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De volta a nossa pedra

A duração real morde as coisas
e deixa nelas a marca de seus dentes

— Henri Bergson


A poesia não deturpa as contingências;

exceto por um ou outro aborrecimento,

o que escrevo hoje

é da ordem do restauro


Tento repetir:

nem tudo o que acontece ao corpo

é fatal


Por exemplo:

no dia em que um amor acabou

M. viu um coco despencar do coqueiro

e atingir em cheio a lança afiada da grade

do prédio. Perfurado, do coco escorre água

“como sangue”


V. uma vez jurou

nunca escrever sobre o tédio.

V. não chegou a jurar

não ser poeta, embora o afirmasse

com frequência


Suspeito que a ambição,

ao menos para os poucos que me cercam,

seja hoje a única forma de altivez


Somos testemunhas frouxas,

alquebradas — a sedimentação

dos fatos, seu enterro,

é o que nos permite


Quando L. tirou a camisa,

vi a discreta tatuagem

no centro do tórax.

É uma cabana?, pergunto.

É o símbolo da comunidade


Penso se é aceitável seguir

escrevendo na primeira pessoa do plural


Somos todos judeus alemães,

diziam os muros de Maio de 68


Para o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro,

o incêndio que desmantelou o Museu Nacional

no dia 2 de setembro de 2018

fundou um “deserto no tempo”


A esta altura, é difícil precisar

se os escombros solicitam algo

ou debocham de nós


Se por um lado a arte da memória

tem faltado a seu anseio épico

(a épica exige demais de nossas penas)

por outro, o lirismo talvez seja

uma espécie de invólucro,

de antiarqueologia


“Bandido bom é bandido Moro”; “Kitsch gay”; “Fuck news”; “Deus acima de tolos”.

As redes, que antes prometiam uma aldeia do mundo, derivaram na era dos apócrifos


Diante do deserto de agora

dos olhos roxos de agora

serão, seremos, serei capaz

de ironia?

Diante do mal, a ironia é um privilégio

uma providência

uma renúncia?

É legítimo ser oblíquo frente à desolação?


Testo alguns versos:

Repisamos a terra já antes

repisada, e sempre que possível

o verde rima com borralho

o riso rivaliza com o pasmo —

mas ainda sim é irrevogável


A arte está morta. Nem Godard poderá impedir, diziam os muros de Maio de 68


No dia 30 de setembro de 2018, o cachorro Marley foi morto a tiros por um policial fora de serviço que participava de uma carreata organizada por apoiadores de Jair Bolsonaro na cidade de Muniz Ferreira, Bahia. Alegando ter agido em legítima defesa, o homem, que não teve a identidade divulgada, foi liberado pela delegada local


A resistência em nomear o mal cada vez que ele desponta;

aquilo que o rigor não nos autoriza a nomear;

sejamos rigorosos até que nos transformem em pedra.

As cabeças baixas, as pedras, o ar empedrado, disse B.

Uma limpeza, uma limpeza mais ampla


“O cão é o único animal que te ama mais do que a si mesmo”, disse Godard,

citando Darwin, citando o Conde de Buffon.

Já George Steiner, a respeito do elenco de homens

que amaram seus cães mais do que os humanos, afirma: “It’s a worrying list.”


Estamos, talvez, cravando alfinetes em fantoches, disse meu amigo T.

O acirramento dos fatos

a homogenia dos fatos

nos devolverão, quem sabe,

ao tédio — não o tédio fértil das crianças, dos inícios;

o tédio que nos ameaça tem os olhos baixos


Entre as muitas interpretações de O cão meio afundado,

uma das Pinturas negras de Goya, há quem associe o cachorro

— que é configurado a um só tempo como um ser à espreita

e à beira do desaparecimento — ao dom do presságio,

do presságio de algum desastre.

O cão encara com olhos aflitos o canto direito do quadro

onde o fundo amarelado é mais escuro, uma sombra cor de ferro

que avança como uma névoa, assomando-se como um espectro,

algo da ordem do impronunciável.

Vejo o fundo ocre que envolve o animal

como um deserto implacável, onipresente;

um deserto universal,

que devora o que é sensível

e intimida qualquer vontade.

Para nós, o cão está de perfil

mas o corpo de areia escura

o desastre sem matéria

lhe chega — chegará? — pela frente.

Um cão é algo que está sempre

de frente


Em A queda do céu,

David Kopenawa descreve um incêndio

que tomou conta de sua terra

como um espírito comedor de gente,

naikiari wakë,

um incêndio tão poderoso que

queima até a areia e as pedras


Abaixo do calçamento, está a praia, diziam os muros de Maio de 68


O nome do meteorito Bendegó

é fruto de um fracasso:

Em 1785, um ano após ter sido encontrado

no sertão baiano

uma carreta levada por doze juntas de bois

tentou transportá-lo a Salvador; o meteorito,

no entanto, despencou ladeira abaixo

com suas 15 toneladas

e caiu no riacho Bendegó,

onde permaneceu por mais de cem anos.

Para os moradores locais,

a remoção do meteorito do riacho Bendegó

foi o motivo da grande seca que acometeu a região.

A nostalgia de Bendegó rendeu versos de cordel:

Até o dia de hoje

Provoca tristeza e encanto

Queremos nossa pedra de volta

De volta pro nosso canto.

Calcula-se que o meteorito,

antes de cair no riacho

que lhe emprestou o nome,

esteve no local de sua queda

por milhares de anos.

Por milhares de anos

Bendegó viveu

como um cão sem dono

no exílio de não ter um nome.

Na vibração austera de seu dorso

Bendegó ensina sua tautologia:

por mais leves, os corpos

inevitavelmente despencam.

Bendegó talvez seja aquilo que nos

resta de incorruptível


Gavetas, 2017, Guga Szabzon

No dia 19 de outubro de 2018, pesquisadores comunicaram à imprensa que fragmentos do crânio de Luzia, “a mulher mais antiga do Brasil”, foram encontrados nos escombros do Museu Nacional. “De direito,” disse uma jornalista, “Luzia é a mãe da pátria”.

Os restos correspondem a 80 por cento do fóssil, que seria reconstituído. “Hoje é um dia feliz”, disse uma das integrantes da equipe; “O dano foi menor do que esperávamos.”


a felicidade é uma ideia nova

diziam os muros de Maio de 68,

e nós também queremos viver