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Desafios do impeachment

Nós, o povo (Exame, agosto de 2018), Marilá Dardot

Não faltam razões para exigir a saída de Jair Bolsonaro. O presidente da República pisa na Constituição praticamente todos os dias, sem mesmo se dar ao trabalho de disfarçar. Seu governo cometeu e comete crimes de responsabilidade em diversos campos da administração federal. A começar na gestão da crise sanitária. O show de horrores que vimos acontecer em Manaus é prova material e escancarada, mais do que suficiente para processá-lo. E, no entanto, falta quase tudo.

Nós, o povo (Veja, junho de 2019), Marilá Dardot

Falta consenso na base da sociedade brasileira para impulsionar a medida. É verdade que, em janeiro, as classes médias — um dos setores responsáveis por sua eleição — resolveram sair às ruas, fazer carreatas país afora, indignadas com o “conjunto da obra”, mas principalmente com a pauta obscurantista do presidente, que deixa o país completamente à mercê da Covid-19. Mesmo assim, uma pesquisa Datafolha publicada no dia 22 de janeiro indicou que uma maioria de 58% dos brasileiros e brasileiras não quer o impeachment. A popularidade de Bolsonaro está em queda — depois de manter-se ao redor de 40% ao longo de 2020 — mas ainda continua substancial, inclusive nas classes populares.

E falta consenso no andar de cima. O empresariado pode até não gostar da figura, mas tem lá razões objetivas para mantê-lo no cargo. Desde 2015 embarcou num movimento — este consensual — para subverter cláusulas pétreas da Constituição de 1988, arranjando um pretexto pífio para derrubar a então presidente Dilma Rousseff. Queria doses maciças de uma ordem neoliberal que o governo de esquerda, mas principalmente a própria Constituição, ainda entravavam. Mesmo que seu candidato preferencial nas eleições de 2018 não tenha vingado, continua a considerar o governo Bolsonaro, apesar de tudo, uma garantia de que o projeto deslanchado há cinco anos não afunde ou seja revertido por uma eventual recuperação da esquerda. Não quer correr esse risco.

Nós, o povo (Veja, agosto de 2018), Marilá Dardot

Importantes setores da mídia, há que reconhecer, fazem oposição sistemática ao governo. Ou melhor, menos ao conjunto da administração do que à figura presidencial e seus assessores mais próximos. Não cansam de denunciar suas medidas estapafúrdias e de esbravejar contra sua impolidez. Mas vivem um dilema, cuja súmula pode ser encontrada nos editoriais e nas páginas dedicadas à economia. Odeiam o governo na forma, mas não tanto na substância.

Quanto às instituições políticas, o chefe do Executivo tem feito de tudo para achincalhar os demais poderes constitucionais. Mas encontrou resistência considerável na cúpula do Poder Judiciário, assim como na chefia das duas casas do Congresso. Os presidentes da Câmara dos Deputados e da Suprema Corte por diversas vezes criticaram, até incisivamente, os ataques violentos que Bolsonaro desferiu contra as instituições da república. Obviamente, ninguém ali gostou de ver o presidente desfilar em cima de um cavalo, perante uma turba que exigia a volta dos militares e o fechamento do STF e do próprio Congresso. No final das contas, no entanto, preferiram seguir uma linha de acomodação, talvez apostando que o morador do Palácio do Alvorada pudesse ser domesticado.

Nós, o povo (Carta Capital, setembro de 2018), Marilá Dardot

Entrementes, este tratou de avançar sobre as partes mais vulneráveis do Congresso, usando o poder da caneta e o acesso que ela dá aos cargos oficiais e aos recursos orçamentários. A eficácia da iniciativa foi testada nas últimas eleições dos presidentes da Câmara e do Senado, garantindo a Bolsonaro manter suficiente controle sobre ambas as casas — pelo menos para bloquear as dezenas de processos de impeachment depositadas na mesa da Câmara. A vitória permite manter abertas as porteiras para governar por decreto, uma vez aprovadas com folga reformas à Constituição, como a administrativa, prestes a ser votada, que dá continuidade à reforma da previdência e leva ao desmonte das instituições consagradas na Carta de 1988, eliminando o serviço público e tornando o Estado subsidiário da esfera privada. Isso sem falar na mais recente PEC Emergencial, que acena com uma renda mínima assistencial e focalizada em tempos extraordinários, em troca da revogação dos pisos constitucionais de saúde e educação e da desvinculação plena do orçamento. Por ora, enquanto passam as boiadas, o andar de cima retraça sem constrangimento sua linha de acomodação.

Ao mesmo tempo, o presidente não dá nenhum sinal de ter sido domesticado.

Nós, o povo (Istoé, fevereiro de 2019), Marilá Dardot

Tudo isso, sem dúvida, é muito precário e pode revelar-se transitório. A crise sanitária é imensa e ficou claramente fora de controle, com parcelas crescentes da população percebendo que o governo tem culpa no cartório, tanto pelo que fez para atrapalhar, quanto pelo que deixou de fazer. A guerra da vacina, debatida da roda da Rosa, é uma das provas do tanto que o governo deixou de fazer, abandonando a população ao próprio infortúnio de sobreviver apesar de tudo.

O grande ausente é a ideia, um norte substantivo para orientar a luta. Impedir o presidente da república para quê? Grande parte das classes médias que saíram em carreatas votaram nele ou então se abstiveram no segundo turno de 2018, comprando a tese de que os disputantes eram igualmente “extremistas”. E mesmo agora não podem reclamar que o presidente está descumprindo suas promessas eleitorais. Faz tempo que a República não via um ocupante de cargo público tão fiel às palavras e gestos exibidos durante sua campanha!

Nós, o povo (Carta Capital, outubro de 2018), Marilá Dardot

A hora da política, contudo, é o futuro. Olhar para frente. Mas o que devemos olhar? Não há dúvida que uma ampla frente em defesa das instituições democráticas se faz necessária. Mas seria um erro crasso reduzir a questão à figura que hoje mais vivamente encarna o retrocesso autoritário. Jair Bolsonaro, assim como Donald Trump e outros expoentes da extrema direita, não são personagens acidentais. Não caíram sobre nós como um raio em céu azul. Algo de muito podre já fermentava no interior das próprias instituições que queremos defender, antes da ascensão dessas figuras.

Se a frente democrática a que aspiramos não tiver esse ponto muito claro, corre o risco de meter-se num engodo, um autoengano da pior espécie, qual seja: que tudo que precisamos é retornar ao antigo “normal”. Nesse caso, Bolsonaro até poderá sair derrotado em seu projeto pessoal, mas não aquilo que causou sua ascensão. Receita certa para que fenômeno assemelhado ressurja logo à frente, e com ainda mais força — como costuma ocorrer nas recidivas. Não há, portanto, outra saída responsável senão ancorar a frente política num projeto de reformas progressistas — políticas, econômicas e sociais. Só assim a palavra de ordem da preservação da democracia fará sentido para aqueles que, constituindo a maioria popular, se desesperaram dela nos últimos anos.

Nós, o povo (Istoé, outubro de 2019), Marilá Dardot

Nesse sentido, não deixa de ser interessante que o andar de cima continue dividido em relação ao futuro do presidente. Unido, é certo que Bolsonaro estaria com os dias contados; mas nada de muito alvissareiro se poderia esperar dessa unidade: até agora, esse setor não deu sinais de que tenha feito a devida revisão do que promoveu anteriormente. A batalha das ruas, no entanto, é bem mais incerta. É, na verdade, o único terreno em que não só o processo de impeachment, mas um programa democrático-reformista a ele ligado, pode prosperar. E como os chilenos demonstraram recentemente, é também a única chance de as forças de esquerda, tão relegadas aqui, reocuparem, com sangue novo, o centro da vida pública.