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Intimidade improvável: os agregados de Otobong Nkanga1

Pedra, Beatriz Toledo

Nascida em Kano, cidade do norte da Nigéria, em 1974, a artista multimídia Otobong Nkanga passou sua infância na megacidade de Lagos e a maior parte de sua adolescência em Paris. Agora mora e trabalha principalmente na Antuérpia, mas as residências artísticas a levam para muitos lugares ao redor do mundo. Boa parte de seu trabalho foi desenvolvida na Alemanha, onde Nkanga realizou várias residências artísticas e utilizou os arquivos (por exemplo, do Museum für Naturkunde em Berlim) e os espaços das instituições de arte (entre elas, o Museum Folkwang, em Essen; Portikus, em Frankfurt; Berliner Herbstsalon, no Teatro Maxim Gorki a Bienal de Berlim em Kunst-Werke Berlin, documenta, em Kassel; e Martin Gropius Bau, em Berlim) para explorar o envolvimento da Alemanha nos fluxos materiais, desde seu passado colonial até seu papel atual no mundo globalizado.2

Plantas e minerais são os principais vetores de memória, exploração e intimidade improvável na obra da Nkanga. Sua atenção às plantas e pedras, a incorporação das mesmas em instalações e performances e o uso de formas de rochas e vegetais em desenhos e pinturas não pretendem ser metafóricos. Ela se interessa pelos próprios minerais e plantas e reflete sobre sua extração e circulação global em relações específicas de poder. Além disso, com sua arte, Nkanga cria os espaços físicos e afetivos que permitem uma comunicação com plantas e pedras. Nkanga explora laços materiais específicos que nascem muitas vezes da violência; laços que as pessoas podem querer formar com plantas e pedras porque esses vínculos constituem uma forma de comunicação e as pessoas podem querer aprender das experiências vegetais e minerais.

As pedras são especialistas em aguentar o estresse. Como as pessoas podem criar afinidade e se comunicar com os minerais? Existe uma prática ou operação material em que as pessoas possam se relacionar com pedras, rochas, partículas de areia e minerais do solo? Em seu trabalho, Nkanga explora uma variedade de intimidades tão improváveis como experimentar pedras ou ostentar seios de pedra.3 Para focar no que me parece ser o modo especificamente pedregoso de se materializar como parentesco, isto é, formar agregados, recorro à performance “Diaoptasia”. Esta oferece uma visão particularmente complexa dos agregados humano-minerais.

“Diaoptasia” combina uma exploração das relações entre humanos e rochas com uma reflexão sobre as relações coloniais entre Norte e Sul. As duas estão metonimicamente ligadas já que a disparidade de poder no âmbito global transformou o Sul em uma fonte de matéria-prima para o Norte, incluindo minérios e outros minerais. As relações entre humanos e pedras, e entre Norte e Sul, também estão metaforicamente ligadas. Proponho que leiamos “Diaoptasia” como um esforço para descolonizar as metáforas pelas quais vivemos e morremos, prestando atenção a sua especificidade material ou “materiafórica”.4 Rocha e pedra são metáforas comuns para inércia, indiferença e passividade ou, em chave positiva, solidez e força. Quando dirigida às pessoas, geralmente querem dizer que são burras, insensíveis e empedernidas. Contra estes clichês odiosos e estratégicos, a exploração da matéria mineral feita por Nkanga revela os aspectos “fóricos”, quer dizer, dinâmicos e agênticos, bem como os aspectos emocionalmente transportadores de presenças pedregosas.

Em novembro de 2015, Nkanga apresentou “Diaoptasia” para a câmera da série Performance Room do Tate Modern.5 Dois intertítulos analógicos — movidos fisicamente diante da câmera — dividem “Diaoptasia” em três partes. Na peça central, a câmera passeia lentamente por uma grande fotografia close-up de uma parede rochosa. Nkanga tirou esta fotografia em uma jazida na Namíbia, região famosa por seus magníficos exemplares de dioptásio e que foi colonizada pela Alemanha Imperial em 1884 devido a suas terras férteis e extrema riqueza, tanto em qualidade quanto em quantidade, de seus minerais. Esta colonização afetou gravemente tanto a terra quanto as pessoas — todo o agregado mineral-humano, pode-se dizer — causando aniquilação e desaparecimento. Os alemães provocaram um genocídio contra os povos indígenas da região, os Herero, os Nama e os San. No final do século XX, esgotaram as reservas minerais e os recursos foram empregados em outras regiões do mundo.6 A foto de Nkanga mostra os estratos rochosos fissurados assim como as marcas de corte da mineração artesanal (muito provavelmente feita pelos mineiros do povo San).7 A trilha sonora para a exploração íntima (através da fotografia ampliada) desta rocha é um estalar de dedos constante, um cantarolar um pouco agudo, e uma narração em off em inglês, ambos na voz de Nkanga. Às vezes, suas mãos, braços e tronco surgem no quadro e arremessam purpurina mineral, obstruindo a visão da rocha. Apartadas de seu corpo pela moldura do quadro, estas partes corporais solicitam atenção com seus gestos, mesmo quando deliberadamente saem do caminho. Cada vez que desaparecem, a câmera parece contente de poder focar na rocha novamente.

Performances presenciais antecedem e sucedem esta cena centrada na rocha. A performance inicial envolve apenas o rosto e as mãos de Nkanga. O primeiro plano do vídeo não mostra nenhum corpo humano, apenas uma peça escultórica feita de fios de cobre que se assemelha a uma cesta e contém pedaços de pedra. Depois que a escultura gira lentamente e com um movimento um tanto arraigado em torno de seu eixo, duas mãos aparecem (desencarnadas pela moldura do quadro) e tiram um cristal de dioptásio da cesta de cobre, colocam-no cuidadosamente entre os polegares e os indicadores para mostrar seu lustre azul-esverdeado e, lentamente, baixam-no com precisão pelo centro da peça escultórica. A câmera então revela que a escultura fica em cima da cabeça de Nkanga. O connaisseur pode agora reconhecer nela uma imitação do penteado iorubá Onile Gogoro; mas mesmo sem este conhecimento, sentimos a atração discrepante da peça escultórica, ao mesmo tempo estendendo a altura da pessoa e comprimindo o corpo com sua carga de rocha.8 As mãos param brevemente quando o pedaço de dioptásio situa-se entre os olhos de Nkanga, como um bindi reforçando a concentração, enquanto os dedos formam algo parecido com uma máscara veneziana ao redor dos olhos. Em seguida, o foco pedregoso se move firmemente pelo rosto até que ela coloca cuidadosamente o cristal em sua boca e o engole. Tudo isso é realizado em silêncio com apenas algum som diegético, como o ruído da deglutição e o estalido das pedras enquanto Nkanga remove uma da cesta da cabeça. Depois, a câmera se afasta e uma tela cinza-escura desliza para frente de seu rosto como primeiro intertítulo, em letras brancas escritas à mão, que diz: “De onde eu estou/ vejo você (ao) Sul”. Ao som de um estalar constante de dedos, a câmera vira para a esquerda e chega à foto da parede rochosa. Então vem o cantarolar e depois a voz em off, os três elementos sonoros sobrepostos como camadas geológicas.

Depois da peça central, a máquina fotográfica volta a se inclinar para a esquerda e surge outra tela cinza com um intertítulo, desta vez em letras pretas e em inglês nigeriano Pidgin, que diz: “As I tanda so, my eye dey/ Torchlight una for North”.9 A tela se abre como uma porta para uma performance de corpo inteiro de Nkanga. Ela ainda está usando a escultura de cobre na cabeça (agora esvaziada de pedras), suas roupas, quase totalmente pretas, ainda estão salpicadas da purpurina da cena anterior, e ela veste uma grande escultura de papelão em forma de cristal na frente de sua virilha (que aparecera parcialmente na cena anterior). Nkanga segura um bastão comprido em cada mão. Ela está de pé, de frente para a câmera, e parece um baterista em uma banda marcial, com a bateria amarrada na cintura e pronta para tocar. Em vez disso, ela começa a cantar com uma voz hipnótica e modulada uma canção em Pidgin que soa ora como uma doce e reconfortante canção de ninar, ora como um lamento exprobratório. Após algum tempo e sem qualquer alteração no tom de sua voz, suas mãos giram os bastões, executam gestos calculados com as espigas de metal na frente do rosto e depois apunhalam ritmicamente a escultura presa à sua cinturacabeça. No fim das contas, o som percussivo do cartão sendo perfurado faz dele uma bateria. Aqui Nkanga combina elementos e gestos incongruentes para formarem um agregado. O vídeo termina onde começou — embora não sem uma diferença na reiteração — com ela repousandocolocando cuidadosamente as hastes de ferro diagonalmente através da cesta de cobre em sua cabeça e a câmera permanecendo por um tempo neste retrato incomum. A performance inteira dura menos de dez minutos.

Ao examinar várias formas de violência contra a rocha e contra as pessoas em nome do minério, “Diaoptasia” explora o que as pessoas podem aprender da rocha, como elas podem reconhecer sua afinidade com as rochas e encontrar novas formas de materializar este parentesco. A rocha ostenta uma experiência extravagantemente longa. Pedras e minérios sabem o que significa estar sob pressão: eles são resultado de — e tiveram de aguentar — imensas forças geológicas, temperaturas extremas e ímpeto constante ao longo de vastos períodos de tempo. Mais recentemente, foram submetidos à extração, perseguição, exploração, colonialismo, classificação, separação de seus contextos, divisão, instigação de um grupo contra o outro (como picaretas de ferro abduzindo pedras ou diamantes cortando metal), dispersão, modificação violenta do corpo (também conhecido como processamento) e refinamento em partes úteis e esteticamente agradáveis da sociedade.10 Humanos e minerais aliam-se de muitas maneiras. Eles constituem e destroem o planeta. Eles servem e machucam uns aos outros. Ambos estão sujeitos à exploração para fins lucrativos. A teórica política feminista e decolonial Françoise Vergès sugere que “temos que renovar as formas de narrar a violência” diante da muitas vezes lenta e complexa violência ecológica.11 Nkanga propõe que aprendamos a ouvir as histórias desta violência da rocha. Com precisão materiafórica, as pedras transmitem as memórias de sua condição fraturada ou pulverizada, falam de suas experiências na diáspora e de sua participação em novas alianças.

A performance modula diferentes relações humano-minérios: o penteado metálico, o foco no cristal como drishti, a deglutição da pedra (exacerbando o fato de que as pessoas ingerem minerais como parte de sua dieta regular e inalam pó de rocha devido à poluição ambiental, que é distribuída desigualmente pelo mundo devido às diferenças de poder, mas também evocando o fato de que os seres humanos devoram metaforicamente metais preciosos), a rocha maltratada (machucada, esfaqueada, cortada e pulverizada), a disputa pela atenção da câmera, o glitter (usado como ingrediente em cosméticos e na moda que desafia papéis de gênero rígidos), a barriga grávida de cristal ou órgão sexual mineralizado, ou bateria, e o rosto pétreo de Nkanga. A voz em off no meio de “Diaoptasia” contempla o “nosso” futuro. O plural da primeira pessoa aqui abrange e atravessa sujeitos humanos e minerais. Se alguma vez foram separados, formaram aqui uma comunidade comunicando-se, isto é, com base no significado do latim communicare, compartilhando e conjugando suas forças, unindo e fatiando uns aos outros. A locução oferece descrições, ricas em detalhes materiais, das fraturas que permitem o contato e a comunicação:

Mãos doloridas lampejam. Fez você brilhar e centelhar. Mudando suas luzes para brilhar, lentamente você desvanece. Fraturas às vezes podem ser identificadas. Como você vê as rachaduras que aconteceram? Seriam ásperaso, irregulares? Talvez em forma de concha ou lisa e curvada. Ou talvez recortadao, ou com arestas pontiagudas como metal quebrado. Formando lascas alongadas, ou talvez quebradiçando como barro ou giz. Nosso futuro é viver com hematomas. Desnivelado, cortante, farpado, terroso, às vezes quebradiço, seccionadoséctil, maleável, flexível, elástico. Seríamos capazes de resistir à força de esmagar, rasgar, dobrar, quebrar. Ou seríamos facilmente reduzidos a quebrados em pó pelo corte e martelagem. Ou poderíamos ser raspados com a faca para deixar migalhas. Ou seríamos martelados em folhas finas como ouro ou cobre. Ou seríiamos curvados para não voltarmos à nossa forma original quando a força for liberada. Ou seríamos dobrados como um fio, apenas para retornar à forma original quando a pressão for suspensaforça for liberada. Nosso futuro será, pode ser, definitivamente, com hematomas, desnivelados, irregulares, farpados, terrosos, frágileis, seccionadosécteis, maleávelis, até mesmo flexívelis e elásticos. Mas será que seremos capazes de resistir ao estresse?

Pierre Figure, Beatriz Toledo

A segunda pessoa — e o primeiro pronome a aparecer ― já oscila (ou melhor, centelha) entre o humano e o mineral. Depois das “mãos doloridas lampejam”, o “você” em “fez você brilhar e centelhar” poderia se referir a rostos que brilham pelo uso de produtos cosméticos contendo glitter ou poderia se referir a pedras que centelham após serem cortadas e polidas. Poderia ser uma história sobre as rochas. “Lentamente você desvanece” poderia significar o brilho, o material ou a memória de trabalho e sofrimento e, portanto, pode se referir a sujeitos de várias temporalidades efêmeras. “Como você vê as rachaduras que aconteceram?” parece inicialmente mais convencional pois é claramente dirigido a um espectador — sinto-me interpelada, mas imagino que muitas pessoas em contextos muito diferentes e com experiências e memórias muito diferentes também se sintam diretamente convocadas; posso também imaginar que Nkanga não tinha em mente apenas as pessoas, mas também pergunta à pedra, aqui apresentada com suas marcas de corte e sedimentos, “como você vê as rachaduras que aconteceram?”. A iridescência do pronome da segunda pessoa cria assim performativamente uma primeira pessoa plural, cujo “futuro é viver com hematomas” e sob estresse.

“Diaoptasia” abraça essas rachaduras e hematomas porque eles permitem a transformação e a comunicação. Os cortes servem como interfaces para formar novas alianças, criar laços incomuns e intimidades improváveis. Nosso futuro é viver em — e como — compósitos que — em tensão — formam identidades através da diferença: nosso futuro é viver como agregados biominerais. Com sua prática de agregação, Nkanga se baseia na ideia da “comunidade compósita” que Édouard Glissant defende.12 Além disso, ela propõe ver cada e qualquer identidade como um agregado sob pressão — com memórias depositadas em pedra, sedimentadas em linguagem, ou armazenadas em diferentes partes do corpo.13 As rochas podem comunicar às pessoas a capacidade de lidar com o estresse de existir em uma comunidade compósita. O nascimento da rocha se materializa não como crescimento orgânico, mas como trituração e batida tectônica, compressão imensa, e sulco mútuo. Os agregados de matéria mineral são resilientes: eles podem carregar muito peso e suportar muito estresse. Mas isto não significa que tenhamos que ficar sempre juntos. Qualquer identidade pode se desfazer, mesmo que tenha sido aparentemente estável por muito tempo. Os agregados minerais-humanos de Nkanga exploram formas de lidar com e comunicar incongruência e estresse.