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O antídoto Rimbaud-Cesariny

Arthur Rimbaud, Fabrício Corsaletti

No artigo “As transfusões de Rimbaud”1 (Folha de São Paulo, 9/11/1991), Antonio Candido resumiu, com a precisão de costume, o que nós leitores experimentamos diante das palavras do poeta francês: “sentimos o real como presença poderosa, mas subvertido pelo fulgor dos elementos artificiais. Um sentido desliza para outro e o leitor fica suspenso entre a impressão de que entende e não entende, capta e não capta, recebendo não obstante uma mensagem válida, mesmo quando salpicada de ininteligível do ponto de vista lógico”. É importante ter isso em mente quando chega aqui uma nova tradução dos livros Illuminations e Une saison en enfer, de Jean-Arthur Rimbaud (1854-1891).

Com os títulos Iluminações e Uma cerveja no inferno, o volume bilíngue lançado pela Chão da Feira oferece aos leitores brasileiros a tradução do poeta português Mário Cesariny (1923-2006), que já circulava em edições lusitanas desde os anos 1960. A primeira edição trazia apenas Uma época no inferno (Portugália, 1960), que foi revista e reunida com Iluminações para uma nova edição na década seguinte, adotando o atual “cerveja” no título (Estúdios Cor, 1972). É esta edição, atualmente mantida em Portugal pela Assírio & Alvim, que chega ao Brasil. Em boa hora.

Esses livros de Rimbaud já eram lidos em traduções brasileiras desde os anos 1950. A primeira delas foi de Xavier Placer, Uma estação no inferno (Cadernos de Cultura, MEC, 1952), seguida pelas traduções de Lêdo Ivo, Uma temporada no Inferno & Iluminações (Civilização Brasileira, 1957; Francisco Alves, 1982), e Ivo Barroso, Uma estadia no inferno (Civilização Brasileira, 1977), que atualmente integra Prosa poética (Topbooks, 1998), segundo volume da obra do poeta vertida por Barroso, ao lado de Poesia completa (Topbooks, 1994) e Correspondência (Topbooks, 2009). Registrem-se, ainda, as traduções de Rodrigo Garcia Lopes e Mauricio Arruda Mendonça, Iluminuras: gravuras coloridas (Iluminuras, 1994), e de Paulo Hecker Filho, Uma temporada no inferno (L&PM, 1997). Todavia, a chegada da tradução de Cesariny deve ser celebrada pelo que tem de especial: não se trata de uma simples “versão”, mas do encontro entre dois grandes poetas em torno de dois grandes livros (aliás, que sirva também para nos lembrar da importância de editar a obra poética de Cesariny por aqui!).

A felicidade desse grande encontro Rimbaud-Cesariny começa já pela “cerveja” inscrita na capa do livro. Confesso que, na primeira vez em que vi essa versão, “saison” virar “cerveja” me parecia uma excentricidade, mas eu não sabia quem era Cesariny, tampouco que existia um tipo de cerveja chamado “saison”, que, segundo enciclopédias dedicadas à bebida, fazia sucesso no século XIX na região em que Rimbaud viveu (entre o sul da Bélgica e o norte da França). Estávamos em meados dos anos 1990… e eu não podia imaginar que, dali a alguns anos, a gourmetização dos bares e restaurantes no Brasil levaria esse “saison” para tantos cardápios ao meu redor.

O fato é que, hoje, esse Rimbaud que toma cerveja no inferno — essa imagem em que se misturam calma e caos, entretenimento e tormento — parece ser a expressão mais precisa para dar conta do que acontece dentro do livro, em que, como afirmou Verlaine, “a língua é clara e se mantém límpida mesmo quando a ideia se turva ou o sentido se torna obscuro” — frase lembrada por Augusto de Campos em seu incontornável Rimbaud livre (Perspectiva, 1992), em que a perícia do tradutor também fez ecoar o Rimbaud “ivre” (bêbado) de seu mais famoso poema, “Le bateau ivre”. Um Rimbaud “ivre” de “saison” (bêbado de cerveja), portanto, não me parece nada estranho. Pelo contrário, se ajusta bem ao poeta que, segundo Murilo Mendes, “porta a partitura do caos”.

Esse exemplo, a meu ver, ajuda a entender a forma como Cesariny busca, mais do que precisão semântica, algo que poderíamos chamar de precisão poética no trânsito entre os poemas originais de Rimbaud e os poemas que, a partir deles, escreve em nossa língua. Cesariny propõe-se a ser, como tradutor, “o poeta do seu poeta”, na expressão de Novalis lembrada por ele em nota à tradução. E o que resulta dessa identificação profunda do poeta tradutor com o poeta traduzido é um conjunto de excelentes poemas em língua portuguesa, com o ritmo e a vibração da prosa poética — ou do poema que não cabe em versos — de Rimbaud, em que se processa aquela “musicalidade superior ao sentido que penetra todas as desarmonias e harmonias” (Hugo Friedrich).

Quando Rimbaud diz “Des fleurs magiques bourdonnaient. Les talus le berçaient. Des bêtes d’une élégance fabuleuse circulaient. Les nuées s’amassaient sur la haute mer faite d’une éternité de chaudes larmes”, Cesariny responde: “Flores mágicas zumbiam. Barrancos embalavam-no. Animais de uma elegância fabulosa circulavam. As nuvens amassavam-se sobre o alto mar feito de uma eternidade de lágrimas quentes”. E tudo nos poemas de Rimbaud parece apontar para aquele desgarramento que seria sua própria vida em relação a seu país, sua língua, sua cultura, sua arte — tudo parece sempre estar voando alguns centímetros acima da página, perdendo o contato com o chão.

Revolução, revolta, transformação, “alquimia do verbo” — essa é a língua da poesia de Rimbaud: “‘Decadência do Ocidente’ + revoluções europeias meados do séc. XIX + revolta contra preconceitos burgossexuais + revolta contra a clichérie da língua poética francesa + necessidade de transformar todos os mundos = Jean Arthur Rimbaud (1854–91)” — calcula Mário Faustino, para definir o poeta francês no artigo “Poesia-revolução”, publicado na coluna Poesia-Experiência do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em 1957 (hoje em Artesanatos da poesia, Cia. das Letras, 2004).

Mas Rimbaud-Cesariny sempre escapa das equações: “Habituei-me à alucinação simples […] Depois, explicava os meus sofismas mágicos com a alucinação das palavras”. Então o leitor é emboscado por frases que somente se entregam quando se desiste de tentar compreendê-las, porque não é de compreensão que se trata na poesia de Rimbaud, mas de criação, destruição e recriação dos sentidos do mundo. Cada poema leva para um universo em que todas as coisas, mesmo as mais triviais, se elevam a uma espécie de delírio e, portanto, exigem do leitor que as acompanhe — e delire.

É bom lembrar que Iluminações e Uma cerveja no inferno são livros da fase final do — curtíssimo — percurso literário de Rimbaud, portanto, foram escritos durante o período mais turbulento de sua vida (até então?), pouco antes dele abandonar em definitivo a poesia. Há controvérsia sobre a datação dos manuscritos de Iluminações, mas os estudiosos o localizam como anterior a Uma cerveja no inferno, que é datado de 1873 (e também foi editado neste ano), que seria, assim, o “testamento espiritual” de Rimbaud, então com 19 anos. Por isso, deve-se ler a poesia desses livros também como uma experiência extrema, de vida e de arte, de vida-arte, em que todas as tensões que atravessavam a relação de Rimbaud com seu mundo (a família, a religião etc.) e com a própria poesia (e os poetas) levam à implosão do seu “eu” e, assim, à explosão de uma forma de poesia radicalmente desconhecida. Num mesmo gesto, projeta-se a poesia que ele sempre buscou e a impossibilidade de seguir escrevendo: adeus!

Essa edição merece muitos aplausos e vem se somar a um momento bastante rico para a tradução de poesia francesa entre nós, em que podemos destacar uma nova tradução integral das Flores do mal (trad. Júlio Castañon Guimarães; Cia. das Letras, 2019), de Baudelaire; a primeira tradução integral de Para um túmulo de Anatole (trad. Guilherme Gontijo Flores; Kotter, 2021), de Mallarmé; e também de Feitiços [Charmes] (trad. Roberto Zular e Álvaro Faleiros; Iluminuras, 2020), de Valéry. Se o trabalho de Cesariny não é tão recente assim, nem por isso é menos contemporâneo e urgente.

Esse encontro Rimbaud-Cesariny, chegando com sua linda capa vermelha, é um antídoto para esses tempos de asfixia. Como disse Antonio Candido, “a eficiência de tais poemas é devida ao fato de conservarem a referência ao mundo (que é sempre um ímã para nossa percepção), mas promovendo a invenção de outro mundo, que de certo modo o suplanta e satisfaz o nosso desejo de ir além do real”. Se existe um poeta capaz de nos levar para fora do mundo como conhecemos (e tanto precisamos disso!) e, lá, abrir nossos olhos para o que se esconde sob o que chamamos de “real”, é o infernal Rimbaud. Contar com as palavras de Cesariny para essa viagem, claro, é um luxo a mais.