3

O mundo em colapso: reverberações contemporâneas da obra de George Orwell

É claro que a invasão da literatura pela política estava fadada a acontecer […] porque fomentamos uma espécie de compunção que nossos antepassados não tiveram, uma consciência da enorme injustiça e do sofrimento do mundo, e um sentimento de culpa, de que deveríamos estar fazendo alguma coisa a respeito, o que impossibilita uma atitude puramente estética em relação à vida

— George Orwell1

Isabella C. Reiche

George Orwell construiu com tenacidade uma obra singular, através de uma escrita que mudou abruptamente a maneira como interpretamos o mundo. São livros que possuem uma força renovadora, arejada pelos detalhes da vida comum, da materialidade das relações. Seu olhar narrativo coberto de lirismo se mistura à desigualdade de um sistema que opera apenas para alguns. Por meio de cenas, descrições e construção de personagens, notamos as contradições que assolam a matéria social, quando transpostas e ressignificadas na forma literária.

Podemos observar um interesse recorrente pela sua obra, em especial quando borbulham controvérsias no campo político. Essa procura gira em torno principalmente dos livros que compõem sua fase de cunho satírico,2 Animal Farm e 1984. Esse retorno ao autor nos ajuda a refletir sobre a potência da literatura como ferramenta interpretativa das contradições sociais. Orwell engendra uma rede narrativa pungente, talvez por conta disso muitos tentem encaixá-lo na figura de um historiador e analista social nos momentos em que seu olhar se volta para os fatos e o passado, ou como um jornalista ao descrever as rachaduras do sistema. Para além disso, Orwell possuía um ímpeto que o acompanhara desde a tenra juventude: desvendar o mundo à sua volta por meio da literatura.

Estamos diante de um autor que, ao olhar criticamente para o seu presente, deixou uma marca na história da literatura, transformando, por meio da arte, questões que dilaceravam a sociedade dos anos 1940. Ao examinar esse olhar crítico, percebe-se que há na literatura de Orwell uma riqueza formal, buscando revelar o que permanece oculto pelo manto do ideário dominante. Sua estética transita pelo relato autobiográfico, passa pela resenha literária, pelos artigos de revista, culmina em descrições naturalistas, experimenta o olhar atento em diários domésticos, chegando ao destino derradeiro: a elaboração da fábula satírica e do romance distópico. O autor experimenta no plano estético processos distintos, provenientes das tensões políticas de sua época.

Seja quando Orwell trata da rebelião de animais em uma granja ou dos atos contestadores de um homem oprimido por um regime totalitário, existem alguns motivos por esse fascínio pela narrativa do autor. Cabe dividi-los em dois patamares: linguagem e ideologia. No primeiro caso, constatamos uma das características principais da escrita do autor: seu estilo é direto e objetivo, com um propósito de alcançar todos. “Não se deve escrever algo que o trabalhador não consiga entender”,3 afirmara o próprio escritor num jantar com amigos e familiares, em meados de 1945. Sua prosa acessível muitas vezes é confundida com uma técnica simples, menor, seca e desprovida de requinte, por não recorrer a um vocabulário repleto de frases adornadas. Todavia, o que aparentemente parece despretensioso na forma revela-se um procedimento complexo, que disseca as normas sociais ao seu redor, com um olhar analítico feroz. O requinte de Orwell está em se fazer entender.

Ao priorizar a literatura crítica de fácil compreensão,4 chegamos ao segundo ponto que fomenta o interesse quase hipnótico por sua obra: o de cunho ideológico. Tanto o debate progressista quanto o conservador se apropriam de sua escrita. Os exemplos desse fenômeno são diversos, seja em momentos de ascensão de políticos de extrema direita, seja na conturbada questão da privacidade em meio à digitalização das relações sociais, sua escrita se faz onipresente.

Esse fenômeno ocorre porque a literatura de Orwell atravessou o tempo e ainda reverbera em nossa atualidade. Quando nos deparamos com a vida de Winston Smith é como se estivéssemos lendo sobre nossa própria condição, dezenas de anos depois. A sátira elaborada em 1984 é tecida por fios que ainda nos sufocam e, principalmente, dos quais parecemos não conseguir nos desvencilhar. Através do narrador somos conduzidos a um mundo longínquo. Mas o futuro remoto da Londres de 1984 não permaneceu apenas na esfera da imaginação. Ao tirar do lugar algumas peças-chave no quebra-cabeça, o narrador mostra seu conhecimento da realidade social que investiga e observa atentamente. O paralelo entre passado, presente e futuro, que opera em sua última publicação, ocorre por conta da qualidade literária do autor e pela perpetuação da lógica social que essa narrativa descreve. Pautadas pela desigualdade e exploração, as normas vigentes do capitalismo da década de 1940 se perpetuaram. Ainda nos encontramos rendidos ao mesmo conjunto de contradições, mantendo de pé uma lógica que opera para alguns às custas de uma vasta maioria. Com o passar do tempo, esse meio de vida se apresenta disfarçado, com uma nova aparência, mantendo nítida a ilusão de que essa forma de viver em sociedade é imutável.

1984 é uma das obras nas quais Orwell procurou deliberadamente “transformar a escrita política em arte”,5 recorrendo à crítica como ferramenta literária. O narrador revisita a manutenção do privilégio daqueles que se escondem sob a institucionalidade, a opulência ou os desmandos de um líder totalitário cuja existência é simultaneamente incerta e onipresente em todo o território: “— O Grande Irmão existe? — Claro que existe. O Partido existe. O Grande Irmão é a personificação do Partido. — Ele existe da mesma maneira como eu existo? — Você não existe — respondeu O’Brien.”6

O romance transcorre dentro de um dos centros hegemônicos do capital, a Inglaterra dos anos 1940, mas o foco narrativo se concentra no que ocorre às margens dessa sociedade. Parece que a saída está mais perto das beiradas do que do núcleo fumegante, onde parece impossível se desvencilhar dos fragmentos de privilégios, tão caros a um processo enraizado na norma burguesa. Justamente nas bordas, nos bairros dos proletas, sedentos por um meio de vida mais justo, decente, nosso protagonista constata o lampejo de esperança, trazendo à tona os interesses em comum de todos aqueles que são explorados. Como horizonte possível, ele traça uma rota alternativa — uma nova maneira de viver em sociedade.

Ao escancarar as rachaduras de um sistema que desmorona, nos deparamos com um feixe de luz. Mesmo em meio à podridão daqueles que exploram e buscam desesperadamente o lucro para si, surge no horizonte a possibilidade de traçar um caminho diferente: “Se havia esperança, ela precisava estar nos proletas, porque só nessas massas desprezadas, oitenta e cinco por cento da população da Oceania, poderia ser gerada a força para destruir o Partido”.7 O olhar de Orwell caminha em direção a uma sociedade capaz de abandonar as velhas normas, empoeiradas nas prateleiras da burguesia, que se manifesta de diversas maneiras quando demonstra o seu poder diante dos explorados. A distinção e superioridade hegemônica tomam novas tonalidades no universo de Orwell, na imagem de uma burocracia totalitária, da perseguição, do controle como ferramenta de manutenção da desigualdade, simbolizando, em patamar formal, contradições sistêmicas da sociedade inglesa. Na Oceania, essa elite aparece representada em figuras como O’Brien, o membro de elite do Partido e torturador de Winston, e na própria figura do líder totalitário Big Brother.

Contudo, é preciso salientar que uma distopia não é uma ferramenta profética. O narrador não pretendeu adivinhar o futuro; trata-se de um procedimento mais profundo e elaborado. Estamos diante de um recurso estético sofisticado que procura criticar contradições do momento histórico em que está inserido, por meio da sátira, da paródia e da alegoria.

Através de uma visão distópica, o narrador expõe processos históricos rentes à ebulição social da época, seja por meio da centralização totalitária do poder, da vigilância tecnológica estatal e, particularmente, da tentativa frustrada do protagonista de romper na esfera individual com um sistema que assola o coletivo. A jornada de Winston Smith em 1984 projeta em um futuro longínquo tensões que pertencem à época em que o livro foi criado, em 1948: “[…] os homens não eram iguais […] distinções de classe não apenas eram inevitáveis, como desejáveis. A desigualdade era o preço da civilização”.8

As reverberações de imagens presentes no mundo de Winston constituem um comentário afiado também sobre o panorama inglês do pós-guerra. Isso pode ser observado por meio do foco narrativo, em que enredo de 1984 desloca imagens sobre o socialismo soviético de Stalin, de caráter totalitário, ditatorial e opressor, para a Inglaterra, um país desenvolvido nos moldes capitalistas. Assim, o narrador constrói uma crítica acerca da distorção do socialismo de viés stalinista e a maneira como isso ecoa no panorama político inglês, predominantemente na ala totalitária do Partido Comunista da Grã-Bretanha. Observamos no romance um comentário sobre a situação da Inglaterra no pós-guerra, considerando a potencialidade de um país com uma base operária tão forte, industrialmente desenvolvido e capitalista, capaz de desenvolver, de fato, uma experiência socialista na Europa.

Além da questão do totalitarismo soviético, o romance de Orwell critica satiricamente a burocratização da política britânica, aqui simbolizada pela organização contraditória dos ministérios do Ingsoc — o Ministério da Verdade é responsável pela manipulação de notícias, literatura e entretenimento; o Ministério da Paz controla supostas guerras entre os continentes; o Ministério do Amor mantém a ordem e as leis e o Ministério da Fartura é responsável pela economia, que é escassa e pobre em variedade de mercadorias. A gênese do totalitarismo se encontra principalmente em exemplos como Stalin e Hitler. Mas, para Orwell, é impossível não observar as influências totalitárias remanescentes em países como a Inglaterra.

O Partido do Big Brother constitui a classe dominante, a elite burocrática que reforça seu poder pela violência, escassez e controle irrestrito da população. Nesse paralelo satírico, o narrador comenta as medidas tomadas pelo sistema soviético, que, deturpado, tornou-se uma ditadura. Apesar de ter sido possível remover a presença capitalista na União Soviética, assim como acontece na sociedade distópica em 1984, o fenômeno de desigualdade e exploração típico do capital persiste, caracterizando-se pela exploração dos proletas e direcionando o poder e as riquezas para os poucos membros de uma casta de dominação política dentro do Estado. Ou seja, o Partido do Big Brother, opera como uma alegoria da traição revolucionária e como esses fenômenos repercutiram na atmosfera inglesa, principalmente na estratificação e nos expedientes burocráticos e enfadonhos que perpassam o cotidiano de Winston.

Em outras palavras, a atmosfera de opressão em que transitam os personagens de 1984 teve bases históricas bastante reais e palpáveis. O totalitarismo soviético se organizou por meio de uma ditadura burocrática do regime de partido único. E este tipo de organização influenciou dezenas de Partidos Comunistas espalhados pelo mundo, contribuindo para que o conceito de comunismo fosse distorcido e organizado de outra maneira, pautado por contradições. A ditadura desenvolvida em torno burocracia foi a grande máquina pela qual operou o stalinismo. Isto é, mesmo após a aparente eliminação do capitalismo, ainda há uma subordinação ao regime por meio da burocracia. E assim como era no capitalismo, a concentração de poder e controle estão nas mãos de um seleto grupo, não há uma democratização das tomadas de decisões.

Como Orwell era um observador preciso dos acontecimentos à sua volta, não foi difícil perceber que esta distorção política se espalhava para além das fronteiras russas, disseminando o conceito corrompido de socialismo e da organização comunista, sendo assim o pano de fundo principal de seus escritos, tanto fictícios, quanto ensaísticos. O romance 1984 é apenas uma organização estética bastante elaborada de seu trabalho estabelecido desde meados dos anos 1930. Foi por meio do formato de um romance distópico que o autor escolheu mobilizar diversas ferramentas críticas, uma das principais sendo o modo pelo qual seus personagens se comportam no dentro dele: “sempre haverá a embriaguez do poder, aumentando de maneira constante e se tornando cada vez mais sutil. […] Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando em um rosto humano… para sempre”.9

Assim, quando vemos o culto ao líder Big Brother, as técnicas de tortura no Ministério do Amor, a manipulação de informações no Ministério da Verdade e a onipresença silenciosa das teletelas, trata-se, singularmente, de um mecanismo refinado em que a literatura comenta, critica e ressignifica a matéria social. As contradições sociais desse determinado momento histórico são reordenadas simbolicamente no romance. E, acima de tudo, o distanciamento temporal engendrado pela estética distópica permite que essas imagens dialoguem com diversos sintomas sociais vigentes: “então a mentira entrava para a história e se tornava verdade. ‘Quem controla o passado’, dizia o slogan do Partido, ‘controla o futuro: quem controla o presente, controla o passado’”.10

Um dos recursos fundamentais da distopia se desenvolve no comentário analítico de aspectos contraditórios da vida em sociedade, transposta em ambientes esteticamente distantes: “A um quilômetro de distância, o Ministério da Verdade, […] erguia-se imponente, vasto e branco, sobre a paisagem coberta de fuligem. Essa […] era Londres, a cidade principal da Pista de Pouso 1, a terceira província mais populosa da Oceania.”11 Assim, a narrativa oferece perspectivas acerca de práticas políticas que, em um primeiro momento, poderiam passar despercebidas, ou seriam consideradas inevitáveis.

O que parece irreal, e até mesmo extremo, em enredos distópicos se mostra historicamente preciso,12 retratando as mais assombrosas perversões da mentalidade dominante. Encaramos uma sociedade doentia, que se mantém, século após século, à custa da estratificação social: “o Partido ensinava que os proletas eram naturalmente inferiores e deveriam ser dominados, como animais, […] desde que eles continuassem trabalhando e procriando, […] deixados por conta própria”.13

Por meio dessa divisão, baseada na expropriação, o olhar de Orwell abrange problemáticas que corroíam o sistema em meio às tensões que se desenvolveriam na Guerra Fria. A polarização de potências globais, a manipulação das informações e, sobretudo, o uso do avanço tecnológico que assolaram o século XX aparecem satirizados no romance. Em um período conturbado, começa a tomar forma o capital desenvolvido em torno da vigilância como ferramenta tecnológica, que opera a favor das ideias que sustentam a lógica da desigualdade.

A tecnologia passa a ser o principal meio para executar o novo modo de operação do sistema. Na década de 1950 tem início a militarização do espaço, por meio de agências governamentais como a Darpa (Defence Advanced Research Projects Agency). Essa agência desenvolveu satélites que, conectados à rede mundial de computadores, começaram a tecer uma fina e invisível teia que permite a vigilância e o controle de informações. Aos poucos o avanço industrial passa a operar a favor da lógica dominante, monitorando os dados dos cidadãos: “Não tinha como adivinhar com que frequência […] a Polícia do Pensar se conectava a um aparelho individual. Dava até para imaginar que vigiavam todo mundo o tempo todo […] podiam conectar-se ao aparelho de alguém quando quisessem.”14

As tensões que afligem Winston Smith, o intelectual que manipula e forja informações, permanecem próximas àquelas que assolam trabalhadores cerebrais contemporâneos. O narrador domina com profundidade o funcionamento das normas sancionadas, desvelando ao longo do enredo as tessituras de uma estrutura desequilibrada, que se perpetua e entra em conflito bélico. Ao desmoronar, esse sistema colapsa sobre as costas daqueles despossuídos, a fim de manter sua lógica exploratória e injusta, “ao longo da história, uma luta que, em linhas gerais, é a mesma e recorrente”.15

O sistema se ergue após uma ruína iminente, moldando-se em uma nova feição, em “diferentes formas históricas de capital: mercantil, agrário, industrial, monopolista, financeiro, imperial e daí por diante”.16 A constante mutação da ordem evidencia “a mudança como a própria essência desse sistema”,17 de maneira que podemos compreender esse ciclo de uma lógica que entra em colapso e se expande, de maneira imanente,18 ao verticalizar a cronologia do capital em um edifício.19 Há na sua infraestrutura os valores que sustentam esse modo de viver: a dominação e exploração dos trabalhadores pelas elites.

Orwell percebia esse arranjo. Por conta disso, ele tece uma rede argumentativa ao longo de sua obra, buscando revelar o que jaz no subsolo: “a boa prosa é como a vidraça numa janela”.20 A linguagem ficcional exerce uma função política de expor e analisar processos sociais, calcados em uma infraestrutura que sustenta pilares das instituições dominadoras. Ou seja, temos na escrita clara e objetiva de Orwell uma ferramenta que revela o funcionamento de “mecanismos sociais disponíveis para engendrar a reprodução social, não meramente no plano da garantia da perpetuação econômica, mas, sobretudo no âmbito da reprodução cultural”.21

Ao focar o olhar no funcionamento da sociedade, o narrador nos mostra um dos momentos de ruína do sistema: ao entrar em crise em 1929, ele se reconstrói por meio da transição de impérios, logo após a Segunda Guerra. A partir de então, o mundo observa a rota de forças hegemônicas, antes detida pelo Reino Unido, se concentrar nos Estados Unidos, em uma reorganização das peças no tabuleiro global, exercendo “controle e predominância sobre o resto do mundo capitalista, além do hemisfério norte e oceanos, assumindo o que restava da velha hegemonia imperial das antigas potências coloniais”.22

O deslocamento geográfico de poder aparenta elaborar uma mudança paradigmática, quando, por trás dos acordos e das estratégias que o envolvem, a infraestrutura permanece intacta: “uma sociedade hierárquica só seria possível se tivesse como base a pobreza e a ignorância. […] Em todos os lugares tem-se a mesma estrutura piramidal […] a economia que existe por meio e por causa da guerra contínua.”23 Eram, assim, reforçados os valores de disparidade, exploração, obtenção de mais-valor do trabalho estranhado,24 permitindo que a técnica e a produção se aprimorem. O capital se renova, sob uma nova roupagem, do outro lado do Atlântico.

Enquanto isso, na Oceania, Winston fita nos olhos a perversidade desse universo polarizado, imposta na manipulação e controle irrestrito de ações, dizeres e, acima de tudo, pensamentos. O controle e a vigilância operam como um dos pilares fundamentais, que mantém de pé o sistema. Nosso protagonista é assolado por uma ordem política na qual o controle das ideias e da linguagem se espalha como uma névoa tóxica, que culmina por nos sufocar no século XXI: “Estamos destruindo palavras, dezenas, centenas, todos os dias. Destrinchamos a linguagem até os ossos. A Décima Primeira Edição [do dicionário] não terá uma só palavra que se tornará obsoleta antes do ano de 2050.”25

O argumento que sustenta a iniquidade no mundo de Winston se disfarça em torno da noção de avanço tecnológico: “o ideal definido pelo Partido era algo enorme, terrível e reluzente — um mundo de aço e concreto, de máquinas monstruosas e armas aterrorizantes”.26 Paralelamente à lógica do Big Brother, podemos observar o feitiço do desenvolvimento industrial com o escuso motivo norte-americano de travar uma batalha invisível com o inimigo soviético, em que a industrialização militar desenvolve mecanismos de controle, expandindo o capital. Assim, ocorrem reduções drásticas na democracia e, de maneira inversamente proporcional, cresce a monitoração constante da população. Temos o início de uma nova fase do capital, agora renovado na roupagem da vigilância como uma falsa benesse.

A monitoração de informações por meio da tecnologia não é um fator isolado e preso ao tempo, mas uma estratégia elaborada ao longo do século XX, cujas raízes podem ser observadas no contexto político representado em 1984, em que uma tela transmite informações e, ao mesmo tempo, coleta dados de seu usuário. Ao fazer uma crítica satírica da condição tecnológica, o narrador de Orwell provoca aqueles presos às mesmas amarras, no futuro: “a vida privada chegou ao fim […] todo cidadão que valia a pena ser vigiado, podia ser mantido vinte e quatro horas sob os olhos da polícia.”27

A atualidade do romance permite que possamos pensar alguns mecanismos sociais que tiveram início a partir dos anos 1950, principalmente no que tange à militarização da tecnologia de comunicação, aos satélites de vigilância global e à rede mundial de computadores. Ao expandir a tecnologia em torno da comunicação global, a ordem sancionada encontra uma margem para que possa se apoiar e se reerguer, juntando os vestígios deixados pelo confronto bélico, rumo a um procedimento em que o olhar onipresente da tecnologia e a coleta de informações são invisibilizadas na Guerra Fria.

Orwell não chegou a presenciar esses desdobramentos do sistema entrando em sua fase de vigilância como procedimento operacional, pois faleceu no início de 1950. Todavia, sua obra se atém ao cerne das contradições do campo social, à crítica profunda dos mecanismos de uma ordem política que, por onde tocam seus tentáculos, propaga devastação e sofrimento à maioria expropriada.

O futuro distante da Oceania do Big Brother possui relações estreitas com a Europa do século XX. Porém, os conflitos que assolam o protagonista se fazem sentir em nossas angústias, no século XXI. As aflições de Winston Smith na Londres totalitária ainda ecoam, após dezenas de anos. Dentre os números motivos para esse eco, o que lançou raízes mais profundas foi a manutenção do capitalismo, implicando a desigualdade contínua: “[…] uma classe dominante capaz de se proteger […] ficaria no poder para sempre. Ao fim, o fator definitivo é a atitude mental da classe dominante em si.”28

Podemos perceber que após o ano de 1984, o futuro distópico se aproxima ainda mais do nosso presente, à mesma maneira em que os cidadãos da Oceania são monitorados pelas telas, sujeitos ao perigo de deixar “pensamentos vagarem em um lugar público ou ao alcance de uma teletela […] o menor detalhe poderia denunciá-lo. […] Havia até uma palavra para isso em novilíngua: chamavam de crimerrosto.”29 O narrador alcança com êxito o papel político da sátira, em que examina os desdobramentos do uso da tecnologia, ainda embrionária, desenvolvida com esmero ao longo do século XX e que agora alcança o século XXI.

No romance, a metáfora do tempo opera como um mecanismo primordial, que tece paralelos com três períodos: o momento histórico de sua produção, a década de 1940; a projeção cronológica para o ano de 1984, momento em que se passa o enredo; e o que muitas vezes passa despercebido, o futuro longínquo de 2050, mencionado no apêndice do livro, que preconiza a instauração completa e absoluta da manipulação da linguagem pelo Big Brother: “se fixou a data distante de 2050 para a adoção final de novilíngua”.30

Esses procedimentos literários reforçam a relevância política e social da literatura de Orwell. Ao nos debruçarmos sobre o entendimento profundo do emaranhado esculpido pelo sistema, podemos olhar à nossa volta e perceber que, estando no “futuro”, a maneira que vivemos em sociedade ainda se assemelha muito com as questões desveladas nessa obra. O que houve com o passar das décadas foi o aprimoramento industrial e técnico pelo qual a lógica hegemônica se desenvolveu e se expandiu. Para cada contradição o sistema revela uma nova face. No momento em que ele escreveu 1984 o mundo se ordenava pelas amarras do capital financeiro, em processo de consolidação, principalmente no que tange à subordinação da economia ao poder coercivo do Estado.31

Posteriormente, com os resultados da Segunda Guerra e a polarização de confrontos invisíveis da Guerra Fria, vivemos as consequências do capitalismo de vigilância, que em sua essência atua como um parasita, retomando “a velha imagem que Karl Marx desenhou do capitalismo como um vampiro que se alimenta do trabalho, agora com uma reviravolta. Em vez do trabalho, o capitalismo de vigilância se alimenta de todo aspecto de toda experiência humana”.32

Enquanto Winston tem seus movimentos rendidos ao olhar constante da teletela, desvela-se na narrativa o comentário sobre uma lógica que transforma a vida cotidiana “na renovação diária de um aspecto faustiano do século XXI. ‘Faustiano’ porque é quase impossível livrar-se dele, apesar do fato de que aquilo que precisamos dar em troca destruirá a vida tal qual a conhecemos”.33 Quando nosso protagonista sucumbe à tortura física e psicológica, a mensagem satírica cumpre seu propósito, a de revelar os impasses de se tentar derrubar um modelo social de maneira individualizada, não alterando a organização monumental e sistêmica dos valores sancionados. Pelo contrário, é por meio da fraqueza e da manutenção da ignorância dos despossuídos que o capital renova suas forças vampirescas. A nossa ignorância sustenta a força dos detentores da produção, simbolizados nos lemas do partido do Big Brother: “Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”.34

Ao analisarmos 1984 estamos diante de um comentário discordante da lógica socialmente sancionada, indicando a necessidade de que ela seja destruída. Temos, assim, a escrita literária esculpida pela tonalidade social, que se preocupa em diagnosticar os problemas mais profundos de sua época, por meio do esforço de observar as engrenagens do sistema sendo representadas na forma literária. Dessa maneira, a sátira distópica retoma a relevância política de um autor como George Orwell no combate ao poder dominante, às instituições e ao capital.

Seu olhar se concentra na crítica profunda das contradições da classe média, metaforizadas no protagonista insatisfeito, que procura romper com as regras dominantes de forma a ser o único beneficiado pela própria rebeldia. Ao revelar algumas de suas contradições, principalmente na maneira pela qual Winston Smith se vê coagido a ser conivente com mundo do Big Brother, o narrador escancara que a podridão do sistema não está em sua base, despossuída pela exploração e, sim, em sua superfície: no bolor dos salões elegantes, repletos de opulência. A saída não parece estar em meio aos tilintares de taças de champanhe e acordos esvaziados. A esperança surge justamente em meio aos lugares mais insólitos, nas margens abandonadas pela norma burguesa: “se havia esperança, estava nos proletas”.35