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Formações de areia: novos materialismos literários

Apresentação

Il est plus facile de gratter le mortier que de deplacer une pierre, Beatriz Toledo

Os chamados “novos materialismos” são um campo recente e vibrante de formulações teóricas que, entre outras coisas, busca repensar as definições do humano e do não humano chamando a atenção para as formas em que tais categorias se entrelaçam. Nesse sentido, os novos materialismos ganham força num momento em que a crise ecológica, em sua versão mais apocalíptica encarnada pela mudança climática, joga luz sobre o problema de se pensar a natureza e a cultura de forma dicotômica. Principalmente, contesta-se a oposição entre natureza e cultura que está na base do pensamento ocidental moderno e que permitiu que o ser humano colonizasse os demais viventes e até o planeta.

Com contribuições — muito diversas entre si — vindas da filosofia, da política, da antropologia ou dos estudos culturais, com declinação feminista ou decolonial etc., os novos materialismos propõem uma guinada na maneira de conceber a matéria e as materialidades, incluindo aí uma reflexão (material) sobre a humanidade. Os novos materialistas propõem uma correção do reinado do idealismo na filosofia e na política, salvo algumas exceções, e o foco no debate sobre a(s) subjetividade(s) nas humanidades, que costumam ignorar o caráter material do humano.1

Há, é claro, afinidades entre os “novos” materialismos e formas não modernas de conhecimento — pensemos, por exemplo, nas diversas formas de animismo nas cosmogonias indígenas, em que elementos do mundo natural têm agência e parentesco com humanos. E o “velho” materialismo (a fenomenologia ou o marxismo estrutural), apesar de ter sido amplamente desacreditado em tempos recentes, também faz sua aparição nos textos da safra mais recente. Mas são muitas as novas contribuições teóricas que dialogam com desdobramentos recentes nas ciências naturais. Um exemplo é o trabalho de Karen Barad, referência, como se verá, para os artigos deste dossiê. Repensando a física quântica a partir da teoria queer, Barad desenvolve o conceito de “realismo agencial” a partir de um exame em profundidade das partículas e suas interações, que prefere chamar de intra-ações.2

Este dossiê é focado nos (novos) materialismos literários e, mais precisamente, numa materialidade específica: a areia. Os textos são o resultado de um simpósio realizado na Universidade de Johns Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos, em abril deste ano e organizado por Rochelle Tobias, professora de alemão do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade, e Annina Klapert, cujo livro recém-lançado serviu de mote para as reflexões a seguir. Em Areia como um modelo metafórico para a virtualidade, Klapert trata a areia como mídia — porque dá e desfaz formas — e explora o significado dos processos de virtualidade na literatura, na arte e na teoria.3

Abrindo o dossiê, Birgit M. Kaiser mergulha na obra de Clarice Lispector, explorando tanto a materialidade do texto, sobretudo de A paixão segundo G.H., como as figurações da matéria no romance — no caso, a areia, mas também a barata e a própria humanidade de G.H. Como é bem sabido por aqui, o texto de Clarice é um prato cheio para os interessados no pós-humanismo e nos estudos sobre plantas e animalidade. A leva recente de traduções para o inglês trouxe um novo público para sua obra, e, com isso, novos olhares.

Em seguida, o texto da cientista política Jane Bennett se debruça sobre o encontro do pensador americano Henry David Thoreau com a neve-areia-argila, uma das muitas influências naturais que deixaram marcas em seus escritos. Bennett mostra como esses materiais proporcionaram a Thoreau acesso a um reino onírico, surreal e até psicodélico, que paira sobre “regimes de experiências mais normais”. O autor foi uma figura central para que Bennett desenvolvesse sua teoria do “materialismo vital” [vital materialism] em Vibrant Matter: A Political Ecology of Things (Duke University Press, 2010). Ainda sem tradução para o português, este livro seminal sugere que é preciso “dar voz” à vitalidade intrínseca à matéria, e que é preciso reconhecer que fazemos parte de uma “densa e imbricada rede de relações materiais”. Em diálogo com os filósofos John Dewey e Jacques Rancière, e espichando seus conceitos, Bennett propõe formas de expandir a democracia e, portanto, a política aos mais-que-humanos. O livro tem dado pano para um debate tão fascinante quanto complexo que pode nos ajudar a pensar para além dos dualismos. Thoreau volta a figurar, ao lado de Walt Whitman, na publicação mais recente de Bennett, que investiga como o encontro com um mundo que tem agência transforma a noção do eu.4 O texto deste dossiê é uma pequena amostra desta reflexão.

No texto de sua autoria, Annina Klapert discute um romance do escritor japonês Kobo Abe e projetos artísticos de Remo Campopiano e Jochem Hendricks como exemplos de arranjos possíveis entre areia, insetos e humanos, dando continuação a suas especulações sobre a areia e ensaiando formas de “ler materialidades”. Por fim, Katrin Pahl discute o trabalho da artista Otobong Nkanga, que nasceu na Nigéria e hoje vive na Antuérpia. Pahl explora a matéria mineral na obra de Nkanga, chamando a atenção para os laços coloniais e a violência que informam as relações entre humanos e rochas, mas também para as possibilidades que agregados humano-minerais trazem para a criação de novos laços menos antropocêntricos e hierárquicos. Central para sua análise cerrada e inspirada das obras de Nkanga é a teoria da pensadora feminista Donna Haraway, cuja obra é referência incontornável para os novos materialismos.5

As imagens deste dossiê são da artista visual Beatriz Toledo, que vive e trabalha entre Brasil, França e Colômbia. O interesse pela geologia e pela matéria mineral atravessa sua obra, que explora tanto as inquirições científicas a respeito das pedras quanto sua capacidade de despertar a imaginação. Nestes trabalhos fotográficos realizados entre 2016 e 2018, Beatriz deixa ver a polimorfia da matéria mineral em estado bruto — as concreções e as saliências rochosas, as estrias coloridas, o glitter natural das pedras — e também as camadas de trabalho artístico: os focos, os cortes, as tintas. Ao mesmo tempo, a artista quer chamar a atenção para os mecanismos de controle e dominação presentes no universo da arte, e sobretudo no modus operandi dos museus, apresentando a tensão entre a matéria bruta e “selvagem” e o impulso de domesticação. Finalmente, o trabalho documenta algo disso, pois, como diz ela, os objetos, ao modo de Man Ray, “tornam-se esculturas pelo fato de terem sido fotografados”. Se aqui a imagem fotográfica cria as esculturas minerais, em seus trabalhos mais recentes Beatriz passou a se interessar mais ainda pelo potencial violento dos elementos minerais, esperando — ou sugerindo — que as rochas possam se vingar (Beatriz diz que sua motivação decorre em parte da leitura do livro de ficção científica de Léon Groc, La revolte des pierres). A transformação do seu interesse coincide com uma exploração de outras mídias — ela tem trabalhado principalmente com vídeos, alguns dos quais podem ser vistos no primeiro número da Rosa. Assim como os textos do dossiê, o trabalho de Beatriz responde ao chamado de uma matéria vibrante, a pedra-areia, e seu potencial (trans)formador.

Com este dossiê, queremos trazer para a Rosa um debate ainda incipiente, mas que ganha cada dia mais espaço. Que essas tentativas de ler materialidades possam nos ajudar a encarar o desafio contemporâneo de habitar um mundo onde os recursos se esgotam e as relações estão comodificadas e de criar novas afinidades e “intimidades improváveis” que possam transformar nossa humanidade.