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O lado escuro da paisagem

Entrevista com Eliane Robert Moraes

Motivadas por pesquisas semelhantes, mas sobretudo por uma admiração em comum pela pesquisadora Eliane Robert Moraes — professora de literatura brasileira na USP, autora do livro O corpo impossível e organizadora da Antologia da poesia erótica brasileira — Marcela Vieira e Mariana Portela Echeverri se organizaram para pensar, juntas, uma série de perguntas para esta entrevista publicada na Revista Rosa. A entrevista, cujo tom é o de uma conversa provocativa, crítica e estimulante, percorre temas como censura, ficção, desejo, fantasia, sempre tendo em mente a sexualidade — suas fendas criativas para novos mundos; seus reveses decorrentes de um moralismo em permanente atualização.


Cadelas, Mariana Portela Echeverri

Marcela Vieira — Vamos começar pelo assunto que acaba se impondo em qualquer princípio de conversa recente: o modo de vida na pandemia. Visto que o espaço físico, em nossas geografias urbanas, se restringiu com o isolamento social derivado da pandemia de covid-19, como você tem vivido seu espaço mental na pandemia? Tem sido um tempo de produção, reflexão, novos projetos?

Eliane Robert Moraes — Puxa, tem sido uma equação complicada… Estou tentando não fazer coincidir o espaço físico com o espaço mental, ou seja, não transferir as limitações do primeiro para o segundo, manter certa autonomia do pensamento e da imaginação. Mas não é fácil e percebo que, nessa tentativa, sempre esbarro num paradoxo: se, de um lado, busco preservar o espaço mental num horizonte mais aberto, sem observar fronteiras, de outro, tenho a necessidade de proteger esse mesmo espaço, de salvaguardar suas fronteiras, justamente para impedir que ele se contamine com o que vem de fora…

(Contaminar: palavra do momento, que justifica o isolamento, a distância, o cuidado, mas também o medo, o temor, a noia. É uma palavra performativa: a simples menção a ela já deflagra uma contaminação, remetendo ao ato de macular algo que seria puro, imaculado… Não gosto dessa palavra. E como poderia gostar dela, sendo eu uma leitora apaixonada de Sade, de Bataille, de Hilda Hilst? No entanto, a pandemia me obriga a dizê-la. O paradoxo não abre guarda, e nos faz prisioneiros de seus vários sentidos.)

Atualmente me imagino sentada numa grande gangorra, tendo que dar conta desse vaivém, desse fluxo constante de incertezas. Mas isso, estranhamente, não tem me impedido de refletir e de escrever. Pelo contrário, terminei 2020 com bons projetos em curso e devo fechar dois novos livros neste ano. De um lado, fico feliz com isso, mas de outro também fico muito perturbada pela consciência de fazer parte de uma minoria da população brasileira que tem emprego, plano de saúde, moradia, comida na mesa ― privilégios, enfim, que me permitem cultivar uma vida intelectual e criativa. Nesse momento em que a situação social do país se agrava, com a pandemia e a ascensão das forças fascistas, é a gangorra que fala mais alto.

Mariana Portela Echeverri — Assistindo ao curso que você organizou (Espelhos de Eros na obra de Hilda Hilst) ou coordenando o meu curso (Erotismo y la Exaltación de lo Real), houve certos momentos, quando falamos sobre o corpo ou sobre o visceral, em que não podia evitar pensar sobre esta realidade digital (até gasosa, sem toque físico) que agora se faz tão evidente. Sei que daqui nascerão interessantes e novas perspectivas sobre erotismo. Certamente ainda é muito cedo para a construção de pensamento contundente pois ainda estamos vivendo a transformação (social, pessoal) desta pandemia, mas ocorrem-lhe, Eliane, algumas ideias quanto à relação da imaginação erótica com o mundo do distanciamento social-corporal? Talvez tenha lido ou ouvido algo interessante a respeito que queira partilhar?

E. R. M. — Não é curioso que a gente venha a definir a realidade digital como sendo “sem toque físico”? Temos aí uma palavra semanticamente oscilante, que desliza entre dois significados não só distintos mas efetivamente opostos, já que digital remete tanto à tecnologia virtual, incorpórea, quanto aos dedos, parte do corpo das mais sensíveis. Não observo isso apenas como curiosidade, mas sim porque essa flutuação da palavra, deixando entrever o quanto toda significação é virtualmente equívoca, diz muita coisa sobre o estatuto do corpo na realidade digital.

Onde, então, encontrar esse corpo erótico hoje? ― a pergunta é fundamental, até porque sua resposta não se revela nas paisagens mais óbvias. Aliás, creio que talvez importe menos vasculhar a internet e toda a mídia digital em busca desse corpo do que rever os princípios da nossa procura… Quais são mesmo os mapas e as bússolas que estão nos orientando nessa exploração?

Como você mesma salienta, trata-se de uma questão que “agora se faz tão evidente”, mas que já vem nos assombrando há algumas décadas. Lá se vai um quarto de século desde o lançamento em 1996 do filme Denise Calls Up (Denise está chamando, no Brasil) dirigido por Hal Salwen, lembram-se? A história de sete amigos íntimos que viviam em Nova Iorque na chamada “nova era” da internet e dos telefones sem fio, sem jamais se encontrar pessoalmente, terá então vingado? Abrimos mão do contato físico? Aposentamos Eros? Ou será essa apenas uma fantasia recorrente da nossa contemporaneidade que, incapaz de dar conta do desconhecido que se instala na vida sensível, se agarra a lugares comuns?

Não tenho respostas a todas essas perguntas, mas quero continuar perguntando. Isso supõe, por certo, a descoberta de novos mapas e bússolas, que nos levem a explorar pontos menos prováveis da paisagem que se oferece a cada um de nós. Gosto muito do que diz a ensaísta francesa Annie Le Brun nesse sentido: para ela, é dessa procura que “pode surgir alguma luz que não durará mais que o tempo de um relâmpago. Mas esse tempo é suficiente para nos fazer sistematicamente ver as coisas onde elas não estão”. Não perco a esperança de reencontrar os dedos no digital…

M. V. — Com as redes sociais e aplicativos de encontro, acompanhamos a concepção de um modo específico de ritual do desejo, que supõe imagem, exibição e consequente circulação dentro de segmentos que se organizam em grupos de preferências demarcadas ― aqui o grupo hétero, ali o grupo bi, gay, trans, SM, passivo, ativo etc. Penso agora em Sade, e no excesso de seus personagens, na prática sexual velada comum àquele século, na alcova, na insaciedade e, finalmente, no poder de imaginação. Se traçarmos um léxico “capitalista” a essas manifestações de desejo, que supõem consumo e consumação, em que mais se distanciaram as práticas sexuais dos personagens sadeanos das que hoje se manifestam em nosso tempo, com essa demarcação dos desejos?

E. R. M. — Difícil encontrar pontos de contato nessa comparação… Embora sempre haja quem insista em considerar Sade como um precursor da suposta “liberdade sexual” contemporânea, não é? Tudo acontece como se o liberalismo político tivesse enfim conquistado um tal estágio de garantias individuais que, hoje, qualquer “indivíduo normal” seria capaz de realizar seus desejos sexuais sem o menor constrangimento. Tudo acontece como se a insaciável erótica de Sade pudesse ser substituída pelas prateleiras lotadas de uma sex-shop, onde a fantasia ganha estatuto de imaginação coletiva, pactuando com a circulação das mercadorias.

Quanto a mim, creio que, ao afirmar a irredutibilidade do desejo, Sade formula um ponto de vista diametralmente oposto ao atual que, enfatizando as diferenças formais, substitui a singularidade individual de cada ser humano pela identidade de grupo. Nada mais distante da erótica sadiana do que as “particularidades coletivas” reivindicadas pelos grupos de gays, lésbicas, sadomasoquistas etc., que reafirmam esses princípios identitários. Assim também, o aparato pornográfico, material ou simbólico, colocado à disposição de uma grande massa de consumidores, segmentada em grupos, me parece sempre limitado diante da perspectiva infinita que Sade confere ao desejo.

Pernas, Mariana Portela Echeverri

M. V. — Nos últimos anos, viemos acompanhando fortes manifestações de censura nas artes visuais no Brasil, numa lógica de apedrejamento e cancelamento, levando instituições e consequentemente curadores e artistas a reverem suas escolhas e atuações. Na sua opinião, a literatura participa da mesma persecução moral? Ou a literatura, a ficção, encontra liberdades diferentes das da arte visual?

E. R. M. — De fato, o alvo da chamada cultura do cancelamento tem se voltado bem mais para os curadores e artistas do que para os literatos que, de certo modo, andam mais protegidos desse tipo de ataque. Num país de poucos leitores e sem políticas públicas efetivas para fomentar a leitura, a produção literária parece contar pouco em termos de “opinião pública”. Não deixa de ser uma posição inquietante: ficando à margem, ela fica também a salvo, não só das proibições oficiais, mas igualmente dos cancelamentos que se propõem sem sustentação legal.

Seja como for, seria o caso de repensarmos o que significa “opinião pública” na atualidade, quando nos vemos enovelados em meio a redes sociais, streamings, fake news, googles, influencers ― e outros dispositivos sobre os quais temos pouco controle… Com tudo isso atravessando nossas vidas, que sentido teria a noção de “opinião pública” hoje? Não se trataria então de uma ideia que, para nós, deixou de ser operante como foi nos séculos passados?

Isso posto, concordo por completo com a ideia de que cancelamento é censura. Ainda que possa ser praticado por grupos alternativos, marcando diferença com as proibições oficiais, ainda que possa fazer parte de lutas legítimas, essas ações supõem o exercício de um poder que prefere calar do que debater. Aliás, é digno de nota que os agentes dos cancelamentos convoquem palavras terríveis como apedrejamento ou linchamento para suas ações. Temos que refletir sobre isso.

Essa triste escolha vocabular me faz lembrar uma bela frase do marquês de Sade, que está em Aline et Valcour: “Tudo o que é bárbaro conserva o idioma da barbárie. Parece que estamos condenados a falar a língua de nossos cruéis ancestrais cada vez que imitamos seus costumes atrozes. Vejam o estilo das sentenças, das monitórias, das citações, dos mandatos de prisão; felizmente, é impossível matar ou prender um homem em bom francês.”

Ora, parece igualmente impossível cancelar alguém em bom português… Ainda bem!

M. V. — Passando ao nosso autor em comum, o Marquês de Sade, percebemos em sua obra personagens que são muitas vezes estigmatizados em suas representações de homem (carrasco) x mulher (vítima). Mas esses papéis se invertem, o que leva à criação de Juliette, por exemplo, a grande heroína sadeana, que assumirá o papel de algoz do personagem masculino (mesmo sexualmente, com seu clitóris de proporções fálicas) e assumirá o poder, irrefreável. Nesse sentido, a ascensão de Juliette “encontra” o que há de comum no papel masculino sadeano, ancorado na liberdade, na ambição, na perversão e no crime. Annie le Brun, em entrevista publicada em Vagit-prop, Lâchez tout et autres textes, tece uma crítica aos encaminhamentos do movimento feminista pós-1970, que, segundo ela, foi pouco criativo e se limitou a reproduzir o sistema de dominação e empoderamento masculino. Você poderia comentar a personagem Juliette à luz dessa observação de Annie le Brun, opinando sobre qual seria ― ou poderia ser ― o legado dessa personagem para o movimento feminista?

E. R. M. — Você toca numa questão muito importante, e um tanto delicada. Antes de tudo porque ela nos coloca diante de outra pergunta, que é capital nos dias de hoje: que ordem de relações efetivamente existe entre feminismo e erotismo?

A resposta é menos óbvia do que parece… Ainda que coloque a sexualidade em pauta, no mais das vezes problematizando questões do gênero, o pensamento feminista tende a se concentrar nas relações de poder que envolvem a vida sexual. Isso é importantíssimo, sem sombra de dúvida, mas não é tudo. Reduzir o erotismo às relações de poder significa limitar seus domínios, o que é, igualmente, perigoso.

O erotismo é uma dimensão fundante da nossa humanidade e nos implica a todos, sem exceção. Queiramos ou não, ele nos coloca diante do mistério da origem, da própria existência. É algo grande, maior que nós e por isso mesmo precipita sentimentos paradoxais. Atrai e gera repulsa. Provoca medo e júbilo. Daí que venha a mobilizar todo tipo de discurso, do mais sublime ao mais chulo, do mais poético ao mais estereotipado.

Estou certa de que o feminismo faz um imenso trabalho quando denuncia as práticas e os discursos violentos, mas é preciso tomar cuidado para que tais denúncias não se transformem em uma patrulha que se julga no direito de pontificar o que é correto e errado em termos eróticos. Pois erotismo é fantasia e, como tal, supõe liberdade de criação. Penso que um dos maiores desafios da nossa contemporaneidade é o de conseguir combater os preconceitos e as violências, mas mantendo viva essa liberdade. Qual? A liberdade representada na figura de Juliette, claro!

M. P. E. — Hilda Hilst disse “uma aventura obscena de tão lúcida”, frase maravilhosa que evoca o perigo (obsceno, transgressor, arriscado) da própria vida, o perigo da liberdade. Às vezes parece posta em segundo plano a importância da experiência do perigo, do medo, do desconhecido (ou parece que segurança e perigo entram em competição, ou um caminho ou outro, criando um discurso muito polarizado). Como equilibrar as lutas sociais fundamentais contra a violência (machista, homo/transfóbica etc) e a proliferação necessária do discurso do consentimento com o perigo próprio da sedução e do erotismo?

E. R. M. — Também adoro essa frase! Tem tanta coisa dentro dela, não é?

Acho que ela se conecta a fundo com outra frase genial, do Henry Miller, publicada num ensaio em que ele reage aos seus censores, ao dizer que “falar de obscenidade é quase tão difícil quanto falar de Deus”. Por certo, uma aproximação tão inesperada como essa, entre o sexo e Deus, visava a chocar as “boas consciências” de uma sociedade que, valendo-se de seus últimos cartuchos, resistia em aproximar os frutos proibidos da imaginação pornográfica dos ideais “elevados” da arte. Entre os anos 1930 e 1940 ainda havia pouco espaço para acatar as fabulações eróticas que ousavam escapar das tradicionais zonas de tolerância onde eram confinadas.

Porém há algo mais nessa frase que me parece bastante próximo da formulação de Hilda. Ao associar dois termos tão distantes, Miller expõe uma afinidade de base entre eles, a saber: se o obsceno e o divino se aproximam é porque ambos excedem o que se considera humano. Não será esse mesmo excesso que preside a ideia de “obscena lucidez” da nossa escritora? Não está ela igualmente investigando a “obscura noite da alma” de que fala o autor de Sexus? Não se trata, para ambos, de buscar acesso a esses conhecimentos secretos que permanecem interditados ao mundo social e só se desvelam ao preço de sua própria falsificação?

Desnecessário lembrar que aventuras artísticas e existências como essas de Hilda Hilst e Henry Miller implicavam um risco nada tímido. Tratava-se, para eles, de ultrapassar os limites não só das normas sociais, éticas e políticas, mas sobretudo da própria ideia de humanidade. Tratava-se de forçar a passagem do humano ao inumano e de explorar aquelas regiões longínquas da consciência que dão acesso a “formas de conhecimento que exploram as fronteiras do cogito”, para citar Susan Sontag a respeito de Bataille. Daí a insistência de borrar as fronteiras entre vida e obra, de buscar os vasos comunicantes entre corpo e espírito, entre presença e representação, entre experiência e abstração, em sintonia com a afirmação do poeta Roberto Piva que, em outra frase genial, diz: “Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”.

Falamos, pois, do perigo da liberdade.

Mas essa liberdade se conecta apenas obliquamente com aquela reivindicada pelas lutas coletivas contra a violência, pois ela nunca demanda qualquer forma de inclusão. Pelo contrário, para ser operante e verdadeira ela pede, exige e clama por exclusão. Não por acaso, seus praticantes sempre se identificaram como excluídos, malditos, marginais… A liberdade que conhecemos em Sade, Bataille, Miller, Hilda ou Piva, para citar só os nomes que aqui apareceram, nada tem em comum com um programa de ação. Tampouco supõe um conteúdo programático que possa orientar a pragmática de uma militância, de uma luta, de uma reivindicação social.

A liberdade perigosa desses criadores não é, portanto, um ponto de chegada. É, antes, um farol, uma luz que brilha ao longe, na nebulosa da noite, para nos ajudar a continuar a navegação. Contudo, ainda que o farol não se confunda com a bússola ― pois esta serve para nos apontar o caminho ―, sua luz ofuscante é fundamental. Não podemos passar sem ela porque é seu vislumbre intenso, fugidio e até mesmo perigoso que alimenta os nossos sonhos de liberdade: é preciso que essa luz brilhe no horizonte impossível para que a gente se ponha a navegar para conquistar os possíveis pelos quais lutamos.

M. P. E. — A analogia do farol parece-me brilhante (precisamente!). Faz-me pensar em opacidade e transparência e como estas duas texturas se complementam exercendo papéis diferentes, gerando processos, fins e lugares de exercício também completamente diferentes. Esse lugar do desvario é “imantado na cena simbólica” e como tal concebe o inconcebível e não pratica o impraticável (eu adoro e partilho muito esta frase sua). Acho que através desta repetição e reformulação dos temas que persistem aqui, vamos encontrando certa clareza entre a névoa. Há uns dias eu dizia aos alunos que “a confusão é essencial para o entendimento do erotismo” e no fundo falava sobre essa “nebulosa da noite”. Existe então um mistério que é inerente à dimensão erótica. Podíamos relacionar esta ideia com a característica transgressora do erotismo, com a premissa de Bataille de que sem proibição não haveria erotismo. Concorda?

E. R. M. — Concordo sem reservas com a sua afirmação: “existe um mistério que é inerente à dimensão erótica”. Isso está nos escritores citados acima e em muitos outros que, como eles, interrogaram os princípios da vida erótica. Li há poucos dias uma formulação semelhante assinada por Jacques Lacan: a sexualidade “é exatamente esse território onde não sabemos como nos situar a respeito do que é verdadeiro”. Ao comentar essa frase em seu livro sobre Lacan, Vladimir Safatle reitera semelhante ideia ao afirmar que, “diante do sexual, sempre nos vemos diante de algo irredutivelmente opaco e resistente a toda operação social de sentido”. Concordando também com ele, eu tenderia a dizer que só é possível “encontrar certa clareza entre a névoa” quando se respeita a obscuridade da névoa, sem tentar iluminá-la. Clareza, então, ganha aí o sentido de caminho ― ou seja, da descoberta de um caminho que se trilha na escuridão, pois não há claridade que se sustente nos domínios noturnos da sexualidade… O erotismo é matéria obscura que se torna ainda mais obscura quando examinada à luz do dia.

M. P. E. — Falando da questão da romantização, acredito no dever social e intelectual de destruir certos ideais opressores (a busca de um idealismo cego leva-nos a caminhos difíceis, tensos e opressivos). No entanto, existe na linguagem romântica uma potência criativa muito forte, ligada a algo primordial, à obsessão, à dor, ao arrastar-se e consumir-se pelo outro. Parece haver no peito e nas bocas liberais um novo moralismo e um terror a “promover má conduta”. Será que o “dever” cada vez mais se mistura com o imaginário criativo e que às artes se lhe outorga um papel demasiado pedagógico? É possível encontrar um equilíbrio entre o desvario criativo e o cuidado na vida real? Ou serão ficção e realismo mundos fundamentalmente separados?

E. R. M. — Creio que essa pergunta retoma questões que já apareceram aqui na nossa conversa. E não observo isso criticamente, para denunciar a repetição, mas muito pelo contrário: vejo aí um tema que nos inquieta sem cessar e por isso reverbera reiteradamente. Como encontrar, hoje, um ponto de equilíbrio entre o sonho e a ação? Entre a arte e a militância? Entre a claridade da lucidez e a escuridão da obscenidade? Entre o desejo de singularidade e a adesão ao coletivo? Ou, como está tão bem colocado aqui, entre o desvario criativo e o cuidado na vida real?

É realmente incrível como esse feixe de questões pode se desdobrar indefinidamente, oferecendo uma cartografia das inquietações que nos assombram neste momento. Mais precisamente, das inquietações que borbulham nas mentes preocupadas com as grandes ameaças à vida sensível em curso, que só fazem ganhar terreno. Trata-se, pois, de saber que ordem de respostas os artistas, os poetas, os pensadores e os criadores em geral podem dar às demandas éticas e políticas da contemporaneidade.

Acho que, antes de tudo, é fundamental pensarmos na qualidade das nossas respostas a essas demandas que nos convocam com a maior urgência, sobretudo no Brasil onde a necropolítica avança a largos passos. Sabemos, porém, que à arte não cabe apenas repetir, pura e simplesmente, as palavras de ordem das lutas contra as diversas violências que assolam o país. É preciso formular uma qualidade de resposta que perturbe a ordem, que coloque em questão o que tende a se engessar, que abra possibilidades ainda não aventadas… Se a ação coletiva se orienta por meio das palavras de ordem, que se oferecem como uma pedagogia, o ato artístico e cultural só se valida com a criação de palavras de desordem, que colocam o status quo em permanente questão.

Não é fácil equilibrar esses dois vetores, mas também não nos faltam exemplos incríveis nesse sentido, no mundo e no Brasil. Para citar um só, recordo aqui que uma canção extraordinária como “Águas de março”, composta por Tom Jobim em 1972, foi criada como resposta à ditadura militar, no sangrento mandato de Garrastazu Médici. A canção confirma, em definitivo, que o lirismo não precisa abrir mão de seus próprios artifícios para responder de forma candente aos ataques violentos.

Assim também, por analogia, o desvario criativo não precisa ceder aos novos moralismos e abrir mão de sua violência poética que, imantada na cena simbólica, não se confunde com a violência praticada na cena histórica. Afinal, conceber o inconcebível nada tem a ver com praticar o impraticável. De quebra, nunca é demais lembrar que o contato com obras que abordam situações e experiências extremas também faz parte do “cuidado com a vida real”, pois não só ajuda a exorcizar nossos fantasmas mais terríveis como pode nos proteger da tentação higienista que sempre encontra acolhimento nos contextos fascistas.

M. P. E. — Pensemos um pouco no obsceno contemporâneo, já que a ideia de obsceno (e mesmo transgressor) muda com o contexto e com a época. O que é transgressor/obsceno hoje na arte/literatura/cinema em relação ao erotismo?

E. R. M. — É verdade que a noção de obsceno é atravessada pela história e que muda de época a época. A começar pela própria palavra, cuja etimologia é bastante complexa. Na Antiguidade, por exemplo, o vocábulo latino obscenus significava “mau agouro”, “mau presságio” ou “funesto”, “sinistro”. Dizem alguns estudiosos que pouco a pouco ele foi sendo erotizado, tanto por se relacionar ao “impudico” quanto por se referir aos órgãos genitais masculinos. Mas tudo aí é muito impreciso e prova disso é que, na modernidade, o termo foi ganhando um sentido que se tornou corrente por muito tempo e, de certa forma, vigora até hoje: o de “fora de cena” e até mesmo “oposto à cena”, ou seja, o que não se pode levar ao palco por ser atentatório à moral. Na atualidade, quando parece que tudo pode ser levado ao palco, seja ele físico ou virtual, o significado da palavra ganha novos deslocamentos, mesmo que persista nos nossos dicionários…

Acho isso interessante porque se trata de um termo que mostra e esconde ao mesmo tempo, não é? Aliás, o próprio significante é flutuante por se mostrar e se esconder sucessivamente, obrigando-nos a procurá-lo mais e mais. Então, para responder mais diretamente à pergunta, creio que uma das nossas tarefas mais desafiantes hoje é justamente a de procurar “o que é transgressor/obsceno na arte/literatura/cinema em matéria de erotismo”. Trata-se de um desafio e tanto, já que, retirado do gueto que lhe garantia a marginalidade, o erotismo está sendo cada vez mais integrado ao tecido social. Não é difícil perceber que, nas últimas décadas, a proliferação de imagens eróticas colocadas em circulação pelo aparato midiático vem trabalhando no sentido de neutralizar a vocação transgressiva da sexualidade. Definitivamente, o cenário não é dos mais animadores.

Será, então, que a aventura da transgressão foi irremediavelmente normalizada pelo mercado? E o poder de subversão do sexo, terá se perdido para sempre?

Quero crer que não. Prefiro seguir a pista que nos oferece a própria palavra, flutuante e transgressiva, e apostar no deslocamento do olhar. Italo Calvivo, ao reavaliar sua forma de perceber o que estava ao seu redor, propõe que “toda vez que o mundo aparece condenado a um peso, desperta-se um sonho de voar para outro espaço”. Trata-se, então, de mudar de ponto de observação, valer-se de outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e de controle. Assim também, prefiro acreditar que cabe a nós a tarefa de reconhecer novas possibilidades de subversão que se escondem a olhos nus. Prefiro continuar atenta à voz poética de um Apollinaire intenso e transgressor que continua nos convidando a arriscar um encontro com o inesperado: “Perder, mas perder mesmo para deixar lugar ao achado.”

M. P. E. — Por vezes encontramo-nos com obras ou fragmentos literários, poéticos ou fílmicos, que não consideramos de entrada como particularmente eróticos (não evidentemente) ou talvez algo que não entrasse no nosso imaginário erótico pessoal e que, de repente, nos surpreendem abrindo um mundo de fabulações sensacionais inesperadas. Recorda algum texto, filme ou até música em que isto lhe tenha passado? Quais?

E. R. M. — Volto ao Henry Miller para responder, agora de forma mais breve. No mesmo ensaio que já citei aqui, escrito por ocasião da proibição de seu Trópico de Câncer, o escritor observa que “não é possível encontrar a obscenidade em qualquer livro, em qualquer quadro, pois ela é tão somente uma qualidade do espírito daquele que lê, ou daquele que olha”. Para Miller, essa “qualidade do espírito” estaria intimamente relacionada à “manifestação de forças profundas e insuspeitas, que encontram expressão, de um período a outro, na agitação e nas ideias perturbadoras”. Ora, ao esvaziar a obscenidade de seus conteúdos e separá-la das formas a que se convencionou relacioná-la, o autor de Sexus abre espaço para interrogarmos o erotismo como uma realidade outra, autônoma, independente, que muitas vezes supera, ou mesmo corrige, a realidade imediata, empírica e “realista”.

Basta substituir a expressão qualidade do espírito de que fala Miller pela de imaginação para se vislumbrar o erotismo como uma energia em movimento, que pode estar circulando em qualquer lugar. Na qualidade de “manifestação de forças profundas e insuspeitas”, sua expressão será mais e mais pulsante em contextos inesperados, que perturbam a ordem social. Daí em diante, para se reconhecer a potência de Eros em contextos menos prováveis, é só seguir a orientação de Sade, que diz e repete por meio de seus personagens mais lascivos: “Toda felicidade do homem está na imaginação”.

Repasso o convite que vocês me fazem para as leitoras e os leitores desta simpática Revista Rosa.