3

Equador, entre seísmos e renovação das esquerdas

Apresentação

foto: Yaku Heredia

Os equatorianos costumam frisar que seu país é chiquito. São pouco mais de 17 milhões de habitantes, insistem. Mas é terra de vulcões, que roncam para recordar que sua ira não está adormecida, e de cumes que cortam a neblina em busca do sol. Têm na sua Amazônia uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta. Querem agregar ao Green New Deal, um Blue New Deal. Haveria muito a contar sobre esse vizinho que, na vanguarda da questão ambiental, foi a primeira nação do mundo ― por força dos movimentos indígenas e de uma cultura diversa porque plurinacional ― a incluir na sua Constituição os direitos da natureza (2008). Qualificou, assim, o contrato social do século XXI: não basta ser social, há que ser sustentável, dotando para isso a Pachamama (a natureza) de direitos constitucionais para sua proteção e para a proteção das futuras gerações.

foto: Yaku Heredia

Esse contrato social-sustentável em disputa esteve no âmago da recente campanha eleitoral pela presidência, que resultou na vitória do banqueiro Guilherme Lasso, representante da direita conservadora, no último dia 11 de abril, e na derrota do correísmo, na pessoa do candidato Andres Arauz, cuja pretensão de se resgatar como representante da esquerda equatoriana ― e quiçá latino-americana ― redundou num imenso fracasso. Esta, hoje, surge forte e renovada com o surpreendente desempenho eleitoral do Partido Patchakutik (19,7% dos votos no primeiro turno), liderado pelo advogado indígena Yaku Pérez, ex-governador da província de Azuay, e cuja trajetória política se fez na defesa intransigente da água como fonte de vida. (Conferir, a respeito de Yaku Pérez, entrevista realizada pelo Brics Policy Center da PUC-RJ após o primeiro turno das eleições.)

foto: Yaku Heredia

A grande novidade do pleito eleitoral equatoriano foi justamente opor duas forças de esquerda, com projetos políticos e compromissos distintos. De um lado, a esquerda, autodenominada progressismo, que surfou na onda rosa das commodities quando esteve no poder, mas desrespeitou e criminalizou a vontade dos movimentos populares, e levou o extrativismo ainda mais longe, lacerando a Pachamama e a Constituição. De outro, os movimentos indígenas que ao valorizar práticas comunitárias associadas à preservação do meio ambiente, ganharam o apoio dos jovens das cidades e periferias urbanas, feministas, professores, artistas à procura de um outro modo de vida e de fazer política.

Para contar essa história, seus significados, seus detalhes, fazer conhecer seus personagens, esclarecer falsas verdades e, sobretudo, animar e aprofundar o debate sobre os rumos das esquerdas latino-americanas, a Revista Rosa, após ter promovido uma Roda sobre o tema, entre os dois turnos da eleição, publica o dossiê Equador, entre seísmos e renovação das esquerdas.

foto: Yaku Heredia

Contamos com três artigos e uma resenha. Tanto o artigo em coautoria de Alberto Acosta e John Cajas-Guijarro, quanto o de Marc Saint-Upéry dialogam diretamente com as esquerdas latino-americanas e globais a partir da experiência recente equatoriana. São textos que refutam leituras simplórias e tecem narrativas complexas, ousadas, combinando miradas retrospectivas e picadas abertas na luta política. Cobram posicionamentos e trazem a questão democrática para o centro da argumentação. São artigos longos que demandam e trazem fôlego. O terceiro artigo é da ex-senadora e ex-ministra Marina Silva. Para ela, os fatos no Equador refletem as profundas mudanças em curso no mundo, derivadas do avanço da agenda socioambiental, hoje caminho sem volta. Com arrojo, questiona a bipolaridade de um sistema político vigente entre nós que tem esvaziado a representação porque negligencia novos paradigmas. Finalmente, Isa Lima Mendes analisa com esmero e minúcia a obra de Carmen Martinez Novo, Undoing Multiculturalism: resource extraction and indigenous rights in Ecuador. Dá destaque, em sua resenha, à noção de ventriloquismo, termo que a autora do livro emprega para caracterizar práticas de expropriação do governo Correa contra aqueles em nome de quem falava, os povos indígenas. E com isso nos ajuda a entender como a resistência indígena renova o pacto democrático e pela diversidade.

No primeiro número da Rosa, afirmamos em nosso editorial: “com o mesmo vigor com que se criticam as democracias capitalistas, impõe-se repudiar com veemência os regimes burocráticos e totalitários que reivindicam a tradição da esquerda. […] Se o campo progressista reluta em enfrentar suas contradições, há que resgatar a presença, no mundo, de elementos que permitem descartar o derrotismo”. À época, as lutas dos povos originários e da nova esquerda equatoriana ficaram de fora como exemplo de tenacidade e renovação. O dossiê que agora reunimos corrige esse lapso, com a força da crítica.

Boa leitura.