo analisados os fatos políticos mais recentes, na seguinte sequência. Segunda-feira, 8 de março, o ministro do STF Edson Fachin anula as condenações impostas a Lula, tornando-o, até segunda ordem, elegível em 2022. Domingo, 21 de março, a Carta dos Banqueiros e dos Economistas cobra do governo medidas contra a pandemia. Lançada com cerca de quinhentas assinaturas de muitas pessoas que fizeram ― e a rigor, algumas ainda fazem ― parte do grupo que aderiu ao candidato Bolsonaro, o documento apontava um desembarque do assim chamado mercado, que com a mão esquerda pedia medidas sanitárias e com a mão direita reiterava a cantilena das reformas econômicas. De uma movimentação que parecia reivindicar providências pró-vacina saiu um jantar que reunirá, no Jardim Europa, na cidade de São Paulo, 25 grandes empresários cujas reivindicações são a compra de vacinas pelo setor privado, as reformas e a manutenção do teto de gastos. 1

A este grupo do poder econômico foram se juntando Câmara e Senado, hoje denominados “Centrão”, seja lá o que isso signifique no contexto político atual. No dia 23 de março, o STF concluiu, em julgamento, que o ex-juiz e ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, foi parcial nas acusações que levaram o ex-presidente Lula para a prisão. No mesmo dia, Bolsonaro fez um pronunciamento à nação em que contradisse tudo que fez até agora em relação à covid-19. Aparentemente pouco convencido, no dia seguinte, 24 de março, o presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira (PP-AL) ― eleito com apoio do chefe do Executivo ―, fez um discurso considerado “duro”, instando por uma correção de rumos no combate à pandemia, e mencionando a possibilidade de “remédios amargos, talvez fatais”, a serem adotados pelo Parlamento no caso de suas recomendações não serem seguidas.

Na segunda-feira, 29 de março, foi o dia que o presidente parecia mais enfraquecido: demitiu o chanceler Ernesto Araújo ― um dos responsáveis pelo crescente isolamento político do país ―, um dos poucos ministros restantes da formação original e enfrentou uma crise militar que vem sendo considerada a maior desde 1977. A saída do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa e, com ele, de todos os comandantes das Forças Armadas, pode ser entendida como um sinal de fraqueza do governo, que perderia, aí, um de seus principais pontos de apoio. Mas a nomeação do general Braga Netto para o ministério da Defesa e a nomeação do delegado federal Anderson Torres para o ministério da Justiça, cuja prioridade é reaproximar o presidente da “bancada da bala”, emitiram sinais inversos. Torres é o primeiro ministro da Justiça ligado à segurança pública e não ao Judiciário e sua chegada ao cargo coincide com o crescente interesse do Executivo em fazer tramitar um projeto de lei que confere autonomia às Polícias Militares, que passariam a responder diretamente à presidência da República,2 indicam outra interpretação possível. Mais uma vez, Bolsonaro teria metabolizado a crise a seu favor, numa demonstração inconteste de que não pretende se deixar tutelar.

Na quarta-feira, 31 de março, seis políticos considerados “presidenciáveis” — Ciro Gomes (PDT, candidato derrotado em 2018), Eduardo Leite (PSDB, governador do Rio Grande do Sul), João Amoedo (Novo, presidente do partido), João Doria (PSDB, governador de São Paulo) e Luiz Henrique Mandetta (DEM, ex-ministro da Saúde), além do apresentador de televisão Luciano Huck (sem partido) —, divulgaram um “manifesto pela consciência democrática”, indicando sua resistência a eventuais aventuras golpistas do presidente.


Os fatos aqui resumidos estão sendo interpretados por muitos analistas políticos e econômicos como a prova final de que Bolsonaro tornou-se um presidente fraco, isolado e “acuado pelo Centrão” (wishful thinking de editorial do Estadão). Essa hipótese nos leva de volta à premissa inicial: as forças que se uniram a Bolsonaro por interesses próprios precisam afirmar que Bolsonaro está fraco e isolado — eis uma das interpretações mais correntes na grande imprensa, que também parte do pressuposto que esse campo de apoio inicial hoje foi dissolvido. O discurso da fraqueza do presidente interessa a todos que tinham a intenção de que o governo fosse uma cotutela, restando ao tutelado um papel ora decorativo, ora preocupado com multas de trânsito e radares nas estradas, mas nunca de exercício de poder de fato.

A turma de “as instituições estão funcionando normalmente” segue apostando que Bolsonaro é tutelável, mesmo depois de todas as demonstrações inequívocas de que o presidente age como se fosse aceitar ser tutelado e, a cada vez que parece pretender obedecer, encontra mais um modo de concentrar poder, tendo a seu lado uma parcela de apoiadores dispostos a questionar as razões históricas que fizeram e fazem com que o poder esteja concentrado na mão de alguns donos e não de outros. Não é trivial o modo bolsonarista de desprezar ― e ele precisa desprezar para se sustentar como antissistema ― todas as forças aqui identificadas como “sistema”. Necessita, para isso, fortalecer o grupo autoidentificado como antissistema. Em vez da Fiesp, as redes de varejo, algumas emergentes, como Havan, outras já estabelecidas, como Riachuelo ou Centauro. Em vez de sindicatos organizados, caminhoneiros conectados em grupos de Whatsapp. Em vez da CNBB, miríades de denominações evangélicas enfronhadas na vida cotidiana das periferias. Em vez de intelectuais e universidades, os olavistas e os cursos de filosofia no Youtube. Em vez da cultura, a anticultura que não gasta dinheiro da Lei Rouanet (tanta coisa aconteceu que já esquecemos essa campanha). Em vez da segurança pública, mais armas para a população civil. Em vez das Forças Armadas, a PM.

Importante observar que o sistema estaria topando o jogo se em vez de cloroquina houvesse vacina e em vez de recessão econômica e desemprego houvesse o que aparece como fórmula mágica ― reformas + teto de gastos = retomada dos negócios ― mas é, na prática, menos oxigênio econômico para quem precisa voltar a respirar. Não custa lembrar que a crise mais recente se estabeleceu depois das tentativas da iniciativa privada de driblar as regras da compra de vacinas para si e para os seus, movimento que segue célere. O quadro se mostra tão ou mais imprevisível como nunca ― e inspira, junto aos editores de Rosa, interpretações divergentes, que a seguir oferecemos ao leitor.

I.

Por tudo isso, parece plausível afirmar que Bolsonaro não é fraco nem acuado e que, a cada pressão do sistema, faz um jogo de cena que funciona para conquistar um naco a mais de poder. Nesse falso toma lá dá cá, ele dá pouco ou quase nada e toma muito. Um exemplo seria a sua viagem a Chapecó (SC), onde foi prestigiar um prefeito que garante ter zerado os casos de covid-19 com a adesão ao tratamento precoce que Bolsonaro, num permanente exercício ilegal da medicina, vem prescrevendo aos seus seguidores. O presidente segue se apresentando, nas suas falas à população, principalmente nas transmissões ao vivo às noites de quinta-feira, como independente ou mesmo como vítima do sistema. São momentos em que, na relação direta com o eleitorado, tenta reequilibrar o jogo, buscando provar que o sistema ainda depende dele.

É assim que Bolsonaro tem governado a partir da ideia de “ruim comigo, pior sem mim”, o que poderia até ter dado certo durante quatro anos não fosse a pandemia ter atravessado o seu caminho. A seu favor, Bolsonaro usa o fato de que, por óbvio, aqueles que o apoiaram em nome da máxima “as instituições estão funcionando normalmente” não podem abandonar o modo democrático de fazer política, sob pena de serem acusados de golpe. Bolsonaro aposta que, no campo institucional, a batalha estará sempre ganha para ele, que despreza as instituições e segue fazendo o que quer, sustentado inclusive no escárnio com a grande imprensa que tanto despreza (e que demonstra todos os dias a sua fraqueza ao esbravejar contra um presidente cuja base popular de apoio é imune ao que diz o noticiário).

Quanto maior o naco de poder que o sistema que o apoiou lhe pretende retirar, mais fraco e, ao mesmo tempo, mais violento Bolsonaro fica, de tal modo que a cada ganho aparente do sistema equivale um ganho efetivo ao antissistema. Bolsonaro só é um presidente enfraquecido a partir da perspectiva dos grupos tradicionais de poder. Capaz de arregimentar outros núcleos de sustentação, é um presidente isolado e ao mesmo tempo fortalecido, comandante de um projeto explícito de permanência no poder para além de 2022, custe o que custar. Até agora, já custou a vida de quase 400 mil pessoas.

II.

Cada vez mais a base de apoio de Bolsonaro diminui, aproximando-se dos 15–20% de eleitores de sua base mais radical. Os ataques que periodicamente assesta contra a ordem constitucional, dirigidos à militância golpista, alienam-no dos setores que, até há pouco, toleravam seus despautérios em nome da agenda neoliberal. Parlamentares do Centrão, cúpula militar, banqueiros manifestam seu esgotamento perante a irresponsabilidade presidencial. O ressurgimento de Lula no cenário da sucessão parece impor uma súbita corrida no sentido de articular um candidato capaz de derrotá-lo em 2022; o cálculo, aqui, parece ser o de que Bolsonaro já teria dificuldades em servir a esse objetivo. Não parece descartável, teoricamente, a ideia de que forças de centro e direita se encaminhem no sentido de facilitar o impeachment do presidente ― evitando, desse modo, um segundo turno em que Bolsonaro seria a única opção eleitoralmente viável para afastar o fantasma lulista. Não faltam, como sempre repetido neste espaço, argumentos em favor do afastamento do presidente; os interesses do “mercado”, da fisiologia, dos governadores e do centro-direita dificilmente parecem dispostos a acreditar, mais uma vez, na possibilidade de domesticar a fera selvagem que convidaram para sua sala de visitas.