De volta a nossa pedra
A duração real morde as coisas
e deixa nelas a marca de seus dentes

A poesia não deturpa as contingências;
exceto por um ou outro aborrecimento,
o que escrevo hoje
é da ordem do restauro
Tento repetir:
nem tudo o que acontece ao corpo
é fatal
Por exemplo:
no dia em que um amor acabou
M. viu um coco despencar do coqueiro
e atingir em cheio a lança afiada da grade
do prédio. Perfurado, do coco escorre água
“como sangue”

V. uma vez jurou
nunca escrever sobre o tédio.
V. não chegou a jurar
não ser poeta, embora o afirmasse
com frequência
Suspeito que a ambição,
ao menos para os poucos que me cercam,
seja hoje a única forma de altivez
Somos testemunhas frouxas,
alquebradas — a sedimentação
dos fatos, seu enterro,
é o que nos permite

Quando L. tirou a camisa,
vi a discreta tatuagem
no centro do tórax.
É uma cabana?, pergunto.
É o símbolo da comunidade
Penso se é aceitável seguir
escrevendo na primeira pessoa do plural
Somos todos judeus alemães,
diziam os muros de Maio de 68

Para o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro,
o incêndio que desmantelou o Museu Nacional
no dia 2 de setembro de 2018
fundou um “deserto no tempo”
A esta altura, é difícil precisar
se os escombros solicitam algo
ou debocham de nós
Se por um lado a arte da memória
tem faltado a seu anseio épico
(a épica exige demais de nossas penas)
por outro, o lirismo talvez seja
uma espécie de invólucro,
de antiarqueologia

“Bandido bom é bandido Moro”; “Kitsch gay”; “Fuck news”; “Deus acima de tolos”.
As redes, que antes prometiam uma aldeia do mundo, derivaram na era dos apócrifos
Diante do deserto de agora
dos olhos roxos de agora
serão, seremos, serei capaz
de ironia?
Diante do mal, a ironia é um privilégio
uma providência
uma renúncia?
É legítimo ser oblíquo frente à desolação?

Testo alguns versos:
Repisamos a terra já antes
repisada, e sempre que possível
o verde rima com borralho
o riso rivaliza com o pasmo —
mas ainda sim é irrevogável
A arte está morta. Nem Godard poderá impedir, diziam os muros de Maio de 68

No dia 30 de setembro de 2018, o cachorro Marley foi morto a tiros por um policial fora de serviço que participava de uma carreata organizada por apoiadores de Jair Bolsonaro na cidade de Muniz Ferreira, Bahia. Alegando ter agido em legítima defesa, o homem, que não teve a identidade divulgada, foi liberado pela delegada local
A resistência em nomear o mal cada vez que ele desponta;
aquilo que o rigor não nos autoriza a nomear;
sejamos rigorosos até que nos transformem em pedra.
As cabeças baixas, as pedras, o ar empedrado, disse B.
Uma limpeza, uma limpeza mais ampla

“O cão é o único animal que te ama mais do que a si mesmo”, disse Godard,
citando Darwin, citando o Conde de Buffon.
Já George Steiner, a respeito do elenco de homens
que amaram seus cães mais do que os humanos, afirma: “It’s a worrying list.”
Estamos, talvez, cravando alfinetes em fantoches, disse meu amigo T.
O acirramento dos fatos
a homogenia dos fatos
nos devolverão, quem sabe,
ao tédio — não o tédio fértil das crianças, dos inícios;
o tédio que nos ameaça tem os olhos baixos

Entre as muitas interpretações de O cão meio afundado,
uma das Pinturas negras de Goya, há quem associe o cachorro
— que é configurado a um só tempo como um ser à espreita
e à beira do desaparecimento — ao dom do presságio,
do presságio de algum desastre.
O cão encara com olhos aflitos o canto direito do quadro
onde o fundo amarelado é mais escuro, uma sombra cor de ferro
que avança como uma névoa, assomando-se como um espectro,
algo da ordem do impronunciável.
Vejo o fundo ocre que envolve o animal
como um deserto implacável, onipresente;
um deserto universal,
que devora o que é sensível
e intimida qualquer vontade.
Para nós, o cão está de perfil
mas o corpo de areia escura
o desastre sem matéria
lhe chega — chegará? — pela frente.
Um cão é algo que está sempre
de frente

Em A queda do céu,
David Kopenawa descreve um incêndio
que tomou conta de sua terra
como um espírito comedor de gente,
naikiari wakë,
um incêndio tão poderoso que
queima até a areia e as pedras
Abaixo do calçamento, está a praia, diziam os muros de Maio de 68

O nome do meteorito Bendegó
é fruto de um fracasso:
Em 1785, um ano após ter sido encontrado
no sertão baiano
uma carreta levada por doze juntas de bois
tentou transportá-lo a Salvador; o meteorito,
no entanto, despencou ladeira abaixo
com suas 15 toneladas
e caiu no riacho Bendegó,
onde permaneceu por mais de cem anos.
Para os moradores locais,
a remoção do meteorito do riacho Bendegó
foi o motivo da grande seca que acometeu a região.
A nostalgia de Bendegó rendeu versos de cordel:
Até o dia de hoje
Provoca tristeza e encanto
Queremos nossa pedra de volta
De volta pro nosso canto.
Calcula-se que o meteorito,
antes de cair no riacho
que lhe emprestou o nome,
esteve no local de sua queda
por milhares de anos.
Por milhares de anos
Bendegó viveu
como um cão sem dono
no exílio de não ter um nome.
Na vibração austera de seu dorso
Bendegó ensina sua tautologia:
por mais leves, os corpos
inevitavelmente despencam.
Bendegó talvez seja aquilo que nos
resta de incorruptível

Gavetas, 2017, Guga Szabzon
No dia 19 de outubro de 2018, pesquisadores comunicaram à imprensa que fragmentos do crânio de Luzia, “a mulher mais antiga do Brasil”, foram encontrados nos escombros do Museu Nacional. “De direito,” disse uma jornalista, “Luzia é a mãe da pátria”.
Os restos correspondem a 80 por cento do fóssil, que seria reconstituído. “Hoje é um dia feliz”, disse uma das integrantes da equipe; “O dano foi menor do que esperávamos.”
a felicidade é uma ideia nova
diziam os muros de Maio de 68,
e nós também queremos viver