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Ensino virtual e barbárie: notas sobre a atualização da noção de indústria cultural

No início de outubro, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou resolução que sedimentou as bases para a continuidade do ensino remoto até dezembro de 2021. No que se refere às universidades, a normativa permite uma série de “inovações”, tais como:

  1. “adotar a substituição de disciplinas presenciais por aulas não presenciais”;
  2. “adotar a oferta na modalidade à distância ou não presencial às disciplinas teórico-cognitivas dos cursos”;
  3. “implementar teletrabalho para coordenadores, professores e colaboradores”; e
  4. “utilizar mídias sociais de longo alcance (Whatsapp, Facebook, Instagram etc.) para estimular e orientar os estudos e projetos”.

Diante desse cenário, parece oportuno recuperar uma reflexão apresentada por Giorgio Agamben. Desde o início da crise do covid-19, o filósofo tem escrito breves ensaios extremamente polêmicos (Caldwell, 2020; Frateschi, 2020). Como sua preocupação com a estabilização de políticas excepcionais restritivas de liberdades e formas associativas tem guiado a disposição de sua crítica, ele tem expressado profunda desconfiança contra medidas de saúde coletiva, como, por exemplo, quarentena, interrupção de atividades presenciais e isolamento social. Tem evidentemente razão quem, como Frateschi (2020), considera que, na prática e levada ao seu limite crítico, este tipo de visão realiza o discurso negacionista da extrema direita.

Não é nosso objetivo adentrar neste debate, mas, ao contrário, problematizar um pequeno texto do autor italiano muito menos difundido, que trata da adoção de aulas on-line pelas universidades. O título é Réquiem para os estudantes. Seu objetivo é mostrar que a substituição da didática presencial pela “tecnologia digital” implica o fim do estudantado como forma de vida. Para Agamben (2020), a “barbárie tecnológica” subjacente a este processo transformará negativamente não apenas a experiência com a universidade, mas também as cidades universitárias, alterando o próprio espaço de socialização. Esses processos implicariam a mitigação da relação entre estudantes e docentes, o desaparecimento de discussões coletivas e o cancelamento das vivências comuns, agora aprisionadas em uma tela.

É curioso notar, no entanto, a lógica de causalidade movimentada pelo filósofo italiano e a consequente estrutura de responsabilização sugerida. Após revelar ao leitor que “de todo fenômeno social que morre se pode afirmar que, em certo sentido, merecia o seu fim”, Agamben acrescenta: “e é certo que nossas universidades chegaram a tal ponto de corrupção e de ignorância especialística que não é possível lamentar-lhe”, razão pela qual mesmo a forma de vida dos estudantes já recebera empobrecida as novas políticas educacionais atreladas à pandemia. O que fazer, então, diante desse amálgama entre corrupção e tecnocracia, escancarado com a crise do covid-19?

Dois pontos devem “estar firmes”. Primeiramente, Agamben sustenta que os professores, ao aceitarem realizar seus cursos somente on-line, não apenas se submeteriam “à nova ditadura telemática”, como seriam “o perfeito equivalente dos docentes universitários [italianos] que em 1931 juraram fidelidade ao regime fascista”. Em segundo lugar, Agamben defende que “os estudantes que verdadeiramente amam o estudo deverão recusar-se a se inscrever em universidades transformadas dessa maneira”. Mas não só, já que caberia a esses mesmos estudantes “constituir-se em novas universidades”. Somente nelas poderia nascer — talvez — “uma nova cultura” que faça frente à “barbárie tecnológica”.

Ora, não seria difícil ver no argumento de Agamben a manifestação de um conservadorismo ou um grito ludista. No entanto, é igualmente possível compreender o acerto do filósofo italiano lá onde ele erra fundamentalmente. Ao apelar para o amor e a responsabilidade como estratégias de enfrentamento da “barbárie tecnológica”, Agamben tanto descreve um sintoma da socialização capitalista, em que a defesa de convicções íntimas se apresenta como alternativa frente às regularidades abstratas que dominam a reprodução social, quanto hipostasia a barbárie, retirando-a de sua conexão com os conflitos sociais e internalizando-a enquanto propriedade da tecnologia como tal. O apelo à cultura e à responsabilização — isto é, a posição dos valores como eixos estruturantes da ação — são corolários de um diagnóstico que inverte a análise da dimensão material, que caracteriza a socialização capitalista, pelo engajamento cívico, que nos transformaria em senhores da situação.

Consequentemente, o que falta a Agamben é a noção de mediação social: “não há nada, mas nada mesmo, sob o sol que, ao ser mediado pela inteligência humana e pelo pensamento humano, não seja ao mesmo tempo também mediado socialmente” (Adorno, 1993, p. 32). Esta é a razão pela qual sua crítica é fetichizada. Ao não levar suficientemente em consideração a reprodução social, os apelos à “barbárie tecnológica” e à “ditadura telemática” bloqueiam a pergunta pelo enredamento da técnica com as relações sociais pelas quais é abrangida. Daí a importância de retomar a compreensão da barbárie como um descompasso entre os avanços tecnológicos e o atraso típico de uma humanidade que se caracteriza pela agressividade primitiva, pelo impulso de destruição (Adorno, 2020, p. 169).

Adorno, a indústria cultural e o ensino virtual

O ponto central é questionar o modo de desenvolvimento desse descompasso. Isso é importante para que a reflexão crítica também possa incorporar o “solucionismo tecnológico” — ideologia que procura resolver todo e qualquer problema social por meio da análise de dados e seus aplicativos (Morozov, 2013, p. 5) — e, assim, problematizar o corriqueiro descarrilhamento subjetivista que se caracteriza pela “libidinização das bugigangas” (Adorno, 2003, p. 63). Se a aula on-line e todo o seu aparato tecnológico se apresentam como uma necessidade “evidente”, algo “natural”, faz-se urgente relembrar que a necessidade não só é uma categoria social, como “a invocação da natureza perante qualquer necessidade é sempre meramente a máscara de frustação e dominação” (Adorno, 1972, p. 392).

Mas de que tipo de dominação estamos falando? No âmbito de uma “teoria da lei social” (Adorno, 1993, p. 245) que se preocupa em apreender como o vir a ser das coisas se apresenta enquanto algo em si, no conceito adorniano de indústria cultural encontramos uma chave de leitura particularmente importante para uma crítica à adoção de programas virtuais de ensino no que se refere aos seus meios, sua funcionalidade sistêmica e ao tipo de trabalho docente exigido. Longe de significar uma crítica à mercantilização da cultura, a indústria cultural, tal qual definida por Adorno e Horkheimer (1981, p. 154), designa um sistema de dominação, um desdobramento cuja origem está nas leis universais do capital.

Ao classificar, organizar e computar os consumidores, a indústria cultural reduz os sujeitos a “material estatístico […] distribuídos em grupos de rendimentos” (Adorno; Horkheimer, 1981, pp. 144–45). Daí a compreensão de que ela se constitui pela organização de dados, de tal modo que “o mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural” (Adorno; Horkheimer, 1981, p. 147). Essa filtragem produz a modelação do indivíduo — a pseudoindividualidade —, sua padronização e integração à acumulação de capital. Mas não só: como a indústria cultural produz igualmente sociedade, ela também está intimamente associada à ideia de duplicação do mundo que entifica o existente.

Se na análise do filme já se considerava que “quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo” (Adorno; Horkheimer, 1981, p. 148), o surgimento das plataformas digitais aprofunda ainda mais o argumento de que “o existente se torna sua própria ideologia através do feitiço lançado pela sua fiel duplicação” (Adorno, 1981, p. 301). Uma vez que a indústria cultural “deve incluir todas as forças da integração social em um sentido muito amplo” (Adorno, 1993, p. 255), a mediação do aprendizado pelas novas tecnologias também fortalece a conversão da organização do mundo em sua própria ideologia, exercendo “uma pressão tão imensa sobre as pessoas, que supera toda a educação” (Adorno, 2020, p. 155).

Compreendido nesses termos, o ensino virtual não se deixa reduzir às denúncias de corrupção universitária e à suposta perda de comprometimento ético de seus professores, como gostaria Agamben. Ele também não pode ser rigorosamente apreendido pela crítica agambeniana à frieza e em defesa do amor. Deve, ao contrário, ser diagnosticado como um novo mecanismo de captura da educação pela expansão da forma-mercadoria. Ou seja, a educação, cujo fim passaria pela construção de uma “consciência verdadeira” capaz de “fortalecer a resistência, e não a adaptação” (Adorno, 2020, pp. 154 e 157), se vê metamorfoseada em meio para a rentabilização das chamadas “plataformas de ensino”. Estas, ao não cobrarem taxa alguma do público — alunos e professores —, repetem uma estratégia denunciada décadas atrás, em que a gratuidade “assume a forma de uma autoridade desinteressada, acima dos partidos, que é como que talhada sob medida para o fascismo” (Adorno; Horkheimer, 1981, p. 182). E as que cobram se justificam por sua prestação eficiente, supostamente desprovida de coação e força.

Nesse contexto, o ensino se vê condicionado à perpetuação da semiformação, “a conquista do espírito pelo caráter fetichista da mercadoria” (Adorno, 2010, p. 25). Inundados por projeções de imagens — estáticas ou não —, os alunos conectados estão sujeitos a uma incessante hiperatividade que, paradoxalmente, consagra ela mesma uma experiência meramente pontual e efêmera, um estado informativo “que se sabe que ficará borrado no próximo instante por outras informações” (Adorno, 2010, p. 33). Isso, no entanto, não é tudo. Uma vez que “a indústria cultural permanece a indústria da diversão” (Adorno; Horkheimer, 1981, p. 158), o conteúdo pedagógico se inverte em entretenimento. E assim se consuma o movimento de enlaçamento da emancipação: de um vir-a-ser descarnado pela contradição social que caracteriza a modernidade, ela é amarrada por um sistema de dominação que tem como objetivo fazer a apologia da sociedade, sendo transformada em meio para a adequação à socialização capitalista.

Com isso se vê de que modo a “teoria objetiva da sociedade”, de Adorno (1993, p. 196), pode contribuir, pela retomada do conceito de indústria cultural, para a compreensão dos mecanismos que tanto aprofundam a barbárie retratada algumas páginas atrás, como obliteram a possibilidade de que “a educação seja uma educação para a contestação e para a resistência” (Adorno, 2020, p. 200).

Aulas on-line do capitalismo de plataforma

Se “o que é retrógrado só pode justificar-se a si próprio ao apresentar-se como o que é mais avançado” (Adorno, 1993, pp. 80–81), é imprescindível construir um arcabouço teórico que igualmente aponte a mudança social que materializa a “novidade” da chamada sociedade em redes, seus interesses e impactos. Nesse sentido, são importantes as recentes tentativas de descrição de um “capitalismo de plataforma”, em que a infraestrutura de extração de dados — fortemente impulsionada pela digitalização do ensino — é analisada retomando o conceito marxiano de matéria-prima (Srnicek, 2017, p. 40). Igualmente relevantes são tanto as análises que demonstram de que modo o surgimento das chamadas “Big Tech”, longe de materializar a esperada “aldeia global”, promove um “domínio feudal” em tempos de utopias tecnológicas (Morozov, 2018, p. 15), quanto os estudos que apontam o “Big Other” como “o fantoche sensacional, computacional e conectado que torna rentável, monitora, computa e modifica o comportamento humano” (Zuboff, 2019, p. 376).

Por isso mesmo, chama a atenção que todo o debate sobre a adoção de aulas on-line nas universidades, movida pela pandemia do covid-19, dificilmente leve em consideração o impacto da “quarta revolução industrial” (Schwab, 2016, p. 15) na sociedade contemporânea. Com ela não se tem apenas aumento de automatização, mas interconexão digital das máquinas em um único sistema produtivo que monitora todos os processos físicos. Se a rede de objetos está conectada pela internet, tal sistema transmite dados que se comunicam e cooperam, aumentam a eficiência, agilizam a interação entre participantes da cadeia de valor e estimulam o trabalho remoto.

Evidentemente, o impacto da chamada indústria 4.0 não se limita à manufatura tradicional, mas também se estende, sobretudo, ao mercado consumidor de bens culturais. Neste caso, a produção de conteúdos e conhecimentos é determinada por plataformas e tecnologias digitais que integram simultaneamente diferentes processos, decisões, dados, serviços e imagens. Tem-se, assim, uma revolução tecnológica no âmbito da chamada indústria cultural por meio da referida duplicação do mundo físico em virtual. Para além dos aspectos já destacados, tal duplicação implica monitoramento dos processos concretos e sua conectividade no ciberespaço. Há, nesse sentido, uma tendência ainda maior à padronização dos conteúdos que também é movida pela ampliação dos consumidores de cultura, já que, ao aumentar a produtividade, demanda um público crescente.

Como destacado, quando se observa a adoção (mesmo em caráter excepcional ou emergencial) das aulas virtuais, a universidade passa a figurar como mecanismo do sistema da indústria cultural, um fenômeno cujos elementos principais já podem ser descritos:

  1. a didática passa a ser produzida conforme as ferramentas disponíveis pelas plataformas virtuais;
  2. ao mesmo tempo que tais plataformas estabelecem guias de possibilidade de práticas de ensino e aprendizagem, podem monitorar e excluir processos e relações que destoem do pré-estabelecido;
  3. há, evidentemente, uma padronização de conteúdos pelo formato digital possível e pelo enquadramento das telas de computador ou celular;
  4. como as tecnologias digitais são meios de difusão da comunicação, movidos por pressão e interesses, dependem de fatores simbólicos que possibilitem a aceitação da informação ou mensagem.

Dessa perspectiva, o entretenimento — como já destacado — passa a ser um valor fundamental das aulas on-line. Como é a forma mais adequada para a troca de ideias em um ambiente excessivamente dependente de imagens, com sérias limitações temporais e nenhuma interação entre presentes, o entretenimento passa a atuar como critério de avaliação das próprias aulas.

O resultado da adesão da universidade aos programas virtuais é, assim, diminuição da complexidade do conhecimento, massificação dos conteúdos e intensificação do processo de transformação da didática presencial em um produto cultural, palatável para diferentes consumidores, professores e estudantes. Com isso, não se quer dizer que a universidade presencial já não se caracterizava como indústria cultural. Ao contrário. Tal universidade baseava-se em pressupostos sociais inverossímeis, a saber, a existência de uma população leitora, comprometida com atividades de pesquisa e inovações pedagógicas, bem como aberta ao processo conflitivo de formação do conhecimento. Esta estrutura nunca esteve intacta. Porém, a radicalização no processo de digitalização e virtualização da didática introduz ainda mais tendências fragmentadoras, centrífugas e atomizadoras, típicas das novas mídias, no interior da universidade, subsumindo esta à expansão da forma-mercadoria e seu fetichismo.

Observa-se, assim, um processo acelerado de alienação, distanciamento e estranhamento entre os participantes do sistema universitário. Eles se encontram integrados apenas pela utilidade e o interesse privado que a realização de um semestre virtual pode lhes oferecer. Nesse sentido, é curioso que muitos dos que afirmam que as universidades “não podem parar” justificam seu argumento pela necessidade de acolhimento da comunidade, sobretudo dos estudantes. A dinâmica do sistema indústria cultural mostra, no entanto, que essa aproximação se dá pela confluência de racionalidades utilitárias, e não pelos mecanismos associativos e de cuidado — “tudo é percebido do ponto vista da possibilidade de servir para outra coisa, por mais vaga que seja a percepção dessa coisa” (Adorno; Horkheimer, 1981, p. 182).

Mas a crítica ao ensino virtual não se esgota nas chamadas determinações objetivas, no fetiche ou na alienação: cui bono — quem se beneficia disso?

Ensino virtual entre financeirização e precarização do trabalho docente

Quando definida pelas novas mídias, a didática passa a ser oferecida conforme demanda prévia, constituída por meio de expectativas e interesses concretos sobre determinado conteúdo. Seu objetivo não é, no entanto, apenas despertar a atenção diretamente dos consumidores. Há mecanismos de exploração econômica muito mais insidiosos, como, por exemplo, a expropriação de perfil e dados privados dos usuários (Gonçalves; Costa, 2020, p. 156). Esta expropriação é manipulada para fins econômicos diversos. Daí o referido argumento de que a adoção de aulas e programas virtuais adquire funcionalidade para o sistema capitalista global, no contexto da profunda recessão econômica desencadeada pelo choque da pandemia do coronavírus. Como se sabe, o mês de março de 2020 foi desastroso para o mercado financeiro (Zhang/Hu/Ji, 2020). Bolsas de valores colapsaram e acumularam significativas quedas e perdas. Desde então, bancos centrais têm injetado enormes montantes de dinheiro novo e comprado ações e títulos (inclusive podres) de maneira ilimitada (Roberts, 2020, p. 308). A partir de abril, os investidores substituíram o desespero por grande otimismo com a valorização das ações (Sokol/Petaccini, 2020, pp. 409–10).

Além do papel dos bancos centrais, um outro fator tem estimulado o mercado financeiro: o preço das ações das grandes companhias tecnológicas — por exemplo, a Alphabet (dona do Google), Amazon e Apple — cresceu significativamente. No segundo trimestre, a Nasdaq (mercado que reúne tais companhias) tinha fechado com alta de 30% e já havia subido mais de 11% no ano graças ao aumento do faturamento durante o confinamento, proporcionado pelo uso intenso de aplicativos de videoconferência como o Zoom (El País, 2020). A adesão das universidades tem um papel decisivo neste processo de valorização. Implicou a inclusão de milhares de professores e estudantes do mundo inteiro nestes serviços de comunicação e, com isso, a disponibilização de uma quantidade inimaginável de dados que não são apenas acessados pelos perfis, mas também pelos programas e currículos das disciplinas, que podem ser disponibilizados para fins econômicos dos mais diversos tipos.

Mas o que significa a valorização das ações das grandes companhias tecnológicas por tais serviços? Ativos financeiros são direitos de propriedade. Isto é: o proprietário de um título de uma grande empresa tecnológica adquire o direito de se apropriar do valor excedente, resultado do que virá a ser produzido por meio de sua plataforma. Quanto mais valorizado um título, maior será a reivindicação de se apropriar do valor excedente a ser produzido, diria Marx (MEW 25, p. 486). Note-se que tal reivindicação assenta-se sobre expectativas diante do futuro (ainda mais incerto se levarmos em consideração a crise econômica atual). No caso das Big Techs, tais expectativas foram reforçadas, entre outros, pelos benefícios retirados do teletrabalho, aumentado significativamente com as quarentenas e isolamento. Por exemplo, em seu balanço do segundo trimestre, a Apple conseguiu aumentar 12% seu lucro em relação ao mesmo período de 2019, alcançando a cifra de US$ 11,25 bilhões. Em 31 de julho, suas ações subiram 41,51% (VALOR INVESTE, 2020). No terceiro trimestre fiscal, as Big Techs juntas — Facebook, Amazon, Apple e Alphabet — lucraram mais de US$ 38 bilhões (VALOR, 2020). Este crescimento positivo aumenta a confiança dos investidores e, com isso, impulsiona os preços de suas ações. Não estamos aqui falando de um processo especulativo em que haveria um distanciamento dos valores reais que deram origem às respectivas ações. Nosso ponto é outro: as vantagens adquiridas pelas Big Techs em razão das oportunidades que lhes foram abertas com a pandemia têm valorizado seus ativos. E isto significa a imposição de criação de um volume ainda maior de valor excedente no futuro.

Tal valor, porém, só pode ser extraído da força de trabalho. O título de propriedade é, portanto, em termos marxianos, o direito de se apropriar de mais-valia ainda não produzida (MEW 25, p. 486). Tem-se assim a configuração de um ciclo segundo o qual a subida dos lucros e do preço das ações das grandes empresas tecnológicas tem aumentado a expectativa dos investidores de se apoderar de porções cada vez maiores de mais-valia, prevista para ser gerada por plataformas e sistemas digitais que, entre outros, recebem aulas on-line. Para ser realizada, essa expectativa depende da queda da participação do trabalho na distribuição da riqueza produzida.

Do ponto de vista do sistema universitário, isto implica a substituição do trabalho presencial docente e administrativo com uma série de garantias e limites pelo trabalho remoto ilimitado. Com isso,

  1. a noção de jornada de trabalho se torna intermitente;
  2. as pausas de descanso são eliminadas;
  3. esgota-se a dimensão criativa do trabalho;
  4. aumenta-se a tendência de individualização da atividade acadêmica;
  5. há sobreacumulação de diferentes tipos de trabalho: de ensino, pesquisa, gerencial, doméstico e de cuidados.

Dada esta sobreacumulação, os professores encontram-se sujeitos a sobrecargas psíquicas, desencadeando situações de estresse e esgotamento, bem como problemas físicos. Ambos combinam-se com a inexistência de condições materiais e de um ambiente nas residências que sejam adequados ao desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem.

Além disso, as aulas remotas têm incentivado concorrência de outros membros da família (que não tem nada a ver com o trabalho universitário) para a participação de alguma maneira nas aulas on-line. Este problema pode ser vetor de conflitos dentro da casa, sobretudo nos casos em que o acesso à internet é escasso, gerando disputa por seu uso no tempo e no espaço. Por outro lado, ele tem uma função conservadora e negativa de coesão social que está relacionada a um efeito fundamental da transformação do ensino universitário em mercado, qual seja, a reafirmação da ideologia da educação privada e familiar, segundo a qual pais e outros parentes devem participar da formação dos estudantes, incrementando a necessidade de consumo de bens tecnológicos. Além disso, a casa atua como mais um meio de controle dos conteúdos disponibilizados em plataformas — em uma realidade como a brasileira isso implica o reforço de ataques ao debate de classe, gênero e raça. Além disso, o ensino remoto reforça o confinamento em ambientes tradicionalmente marcados por violências, sobretudo contra as mulheres.

Por fim, ao ampliar precariedade, isolamento e disciplinamento, o ensino remoto, parafraseando Antunes (2020), anula as esferas de sociabilidade que estreitam discussões, conflitos, debates coletivos, descontração, amizades, lutas, derrotas e avanços. Perdem-se os referenciais que permitem a organização da resistência aos processos de pasteurização do ensino e precarização do trabalho universitário que o próprio ensino remoto desencadeia. Como elemento do sistema indústria cultural, tal ensino caminha na “esteira destrutiva da pulsão da morte” (Adorno, 2003, p. 136). Em sua ilusão de prolongar sem rupturas a universidade para o mundo virtual, a destrói eliminando sua própria reação.

Nesse sentido, Pier Paolo Passolini (2001, p. 293) tem cada vez mais razão: “o fascismo, insisto, no fundo não foi capaz nem de arranhar a alma do povo italiano: o novo fascismo, através dos novos meios de comunicação e de informação […], não só arranhou, mas a dilacerou, violentou, contaminou para sempre”. Ao transformarem-se em celebridades pelas plataformas informacionais e redes sociais, muitas vezes até para criticar a versão farsesca do primeiro fascismo, os acadêmicos são aprisionados pela violência bem mais sofisticada da indústria cultural.