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Entreabrir: os Poemóbiles de Augusto de Campos e Julio Plaza1

original en español

História de um encontro

Na opressiva Espanha franquista dos anos 1950, Julio Plaza — que então vivia em Madrid — descobriu os poetas concretos brasileiros, o grupo Noigandres. Formado por Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald, os escritos e as revistas deste grupo inspiraram Plaza em suas pesquisas estéticas. A arte no horizonte do provável, de Haroldo de Campos, será um livro, por exemplo, importante nos trabalhos de Plaza com a “arte combinatorio, permutacional y modular”2 e dará início a uma correspondência entre o artista espanhol e os poetas brasileiros. O trabalho com as probabilidades e a obra aberta era tanto uma preocupação do grupo ao qual Plaza pertencia (sobretudo a partir de 1963, com a criação do grupo Castilla), quanto do grupo brasileiro.

Open. Arquivo Augusto de Campos.

Em 1967, Plaza recebeu uma bolsa para viver no Brasil, onde chegou acompanhado de outros artistas espanhóis que participariam da Bienal de São Paulo. Imediatamente tomou contato pessoal com os poetas concretos paulistas e, em 1968, pediu a Augusto de Campos um prefácio para Objetos, seu primeiro livro-objeto. A obra era formada por uma série de figuras geométricas em páginas que se projetavam e criavam uma terceira dimensão quando abertas pelo leitor. A princípio, Augusto pensou em escrever um texto convencional de apresentação, mas, enquanto manipulava uma figura em forma de losango, decidiu que podia colocar as letras sobre a própria figura, combinando linguagem e visibilidade, produzindo assim um campo intersemiótico de experimentação. Impulsionado pela ideia, compôs o poemóbile “Abre”, iniciando a série de colaborações entre ambos. Alguns anos depois, em 1974, foi editado Poemóbiles, formado por doze poemas, dois dos quais em inglês — “Open”, tradução criativa de “Abre”, e “Change” — e um em espanhol, “Cable”. A primeira edição ficou a cargo dos próprios autores, tendo uma tiragem de mil exemplares e com um formato de 15x21 centímetros. Dez anos depois, foi reeditado pela editora Brasiliense e, em 2010, uma nova impressão pela Annablume.

A colaboração não terminou por aí: em 1975, voltaram a fazer um livro-objeto juntos intitulado Caixa preta, que lembra as valises de Marcel Duchamp (“toda a arte cabe numa valise”, costumava dizer o autor de Le Grand Verre) e que contém diversos objetos: dentre eles, um disco com uma gravação de Caetano Veloso dos poemas “O pulsar” e “Dias dias dias”. Um ano depois, outra obra em colaboração: dessa vez, um texto em “prosa porosa” (escrita crítica em forma de poema) sobre Duchamp e com desenhos alusivos de Julio Plaza, sob o título de Reduchamp. Além das colaborações na área gráfica, Campos e Plaza também participaram juntos em exposições, como as que fizeram com os hologramas poéticos Triluz (Museu da Imagem e do Som de São Paulo, 1986) e Idehologia (também no MIS). A amizade, que havia começado em 1968, continuou até 2003, ano da morte de Plaza.

Luxo. Arquivo Augusto de Campos.

Para além da figura inspiradora de Duchamp na produção de livros ou “não livros” (como os chamou Augusto de Campos), é preciso sinalizar — sobretudo nos Poemóbiles — a presença de Alexander Calder, uma referência fundamental para os artistas concretos brasileiros. Não somente por sua presença com exposições individuais no Rio de Janeiro e em São Paulo, e na Bienal Paulista de 1951, mas também para o desenvolvimento teórico e a polêmica em torno da abstração. O problema da duração e da simultaneidade, que Augusto tratou em seu texto “Poesia, estrutura”,3 de 1955, adquire uma nova dimensão com os Poemóbiles. O movimento, que nos poemas da fase ortodoxa (entre 1956 e 1960) estava associado ao movimento dos olhos, agora se introduz na própria página (algo que Augusto havia tentado fazer anteriormente na plaquete “Cicatristeza”, mas que não obteve tanto êxito).4 Se o desdobrar do tempo próprio do poema convencional — um verso depois do outro — havia sido destituído do pelo concretismo através da composição espacial e ideogramática, os Poemóbiles resolviam materialmente a questão temporal. O projeto de substituir a sucessividade pela simultaneidade, assim como em um plano intelectual ou analítico-discursivo pelo sintético-ideográfico, encontrou nesses trabalhos em colaboração uma nova inflexão: a simultaneidade durava e, de alguma maneira, dramatizava-se como se fosse a própria materialização de um pensamento poético.5 “Viva vaia” e “Luxo” são dois bons exemplos disso porque, na versão de Poemóbiles, adquirem — como nos móbiles de Calder — uma duração no tempo. Por meio das páginas que se projetavam e das manipulações feitas pelo leitor, “luxo” e “lixo” se sucedem, convivem, se suprimem, se superpõem. Não vêm um depois do outro, nem convivem estaticamente: somos testemunhas da metamorfose de um no outro.

Poemas-brinquedo:6 o entre

A experiência dos Poemóbiles coloca em cena o entre. O entre escapa tanto ao binarismo estrutural quanto à síntese dialética: é um terceiro elemento que não se associa a nenhum dos termos nem resolve suas contradições. Não sintetiza, apenas funciona como um devir ou, para utilizar um termo de Augusto de Campos, como uma metamorfose.7

O entre atua em pelo menos três níveis: na relação entre as artes, entre os signos e no sentido. Ao mesmo tempo, atua entre esses três níveis associando-os permanentemente e estabelecendo um jogo de abertura e fechamento, de conexão e retração.

Maquete dos Poemóbiles. Arquivo Augusto de Campos.

Em um ensaio em que evoca Julio Plaza, o poeta paulista fala de “um jogo estudado de cortes. Algo que ficava ‘entre’ o livro e a escultura”8 e menciona um termo muito usado naquela época: intersemiótica (“diálogo intersemiótico”) e interdisciplinaridade, que não se pode confundir com o que Wendy Steiner denominou “interartístico”.9entre cria um espaço que não é interartístico (não é poema + artes plásticas) nem uma síntese de poesia e artes plásticas. É um espaço paradoxal — um campo experimental — no qual não se perde as especificidades relativas ao poema ou ao desenho, surgindo assim algo totalmente novo. “Abre”, o primeiro poema da série, permite ver todos esses deslocamentos. Por um lado, “abre” os Poemóbiles e indica a lógica básica da coletânea: abrir e fechar (a página), os dois imperativos que mobilizam aqueles poemas. Entre o abrir e o fechar encontra-se justamente a preposição “entre” que aparece em cinco linhas (4 – 6 – 10 – 12) formando diferentes combinações: “entrevetreabre”, “entreabrefecha”, deixando como sobra um “ve” que é como o momento da piscada entre o olho e a folha. O poema funciona como um manual de instruções e uma prática da percepção que deve elaborar palavras coloridas e a palavra das cores. O campo estético-perceptivo da coletânea está traçado.

Rever. Arquivo Augusto de Campos.

As relações dos Poemóbiles com a arte concreta anterior são muito fortes: além do uso das cores primárias e das figuras geométricas que dominam a composição, também é visível a releitura que Augusto de Campos faz de sua própria obra. Pelo menos três composições (“Rever”, “Viva Vaia” e “Luxo Lixo”) são novas versões de “velhos” poemas. As reversões incluem variações tipográficas (notável em “Luxo Lixo”, no qual a tipografia pompier é trocada por uma mais sóbria), acentuações icônicas (acentuação da reversibilidade em “Viva Vaia”) e até novos sentidos, como em “Rever” (“voltar a ver” e a “sonhar”, em francês) que se transforma em “rexer” (acentuando os reflexos espelhados entre ver e sonhar). Mas, assim como existe um impulso retrospectivo, também há uma série de referências criptografadas que falam da troca que se está operando na poética de ambos os artistas. Uma é a de John Cage, sobre quem Augusto de Campos escreveu um texto em “prosa porosa” intitulado “Cage: Chance: Change”, em 1974.10 O jogo de palavras se assemelha ao poema “Change” (chance, change, word, world). Mas, ainda mais importante, porque se vincula ao projeto de colaboração em seu conjunto, é a referência a Marcel Duchamp que, se nos Poemóbiles não é tão explícita, se faz evidente nos dois outros livros que publicaram juntos: Caixa preta e Reduchamp. Este último é uma elaboração icônica de Julio Plaza sobre um texto também editado em 1974 na revista marginal Pólem: “Marcel Duchamp: o Lance de Dadá”.

Maquete dos Poemóbiles. Arquivo Augusto de Campos.

a caixa numa valise (1941)

contendo réplicas-miniaturas e reproduções em cores

é um museu portátil

das invenções de duchamp

e talvez

presque un art

o livro do futuro

[…]

unindo signos

verbais e não verbais

num mesmo design

duchamp-designer-poeta

fez da palavra a pólvora

apta a detonar

o seu crítico

objet-dard11

A mudança que implica a releitura de Duchamp significa — no caso de Augusto de Campos e Julio Plaza — entreabrir a arte: do visual ao verbal, do poético ao pictórico, da palavra à imagem, do livro ao espaço, da arte à não arte. A operação pode resumir-se ao que ambos, de um modo diferente, fazem ao livro enquanto objeto: Julio Plaza usurpando-o desde sempre, transformando a tela em página, uma página que se pode manipular, dobrar e transportar (da parede ao papel). Augusto de Campos trabalhando o poema a partir de desenhos geométricos prévios, preparados por um artista plástico. Juntos rasgam a página para que o livro saia de si mesmo e ganhe relevo para romper a superfície plana que o caracteriza desde a sua origem. Tal operação assemelha-se a outras que partem de diferentes práticas: Lucio Fontana rasgando os quadros, Luis Buñuel cortando o olho e, metaforicamente, a tela, ou Lygia Clark dobrando a matéria em seus Bichos. A operação é dupla: corte e dobragem.

Cable. Arquivo Augusto de Campos.

A página — que é a unidade espacial dos poemas de Augusto de Campos — é, por sua vez, o lugar que se quer transformar. Se usa o papel projetado que rasga a página e produz uma dobra entre as superfícies: “cisão em que cada termo relança o outro, tensão em que cada dobra é distendida na outra”,12 escreve Gilles Deleuze a propósito da dobra. Em “Cable”, o prefixo “in” se desdobra em dois sentidos, como “dentro de” (e efetivamente a palavra está oculta na segunda superfície) e como “privação”. O comunicável se transforma em incomunicável (para isso se passa por dois termos: “comun” e “cable”, que é o cordão que se tensiona e distende, como o poema, para transmitir mensagens). Pela “poética da indeterminação” de que fala Marjorie Perloff,13 o poema admite e até estimula uma leitura atual — a partir da Internet, do Wi-Fi ou das redes de comunicação sem fio (wireless) —, mas que, como se lê no poema, o comum permanece impossível. Ou, numa reviravolta, por mais que se multipliquem os cables,14 o incomunicable é a única garantia do comum.

Impossível. Arquivo Augusto de Campos.

A metamorfose é a chave poética de Augusto de Campos e de Julio Plaza. O que se alcança mediante essas metamorfoses audazes, além de ampliar as fronteiras do visual, da arte e da poesia? São a realização no papel de mundos virtuais, da possibilidade (ou da potência) de transformar o real pela invenção. Mas por que esta transformação se opera? Talvez a resposta esteja no poemóbile “Impossível” (“Impossible”), quando o leitor entrevê, no abrir da página, o que não é possível se tornar em “um possível” e o virtual (“não ser”) em atual (“ser”). Talvez não seja outra a atividade da arte: atuar no entre, para mostrar-nos possível aquilo que, antes, nos parecia impossível.