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Explicações da crise

A Igreja medieval chamava de “flagelo de Deus” o chefe mais conhecido dos povos nômades que, ao longo do século V de nossa era, devastaram a civilização romana. Termo interessante, pois combinava a legenda de terror e destruição que Átila (dito “rei dos Hunos”) deixou atrás de si com uma explicação teológica dos eventos que dividiram em duas metades a história ocidental. O povo romano estava recebendo o justo castigo reservado a todos aqueles que se esquecem Dele. A imagem da crueldade sem limites — “onde ele pisa não nasce capim”, falava-se — compunha-se com a do Vingador enviado por Deus, fazendo um perfeito oximoro.

A explicação teológica não é mera versão ancestral da explicação histórica moderna — ou seja, que nada acontece sem uma causa. Ela carrega algo mais, que é próprio da ética religiosa: a culpa coletiva. A culpa requer purgação, extraída por meio de sacrifícios: sacrifícios de vidas humanas, eventualmente, assim como representações, algumas alegóricas outras nem tanto, com bodes expiatórios e ritos assemelhados. Portanto, não se trata apenas de exercício cognitivo, mas de uma atitude prática perante o mundo humano. A narrativa a respeito de um mal absoluto tem como contrapartida a projeção de seu exato oposto. Um legitima o outro.

O clero medieval, aliás, soube como ninguém representar-se como a encarnação do bem absoluto, capaz de operar a necessária purgação da humanidade. Hoje conhecemos bem a diferença entre a projeção ideal que fazia de si mesmo e sua história muito humana, feita de carne e osso. Enquanto isso não o desmoralizou, porém, foi capaz de fabricar expressões concentradas da culpa coletiva na figura, por exemplo, dos grandes inquisidores. Por diferentes que fossem suas motivações, torquemadas e savonarolas tinham em comum a excepcional capacidade de colocar, pelo menos durante um certo tempo, coletividades inteiras de joelhos, inclusive e especialmente as autoridades políticas.

A explicação teológica, na verdade, é a mãe de todas as explicações moralistas, cujas vibrações continuamos a sentir ainda em nossos dias. Os operadores lava-jatistas estão aí para não nos deixar mentir. Em se tratando de uma certa atitude perante o mundo humano, seu inimigo mortal é a política. Sempre foi. É que a política põe o foco não nos pontos absolutos, mas no entremeio. Aquelas mil tonalidades de bem e de mal que fazem o diapasão da existência humana. É certo que os absolutos também contam, como as bordas acabam contando, ao espremer ou alargar o que está no meio. Mas é nesse vão móvel que correm os negócios humanos do dia a dia, as mil maneiras pelas quais lidamos com as contradições da vida terrena e do tempo profano, individual e coletivamente. Tempo sujeito ao esquecimento do Divino, assim como gerador de entropia, testemunho da inerente fragilidade de tudo o que se passa entre seres mortais. Daí o tópico da “corrupção” e de suas possíveis causas, impresso na história do vocabulário político. Justamente desse foco de instabilidade e ansiedade nutre-se o teológico, assim como suas derivações moralistas, para operar no fundo das consciências os efeitos acima mencionados. Estes podem prevalecer ou não, dependendo das circunstâncias e do variável poder da política de se regenerar por suas próprias vias. Mas que vias são essas?

Primeiro, como já indicado, a rejeição dos absolutos, mesmo perante fenômenos tão grotescos como o nazismo, o fascismo e o stalinismo, no passado, e suas continuidades no presente. Quando um lado do conflito social projeta sobre o outro lado a ideia da maldade radical, o que está buscando ao fim e ao cabo, mesmo que pouco consciente de início, é liberar-se de qualquer autorrestrição. Eis como os absolutos acabam se encontrando, mais cedo ou mais tarde. Não há demônios a exorcizar e, por isso mesmo, não deveria haver espaço para exorcistas. Mãos humanas fizeram algo errado; mãos humanas poderão desfazê-lo. O erro não é um destino, muito menos um raio em céu azul. Pertence ao campo da compreensão racional; e se repetirá, se não for assim compreendido.

Segundo: a barbárie não é maldição enviada por uma força alienígena; ela é um produto possível da própria civilização. De certa forma, ela está no meio de nós. E talvez por essa razão seja tão difícil percebê-la. Contudo, o interessante da política democrática é que ela providencia os recursos institucionais que, de algum modo, a expõem na cena pública, ostensivamente. Recursos que às vezes até parecem esfregá-la em nossas caras.

Sim, a “crise de nosso tempo”, dizia Hannah Arendt, tende a produzir movimentos e líderes fascistas. De tempos em tempos eles aparecem por aí, nos assombrando. Em certas encruzilhadas, como agora, surgem de forma tão resoluta quanto ameaçadora. Porém, convenhamos, isso só aconteceu porque a barbárie teve tempo de sobra para fazer seu trabalho e finalmente ganhar suporte popular. Os sensores da democracia nada mais fizeram do que registrar o fato. Bem antes disso encontrou terreno fértil, na vida coletiva mais ampla, para nascer e se reproduzir. De modo que o fascismo bem pode ser entendido como o grito desesperado, lancinante, saído de uma profunda ferida social.

Em vão faremos sangrias e sacrificaremos bodes expiatórios para curá-la, embora seja sempre tentador buscar esse caminho. Ao contrário, se queremos enfrentá-la pela via da política democrática, será preciso olhar para o que foi feito antes — antes de o fascismo se manifestar — e compreender o nexo não óbvio da civilização que tínhamos com a barbárie que temos. No fim haveremos de descobrir que esse antecedente, por mais difícil de enxergar, nada contém de extraordinário — isto é, nenhum mal ou bem que não estivesse ao alcance da iniciativa humana evitar ou promover.

Se essa ideia implica dar uma mão à impiedade dos epicuristas — que diziam que os deuses existem, mas não estão nem aí — é uma bela conversa, que não precisamos ter pressa em concluir. Basta-nos, em termos práticos, que ela fortaleça a aposta de que podemos despachar os males que nos afligem pelo mesmíssimo terreno em que entraram em nossas vidas, em primeiro lugar.