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Linguaviagem: correspondência com Augusto de Campos

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Conheci Augusto de Campos em julho de 2016, quando viajei para São Paulo para ver uma grande retrospectiva de sua arte e de sua poesia. Na época, eu estava preparando uma exposição sobre a poesia concreta no Getty Research Institute, em Los Angeles. Minha exposição destacou o grupo de poetas concretos brasileiros Noigandres, cujo trabalho estava amplamente representado em nossas coleções, mas, surpreendentemente, não era muito conhecido nos Estados Unidos. Durante a finalização da exposição, Augusto se tornou um correspondente extraordinariamente generoso. Ele traduziu a poesia brasileira em minha exposição, enviou-me comentários sobre sua própria poesia e forneceu projeções digitais de última geração que nos permitiram apresentar sua poesia visualmente cativante em uma grande parede da galeria, com acompanhamento vocal.

Nossa correspondência mais recente, que é o foco deste ensaio, se desenvolveu ao longo do trabalho de minha próxima publicação: Concrete Poetry: A 21st-Century Anthology (Reaktion Books, a sair em outubro de 2021). Augusto é um dos três poetas que recebem maior atenção na antologia — junto com Ian Hamilton Finlay e Gerhard Rühm. Defendo que a poesia dos três transformou o gênero, cada um de forma distinta. Augusto tem sido um interlocutor especialmente maravilhoso, porque ele está interessado em se envolver em todos os níveis: o escopo e a abrangência geográfica da poesia concreta; estrutura poética; tipografia, impressão e fontes; mensagem política; a relação da forma com o conteúdo. Estou interessada em compartilhar suas cartas porque elas revelam sua poética. Além disso, pode-se apreciar sua bondade, sua imaginação sem limites, sua erudição na literatura, na música e nas artes visuais, seus assombrosos dons linguísticos e seu interesse em teorizar sobre poesia concreta.

Começarei com a resposta de Augusto a uma pergunta que fiz sobre a inclusão de poetas concretos argentinos em minha Antologia (19 de março de 2018):

Figura 1: Olho por olho. 1964. Augusto de Campos

Não existiam poetas argentinos na primeira década de 1950. Somente em 1967 o poeta de La Plata, Eduardo Antonio Vigo, ficou sabendo da poesia concreta.1 Ele publicava desde 1962, em sua cidade natal, uma revista chamada Diagonal Cero, dedicada à poesia experimental. Em 1967 entrou em contato conosco e publicou o número 22, com meu poema na capa e um extenso artigo de Haroldo [de Campos] sobre a nova poesia. A partir desse momento, sua revista, que teve mais alguns números até 1969, começou a publicar textos de poesia visual de forma mais intensa. Perdemos o contato com ele, porque a poesia visual que ele praticava não nos interessava, pois estávamos inclinados a não dispensar o nível semântico mesmo em experiências não verbais como “Olho por Olho”, “Profilograma Pound / Mayakovsky”…

A Figura 1 mostra o poema popcreto de Augusto, “Olho por olho”, um poema não verbal que se comunica visual e semanticamente através de uma torre de olhos individuais, bocas femininas e, no topo, sinais de trânsito (“Perigo”, “One way”, “Right turn only”), todos transmitindo uma mensagem sinistra de vigilância. Ao incorporar este “nível semântico”, que ele afirmou ter desempenhado um papel mínimo na poesia visual argentina, Augusto invocou a dimensão linguística que James Joyce fez parte de seu “verbivocovisual”: em um determinado poema concreto, as dimensões visual, sonora e semântica de um poema não podem ser separadas: forma é igual a significado.2

Augusto e eu tivemos uma correspondência mais longa entre 1 e 6 de maio de 2018, sobre a estrutura de seu poema “Acaso”, escrito em 1963 (Fig. 2). Lembrando que ele escreveu este poema numa época em que estava particularmente focado no uso do acaso na poesia, Augusto chama a atenção para a influência de Stéphane Mallarmé (especialmente Un Coup de dés), a indeterminação de John Cage e o método aleatório de Pierre Boulez. Ele continua:

Ocorreu-me usar a própria palavra “acaso” como tema, e tentei compor um texto icônico apenas com seus anagramas.3 Finalmente decidi alinhar todos os anagramas de “acaso” em ordem alfabética e depois inverter essa ordem, para que a palavra “acaso” não aparecesse na primeira estrofe. Felizmente, os anagramas não formaram nenhuma palavra vernácula, apenas sugerindo a palavra “caos” em “acaos” (que evoca “não caos”) e “caaos” (que sugere um indício de caos). [ver ambos na estrofe final]

Figura 2: Acaso. 1963. Augusto de Campos

Primeira fonte da estrofe:

aacos
aacso
aaocs
aaosc
aasco
aasoc

Aparece ao contrário, da direita para a esquerda:

socaa
oscaa
scoaa
csoaa
ocsaa
cosaa

O segundo bloco de seis linhas segue o alfabeto, começando com “acaos”, indo até “acsoa”, depois invertendo a ordem, como segue:

Segunda fonte da estrofe:

acaos
acaso
acoas
acosa
acsao
acsoa

Ao contrário:

soaca
osaca
saoca
asoca
oasca
aosca

Referindo-se ao segundo bloco de texto, Augusto explicou que se ele tivesse simplesmente apresentado os anagramas em ordem alfabética, “acaso apareceria na segunda estrofe e seria facilmente descoberto”. E acrescenta: “Eu queria tornar a decifração mais difícil, aumentar o tempo, dar fôlego à leitura e, para isso, tive a ideia de inverter a ordem dos anagramas”. Intuitivamente, Augusto seguiu a “fórmula fatorial da permutação”: dadas cinco letras, com duas repetições (o “a”), ele mapeou as possibilidades da seguinte forma: 5 × 4 × 3 × 1 = 120, dividido por 2 = 60.

O resultado foi um poema composto por dez blocos, cada um com seis linhas de comprimento. Devido ao uso de todas as permutações possíveis das letras de “acaso”, a palavra que soletra tem que aparecer uma vez só e aparece no oitavo bloco de texto (quinta linha). “Acaso” é a única palavra legível, todas as demais são anagramas não significativos.

Ao estudarmos mais de perto o poema de Augusto, ficamos surpresos com o contraste entre a ideia do “acaso” e o rigoroso procedimento de Augusto para liberar os anagramas, de modo a evitar a legibilidade e a repetição. A influência da famosa composição para piano de John Cage, Music of Changes (1951), a primeira a utilizar operações do acaso na composição de uma obra, é notável. As instruções de Cage pedem para negar o “eu”, ou seja, remover o “eu” da escolha, e introduzir o “acaso” jogando três moedas duas vezes, obtendo um número, encontrando seu hexagrama correspondente no I Ching Book of Changes,4 e procurando a célula correspondente em uma das três tabelas de Cage (sons, durações e dinâmicas). Na terminologia de Cage, o “acaso” se refere ao uso de algum tipo de procedimento aleatório no ato de compor. A permutação e ordenação no “Acaso” de Augusto é gerada de maneira determinada, não aleatória, a partir de cinco letras. Como o princípio de ordenação é complicado, a estrutura não é imediatamente aparente. Tanto Cage quanto Augusto estabelecem regras que lhes permitem ter menos controle sobre o resultado. No entanto, o acaso, claramente, não significa falta de rigor!

Figura 3: Linguaviagem. 1975. Augusto de Campos

Augusto e eu seguimos uma linha diferente de interpretação sobre o tema da reprodução de sua poesia em sua versão original publicada, o que para ele significava a impressão, fonte e formato. Nossa correspondência (2 de julho de 2019) se concentrou em sua Linguaviagem (1967–70) (fig. 3).

Fiquei impressionada com a versão em um cubo grande deste poema, feito para o Brighton Concrete Poetry Festival, em 1967, e que consistia em fontes azuis e verdes pesadas. Presumi que Augusto era o responsável por esta versão, mas sua carta indicava o contrário. Comparando o poema de Brighton com seu original, ele escreveu:

A versão inglesa, feita na exposição Brighton, a partir do meu protótipo, é mais impressionante em suas cores e dimensões. Mas se afasta um pouco do meu original, que é mais ortodoxo, em preto e branco, com letras menos pesadas e uma relação formal mais harmoniosa entre as letras e o formato da página. O glossário impresso no interior do poema facilita a compreensão… dada a dificuldade da linguagem. Entretanto, tem a desvantagem de interferir na composição. Me parece que o glossário que eu havia fornecido, poderia funcionar melhor sendo publicado separadamente…

Na verdade, além dos significados individuais das palavras, o poema, desdobrado, sugere duas frases:

LINGUAVIAGEM (neologismo) viagem através da linguagem

VIALINGUAGEM (neologismo) através da linguagem…

Como em francês, LANGUE, LANGAGE,

Em português LÍNGUA é sinônimo de LINGUAGEM

sendo esta a palavra mais genérica.

LÍNGUA — “linguagem”, mas também “língua”.

O poeta convida o leitor a vir com ele numa viagem via linguagem.

VOYAviaLANGUAGE? LANGUAviaVOYAGE?

Nenhuma tradução satisfatória. Perdemos a passagem do VIA, comum aos dois idiomas.

A tentativa de Augusto de traduzir seu poema em inglês ilustra como é difícil capturar seus neologismos, assim como as múltiplas palavras portuguesas para “linguagem” (língua, linguagem) e a corporificação de palavras dentro das palavras. Uma apresentação mais verdadeira pode revelar os dois neologismos, cada um em uma dobra de sanfona, como foi apresentado na exposição Rever.

Um dos poemas mais notáveis de Augusto teve sua origem em eventos autobiográficos. “Viva Vaia” deve seu nome a uma apresentação de Caetano Veloso em São Paulo, em 15 de setembro de 1968, quando estudantes nacionalistas de esquerda o vaiaram. Numa carta enviada em 20 de agosto de 2019, Augusto me relatou: “Foi um incidente muito peculiar que foi como um happening imprevisto”. Caetano continuou cantando entre as vaias e explodiu em um discurso inflamado que dizia: “Vocês não entendem nada. Vocês estão lutando contra os velhos que morreram ontem.”

Durante os “eventos traumáticos” que se seguiram, Caetano e seu colega Gilberto Gil foram presos, depois enviados para o exílio em Londres em julho de 1969. Eles não retornaram ao Brasil até janeiro de 1972.

Figura 4: Viva vaia. 1972. Augusto de Campos

Após viagem familiar a Teotihuacán, México, em dezembro de 1971, onde Augusto viu as Pirâmides do Sol e da Lua, ele começou a fazer um “poema minimalista”. Intrigado com o “A” e o “V” na palavra “Carnaval” (era fevereiro de 1972), pensou em criar um poema no qual as palavras “Viva” e “Vaia” se confrontassem. Ele dedicou o poema a Caetano e o descreveu para mim como uma “resposta pública que nos envolveu a todos, os ‘poetas concretos’ que vivemos sob intensa crítica, vaiados por todos, como ele.” (fig. 4)

As duas palavras (Viva Vaia), pressionadas em um ideograma unitário, mantêm significados opostos, mas compartilham as mesmas letras e um parentesco fonológico (duas sílabas, v inicial, a fechando). As formas triangulares evocam as pirâmides do México. Surpreendente em sua compressão e abstração, “Viva Vaia” não apareceu em papel até 1973–74, na revista Navilouca, com o título Monumento à Vaia. Augusto o publicou ao lado de uma fotografia de Caetano Veloso segurando o “poema objeto” em suas mãos.

Como pode ser observado no meu relato sobre nossa correspondência e no comentário que Augusto faz sobre sua poesia, ele é um interlocutor inestimável. Gostaria de encerrar com um breve comentário sobre seu SOS, que começou como um poema concreto em 1983 e evoluiu para uma animação digital multimídia. Tendo visto SOS em sua última encarnação digital na exposição Rever (2016), me ocorreu fazer dela a peça fundamental de minha exposição no Getty, projetando-a na última parede da galeria (2017). A busca de Augusto pelo "verbivocovisual" culmina com os sons, vozes e a tenebrosa paleta amarela-sobre-preto do SOS. De fato, este trabalho resume, para mim, a trajetória da carreira de Augusto. Como poeta que completa noventa anos em fevereiro de 2021, ele continua a desvendar usos inovadores e criativos da tecnologia para atender seus fins sinestésicos. Ele está, diria eu, entre os poetas vivos mais inventivos do mundo de hoje. Ele é também um ser humano verdadeiramente gentil e generoso.