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Especulação com terras agrícolas no Brasil

A crise econômica mundial que se tornou aparente em 2007–2008 intensificou o papel do capital financeiro no mercado de terras agrícolas no Brasil. A especulação com terras exerce o papel de facilitar a circulação do capital financeiro em um contexto de instabilidade econômica em nível internacional. Esta tendência é estimulada por fundos de pensão internacionais em busca de valorização de seus ativos e por sistemas de crédito. O Estado cumpre um papel central neste processo, como agente de financiamento e de concessão de terras públicas para o setor privado.

Um dos efeitos da crise econômica mundial foi uma mudança no perfil do agronegócio no Brasil com maior presença de empresas estrangeiras de diferentes setores, não só agrícolas, mas também financeiras, automotivas e petroleiras.1 Esse processo ocorreu principalmente por meio de fusões e aquisições, causando maior concentração de capitais. As empresas optam por tal procedimento com a intenção de aumentar seu capital e demais ativos, como máquinas, terras, subsidiárias, entre outros. Assim, o preço de suas ações passa a ser parte fundamental do valor de mercado e torna-se parâmetro para que consigam crédito.

Para continuar a receber créditos especiais e subsídios, o agronegócio utiliza a justificativa de sua suposta contribuição para a economia. Porém, o cálculo de sua participação no Produto Interno Bruto (PIB) não inclui rolagem de enormes dívidas e outros impactos, como grilagem de terras e destruição ambiental. Tanto historicamente quanto na atualidade, a manutenção do sistema agrícola extensivo, baseado em monocultivos para exportação, demanda uma política estatal que gera passivo econômico.2

A elevação dos preços das commodities — mercadorias negociadas nos mercados financeiros futuros — possibilitou, a partir de 2002, maior endividamento das agroindústrias no Brasil, que passaram a contrair dívidas em dólar com a expectativa de exportação futura. Isso aconteceu, por exemplo, com as usinas exportadoras de açúcar junto a tradings. As usinas fizeram promessas de produção futura para justificar sua expansão territorial e mecanização, o que elevou o preço da terra. As promessas de produção para pagar dívidas anteriores fomentaram novo endividamento e também nova expansão. A partir de 2008, quando o preço do açúcar começou a cair junto à queda dos preços das commodities em geral nos mercados internacionais em razão da crise econômica,3 diversas usinas entraram em falência. Porém, a queda nos preços das commodities não afetou o preço da terra agrícola no Brasil, que continuou a subir e a atrair empresas financeiras internacionais. Os impactos desse processo continuam na atualidade.

A realimentação que a inflação de ativos moveu ficou explícita na crise imobiliária dos Estados Unidos. Investimentos securitizados, tanto para construção de imóveis como para crédito pessoal, moveram a subida dos preços dos imóveis. Os proprietários podiam hipotecar seus imóveis com preços em ascensão e consumir, o que impulsionou o aquecimento da economia estadunidense. Com a renegociação das hipotecas, os proprietários podiam comprar novos imóveis, realimentando a subida dos preços. A especulação no setor imobiliário nos EUA e Europa influenciou os mercados de commodities em geral. Os fundos de pensão e os chamados hedge funds, como enormes poupanças em busca de valorização, moveram a subida especulativa dos preços das mercadorias negociáveis nos mercados de futuro.

Fundos de pensão internacionais e especulação com terras

Após a crise econômica mundial de 2007–2008, a possibilidade de o agronegócio acessar crédito com base em promessas de produção futura diminuiu significativamente.4 No Brasil, muitas usinas de açúcar e etanol endividadas em dólar entraram em falência com a forte queda mundial nos preços das commodities. É neste contexto que ocorrem fusões entre empresas nacionais e estrangeiras com objetivo de acessar novos sistemas de crédito. Um exemplo foi a constituição da empresa Radar Propriedades Agrícolas em 2008, que tinha como principais acionistas a empresa Cosan (com 18,9%) e a Mansilla (sócia majoritária naquele momento),5 para especular com terras agrícolas no Brasil. Nos anos seguintes, houve queda dos preços de commodities agrícolas nos mercados internacionais, mas o preço de terras rurais continuou subindo, o que indica a tendência especulativa no mercado de terras, especialmente a partir de 2010.

A principal fonte de capital da Radar vem da empresa TIAA, que administra fundos de pensão nos Estados Unidos avaliados em aproximadamente US$ 1 trilhão e atua nos mercados internacionais de terras. TIAA capta capital a juros de outras fontes, como dos fundos de pensão sueco AP2, dos canadenses Caisse de Dépôts et Placement du Quebec e British Columbia Investment Management Corporation (bcIMC), do holandês Stichting Pensionenfonds AEP, do alemão Ärzteversorung WestfalenLippe, do inglês Cummins UK Pension Plan Trustee Ltd., do Environment Agency Pension Fund, do Greater Manchester Pension Fund e do New Mexico State Investment Council. Para atuar no Brasil e burlar a legislação que limita o controle de terras por empresas estrangeiras, TIAA utiliza subsidiárias brasileiras como a Radar.

O capital financeiro promove a “terceirização” dos negócios com terras, pois fundos internacionais buscam escapar da responsabilidade por impactos causados com a especulação no campo brasileiro, alegando que não seriam proprietários diretos das terras. Da mesma forma que a predominância do trabalho terceirizado no corte de cana continua sendo utilizada como justificativa para isentar usineiros da responsabilidade pelas condições de trabalho degradantes e dos casos de trabalho escravo, uma situação semelhante ocorre em relação à responsabilidade das empresas financeiras pelas consequências socioambientais causadas pela expansão do agronegócio.

O mecanismo de “terceirização” consiste em se criar diversas empresas com os mesmos administradores, assim como subsidiárias, fazendo parecer que são de proprietários distintos. Tais empresas passam a negociar terras entre si. Cosan e TIAA (por meio da Mansilla e da Terra Viva Brasil Participações Ltda) são sócias da Radar e da Tellus respectivamente. TIAA possui outras empresas no Brasil, como a Nova Gaia Brasil Participações Ltda. A Tellus lança debêntures no mercado que são compradas por Radar e Nova Gaia. O investimento inicial parte da Cosan e de TIAA, mas parece vir de diversas empresas. A Tellus usa este dinheiro para comprar terras por meio de outras subsidiárias,6 chamadas de “veículos financeiros”. Quando do arrendamento das terras ou de suas vendas, ou seja, quando da realização dos rendimentos, a Tellus paga aos investidores os juros das debêntures, explicitando o caminho que o dinheiro percorre. Este mecanismo serve também para dificultar a localização das terras negociadas por TIAA.

Apesar deste mecanismo utilizado para esconder a atuação de empresas estrangeiras, em 2020, o Tribunal de Justiça da Bahia ordenou o bloqueio das matrículas de 107 mil hectares da Gleba Campo Largo, no município de Cotegipe, adquiridos ilegalmente pela Caracol Agropecuária, subsidiária brasileira do fundo de pensão da Universidade de Harvard (HMC). Outra decisão importante foi o parecer técnico da Divisão de Fiscalização e Controle de Aquisição por Estrangeiros (DFC-2) do Incra, que reconheceu a nulidade das aquisições de dezenas de imóveis rurais realizadas pela parceria entre TIAA e Cosan, que resultou na criação das empresas do Grupo Radar.7 Estas decisões são importantes porque a expansão do agronegócio no Brasil tem sido impulsionada por empresas financeiras internacionais com o objetivo de exercer controle sobre terras agrícolas.8

Grilagem de terras no Matopiba

Nossa investigação sobre os negócios da Radar teve como base a própria expansão do agronegócio no Brasil, principalmente nas chamadas “novas” fronteiras de exploração agrícola, como a região do Matopiba formada pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Esta área de cerrado tem sido alvo da especulação imobiliária agrícola e da expansão do agronegócio.9

A escalada do preço da terra no Matopiba transformou a região em zona de interesse para empresas financeiras que se associam aos interesses da oligarquia latifundista local. A possibilidade da compra de terras a preço baixo ocorre no processo de formação das fazendas, com desmatamento do cerrado nativo nas áreas de chapada. A formação das fazendas apropria em terras públicas por meio do cercamento de territórios de comunidades camponesas, indígenas e quilombolas, que têm vivido nesta região há centenas de anos.

A principal maneira de se formar uma fazenda sobre terras devolutas é através do processo de grilagem, que consiste no ato ilegal de forjar a titularidade e cercar a terra, expulsando as comunidades locais para posteriormente vender ou arrendar a “nova” propriedade como se estivesse legalizada. Por exemplo, as terras adquiridas por Radar e Tellus em Balsas, Alto Parnaíba (MA) e Santa Filomena (PI) têm relação com grilagem em locais onde predominam terras devolutas.10 Mesmo que uma imobiliária agrícola não adquirira diretamente as terras griladas, seus negócios especulativos fomentam tal prática por meio da “terceirização”.

O cerrado é a savana mais rica do mundo por sua biodiversidade de espécies de plantas e animais. A destruição do cerrado mudou o regime pluviométrico da região, que agora sofre com a seca. Muitos rios secaram, pois suas nascentes foram destruídas pelas plantações de soja, que retiram água e poluem o lençol freático, afetando também o abastecimento de água nas comunidades rurais que dependem dessa água para consumo humano, para pesca e para produção de alimentos. O uso de agrotóxicos pelas empresas do agronegócio também causa graves impactos socioambientais. Os agrotóxicos são muitas vezes despejados de aviões, o que contamina os rios e o lençol freático, mata peixes e roças das comunidades rurais, além da contaminação de alimentos e do aumento da incidência de doenças, como o câncer. O uso de insumos químicos nas fazendas do agronegócio gera desequilíbrio ambiental e aumenta a quantidade de insetos nas roças das comunidades próximas, devastando sua produção de alimentos. O desmatamento do cerrado extingue a fauna e a biodiversidade.

Em 2020 ocorreram queimadas sem precedentes na Amazônia, no Pantanal e no cerrado. Os impactos são devastadores para toda a sociedade. A pandemia mundial causada pelo covid-19 e as atuais crises econômicas e ambientais demandam uma reflexão profunda sobre o uso da terra, sobre a necessidade urgente da proteção da biodiversidade e da agricultura ecológica, que produz alimentos saudáveis e acessíveis nos mercados locais. Esta conjuntura demanda transformações nas relações de trabalho, de produção e reprodução, de proteção de direitos básicos à alimentação, terra, educação e saúde.

O discurso sobre a suposta “vocação” agrícola brasileira, no sentido da defesa do modelo econômico baseado nos monocultivos para exportação, tem sido reforçado repetidamente nos meios de comunicação. A expansão territorial do agronegócio visa compensar a perda de produtividade causada pela destruição dos solos, da biodiversidade e das fontes de água. O caráter extensivo do agronegócio se mantém através da aliança entre empresas transacionais e a oligarquia latifundista.

Por outro lado, o papel da produção agrícola para o mercado local, da agroecologia, e da agricultura de subsistência é comumente subestimado ou mesmo ignorado nos dados econômicos oficiais, apesar de garantir o sustento da maioria da população com alimentos saudáveis. Há na atualidade um movimento crescente de demanda por alimentos ecológicos e produzidos localmente na Europa e nos Estados Unidos. Um dos lemas deste movimento é “quilômetro zero”, que defende a agricultura local. Enquanto isso, o Estado brasileiro compromete enormes montantes de recursos públicos para financiar a produção de commodities agrícolas, que constituem uma pauta de exportação cada vez mais reduzida. Tal política estimula a destruição ambiental e a violência contra povos indígenas, camponeses e quilombolas.

Este é um momento crítico que revela evidências para a anulação dos negócios com terras da TIAA e de Harvard no Brasil e sua devolução para comunidades locais. Trabalhadores nos Estados Unidos e Europa, que têm suas aposentadorias administradas por TIAA, estudantes e ex-alunos de Harvard também se mobilizam para reivindicar que essas empresas devolvam as terras e paguem indenizações a comunidades rurais no Brasil por danos sociais e ambientais. Essas iniciativas fazem parte de uma coalizão internacional contra a especulação e a grilagem de terras, com organizações sociais do Brasil, Europa, Canadá e Estados Unidos.11 É preciso transformar os sistemas agrícolas para priorizar a produção local e ecológica de alimentos para a construção da soberania alimentar.